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(Foto de Flipe Penteado)

A candidata sem-teto matriarca das Cozinhas Solidárias

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As mulheres não sustentam apenas a base de movimentos sociais como o MTST, mas, historicamente, toda a sociedade. Para entender melhor o papel das mulheres nessas eleições, conversamos com Débora Lima, a mãe solo, preta da quebrada que tem entre suas propostas a luta por moradia, educação e aborto legal.

UMA ENTREVISTA DE

Gercyane Oliveira

Débora Lima, negra, mãe solo, moradora da Zona Sul, vive a dolorosa experiência comum de morar no território onde se nasce com um alvo nas costas. A candidata à vereança, liderança forjada nas ruas do Capão Redondo, nos alerta para a barbárie normalizada nas periferias, por todos aqueles que são vítimas em potencial da tragédia e desigualdade social. Em meio ao discurso da democracia racial e a harmonia entre as classes, Débora nos mostra um retrato sem photoshop ou filtro social, onde reina o medo e a indignação alimentados pelo Estado. A candidata constrói o movimento cujo objetivo é romper a continuidade de uma história de invisibilização, esquecimento e violência policial que se repete há centenas de anos nas periferias. Por isso, essa mãe assume, e têm clareza disso, a herança de lutas ancestrais, em busca por uma vida digna e feliz.

O movimento social do qual faz parte, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), tornou-se pela radicalidade política e impacto, uma importante referência para inúmeras famílias que sonham com a casa própria, além de saúde e educação de qualidade. A força e a luta incansável de mulheres como Débora, estão aqui relatadas. Ela era cozinheira; trabalhou anos para a mesma empresa, terceirizada, subcontratada e resolveu aderir ao movimento em busca de uma casa própria. Durante toda aquela jornada de trabalho, ela recebia um salário de fome e por anos, desde que se tornou mãe de um jovem negro, sente o frio na barriga que em realidade sempre acompanha as mães das periferias. Com o assassinato de milhares de jovens negros, Débora teme que um dia essa realidade também bata à sua porta. Mas sobrevive, cuida de si e do jovem filho. Hoje, não mais cozinha para patrões, mas para o povo que sente fome e assim inaugurou o projeto das Cozinhas Solidárias que dá a chance de muitas pessoas terem um dia a mais com nutrição.

A ralação de Débora permanece a mesma, se é que não se intensificou. No Capão Redondo, na favela onde as cores do tijolo sem reboco fazem parte do cenário de milhares de casas, cada pedaço vale ouro. Débora, juntamente com outras mães, politizou a dor do encontro entre exploração e extermínio dos debaixo, sem um teto para chamar de seu. O resumo dessa história teria de ser agora atualizado nas linhas de um rap que nos evidenciasse a luta permanente – e sua força também política – das mulheres que carregam nas costas o futuro de muitas gerações.


GO

Como você chegou até o MTST e PSOL?

DL

Sou uma moradora da Zona Sul, Capão Redondo e já vivi em várias outras periferias aqui da capital de São Paulo. Desde a Zona Oeste, Norte, Leste o que me levou a buscar o movimento de moradia (MTST) foi a necessidade de dar uma casa própria para o meu filho, que estava vivendo em coabitação familiar e tinha a minha mãe como referência na luta por moradia. Eu sou filha de mutirão, me lembro que ainda pequenininha, via minha mãe participando dos movimentos sociais, das manifestações e isso para mim foi uma grande referência. Sendo mãe solo, vi essa necessidade de conseguir dar uma casa para o meu filho. Nesse momento, também estava fazendo faculdade e trabalhava como cozinheira.

Ver mulheres coordenando grupos, fazendo assembleias, passei a questionar porquê que a sociedade nos joga – principalmente as mulheres pretas da quebrada – em empregos precarizados, porque eu tinha de trabalhar pesado como cozinheira e não receber o salário direito e por que para nós é tão difícil entrar na faculdade? Então, o MTST acabou me encantando e foi quando percebi que os meus questionamentos e indignação estavam certos. Na realidade, quem está errada é a sociedade. Nós mulheres podemos ocupar todos os espaços de luta.

“Na decisão de fazer parte do MTST, não estava somente a necessidade por moradia, mas também para ajudar outras mulheres a conquistar esse e outros direitos através das lutas coletivas.”

Em 2012, na primeira ocupação que ingressei, que se chamava Novo Pinheirinho do Embu, lutamos para conseguir colocar nossos filhos na creche. Porque a gente morava em ocupação e não tinha CEP, todas as mães da ocupação estavam com essa mesma dificuldade. Também lutamos por acesso à saúde de qualidade e isso foi me encantando cada vez mais dentro do movimento. Decidi conhecer o movimento mais a fundo e saímos da ocupação com a perspectiva da conquista da nossa moradia e assim, o MTST para mim, foi um divisor de águas como algo importante para me encontrar. Na decisão de fazer parte do MTST, não estava somente a necessidade por moradia, mas também para ajudar outras mulheres a conquistar esse e outros direitos através das lutas coletivas.

A nossa periferia é potente. Para a gente conseguir nossos direitos, as mulheres se organizam. Ajudei a coordenar várias ocupações na Zona Sul. Eu ajudei a coordenar a ocupação Paulo Freire, por exemplo, e a ocupação do Povo Sem Medo do Embu. Cheguei a ir até São Carlos, para coordenar uma ocupação que se chama Em Busca de Um Sonho, na Zona Norte. Ajudei a coordenar também a ocupação Marielle Vive e a ocupação Nova Canudos. Acredito que a vontade para a luta existe dentro de nós e a sociedade tenta nos enganar para que a gente não se organize.

O fato de você não ter uma casa ou de não fazer uma faculdade é um problema coletivo. Nas ocupações do movimento, encontramos outras mulheres com as mesmas angústias que querem ter sua casa, que sofrem com o subemprego. A mulher preta se pergunta: por que a saúde é precária? Por que a educação é precária? Por que não tem infraestrutura no seu bairro? É na ocupação que a gente entende a luta e consegue o que é nosso por direito.

Hoje eu sou coordenadora nacional do MTST e dentro da nossa luta que, que prioritariamente é a luta por moradia, também levantamos a bandeira do combate à fome. Fui a primeira a inaugurar Cozinha Solidária. A fome existe há muito tempo, mas foi no período da pandemia de Covid-19 onde a fome aumentou e vimos que seria interessante fazer essa ação coletiva. Então, inaugurei a primeira Cozinha Solidária e hoje temos 50 cozinhas.

O movimento é uma ferramenta para exigir um direito que é a moradia, organizando a base, mas também para denunciar os espaços ociosos que não estão cumprindo função social. Sou candidata porque a gente percebe o poder que a caneta tem e a gente vê várias leis antipovo passando e um plano diretor que não enxerga as necessidades reais da capital de São Paulo. Por isso decidimos também fazer a disputa institucional.

GO

Como foi essa decisão de você se tornar candidata? Como foi essa escolha na democracia interna do partido e do MTST?

DL

Eu sou uma mulher negra moradora da periferia e pela experiência que tive dentro da Câmara Municipal como presidenta do partido, ali circulando naquele espaço, a gente vê uma boa parte de vereadores que receberam o voto da população periférica, mas quando chegam nesses espaços, não nos representam. Então um dos primeiros objetivos é a representatividade dentro da Câmara. São poucos vereadores que têm compromisso com a luta. Grande parte dos vereadores homens brancos cheios de grana e para se perpetuar no poder que fazem políticas antipovo.

“As mulheres que sustentam a base da sociedade e aí acabei me sentindo atraída pelo convite das pessoas falando: Débora você faz a luta, você nos representa.”

Agora a gente precisa falar por nós mesmos. Então, foi uma decisão coletiva com as mulheres do MTST. As mulheres que sustentam a base da sociedade e aí acabei me sentindo atraída pelo convite das pessoas falando: Débora você faz a luta, você nos representa. Tem uma demanda hoje muito forte das mães pretas de quebradas que também não se vê representada nesse espaço institucional, somos nós que sofremos todas as ausências de políticas públicas na periferia, somos nós que sofremos ausência de lazer para as nossas crianças. De um lado, a gente vê o crime tentando aliciar nossos filhos, do outro lado a gente vê uma Polícia Militar (PM) que acaba com a gente em vez de nos proteger. A gente tem medo. As vezes, não deixo meu filho nem levar o celular quando sai por ele ser um menino negro da quebrada, até dizer que o celular é dele mesmo… e não vemos interesse na atual gestão da prefeitura em mudar essa realidade.

GO

Aproveitando o que você falou sobre ser mãe, negra, periférica, as demandas são altas e são pautas em comum em relação a desvalorização e invisibilização. Então, como o seu mandato vai lidar com isso para que maiores proteções e investimentos aconteçam? Como o mandato vai proporcionar a essas mães da periferia a segurança que necessitam?

DL

Hoje estamos fazendo várias rodas de conversa com essas mães e também com especialistas da saúde que pensam em políticas públicas. Precisamos ampliar o campo progressista de vereadores, né? Porque a gente sabe que tem muito a ser feito e temos candidatos a vereadores do campo progressista que querem fazer políticas públicas, que querem aprovar projetos de leis para melhoria, mas se na Câmara estiver boa parte do outro campo [direita] que não quer, não acontece. Então, hoje o desafio é me eleger. Mas também eleger uma bancada maior. Se eu conseguir me eleger, será um mandato de muita participação dessas mulheres. Elas vão estar lá junto comigo pressionando os outros vereadores exigindo esses direitos básicos.

GO

Uma pauta urgente é a questão da discriminalização e legalização do aborto. É uma das pautas que você também se posiciona de uma maneira firme e aberta. Como vocês pensam em promover ou discutir o planejamento familiar e garantir a educação sexual nas escolas e implementar uma rede de estrutura social de apoio?

DL

Sim, estamos vivendo momentos difíceis, onde direitos conquistados com muita luta estão sendo retirados. Uma grande perda dentro dessa pauta foi o fechamento do hospital Vila Nova Cachoeirinha. Eu tenho conversado com médicos de lá. Onde eles estão não tem política para as mulheres. Vemos o governo estadual e municipal aderindo e causando medo aos trabalhadores que reivindicam o direito ao aborto legal. Gestões utilizando da repressão, do medo, para coagir e enfiar goela abaixo o projeto deles, o projeto liberal, neofascismo.

Eu sou uma das pessoas que está encabeçando essa luta do direito ao aborto legal e hoje em dia a gente procura outros espaços que façam aborto legal. O que a gente vê é uma dificuldade para conseguir que a mulher violentada não passe do tempo necessário e consiga abortar caso necessário/ É uma questão de saúde. Não se fala de direitos reprodutivos nas escolas e com tudo isso que a gente vê adolescentes engravidando cedo. Porque não tem orientação familiar e onde deveria ter não acontece. Esse é um dos objetivos a qual me coloco nessa disputa como candidata à vereança, junto com essas mulheres para a gente enfrentar essa linha conservadora-liberal do novo fascismo. 

“Nós vemos uma prefeitura que não tem uma política habitacional que contempla a maioria das pessoas que são as famílias que ganham de zero a dois salários mínimos, que representa quase 70% das pessoas.”

GO

A luta pela casa própria ainda é um sonho que está fora do alcance de milhões de paulistanos, alugueis caros, com apartamentos minúsculos e especulação em alta. Na sua visão como candidata socialista quais são as saídas possíveis?

DL

Olha, penso em primeiro lugar que uma das demandas é a de regularização fundiária. Temos várias comunidades que acompanhamos aqui para que se resolva essa questão da regularização e titularização da casa. A gente vai conseguir de certa forma sanar uma parte desse déficit. Nós vemos uma prefeitura que não tem uma política habitacional que contempla a maioria das pessoas que são as famílias que ganham de zero a dois salários mínimos, que representa quase 70% das pessoas.

Onde moro é perto do metrô. Lá um aluguel custava por volta de 560 reais, mas hoje para você ter uma casa de quatro cômodos, você tem que pagar 1.300/400 reais. Dentro dessa lógica da especulação imobiliária, a gente vai vendo a formação das periferias. Muitas famílias têm de decidir se pagam o aluguel ou come. Se tivéssemos uma política de regularização fundiária bem forte, conseguiríamos  diminuir boa parte dessa realidade, porque hoje se tem uma política que dá prioridade às empreiteiras, aos empresários, ao mercado imobiliário, que dá prioridade para o Capital e que não prioriza a moradia e o povo. Com a lógica do dinheiro.

GO

No contexto brasileiro, os “sem-teto” de hoje são os “sem-terra” da década de 1980, o que nos aponta uma continuidade na lógica da exclusão e marginalização, mas também da extração permanente de renda da terra rural e urbana. Quais são as conquistas da resistência urbana dos sem-teto hoje? E, em particular, qual é o papel das mulheres nessas conquistas?

DL

Os movimentos de moradia, em sua maioria, em torno de 80% são as mulheres que procuram o direito e acesso a casa própria. Portanto, protagonizam a luta. Conseguimos conquistar a dignidade também para os nossos filhos. O MTST vem desempenhando um papel muito importante, conquistando moradias Brasil afora. Hoje conquistamos 1.600 moradias na região da Zona Leste. Tenho orgulho de fazer parte de um movimento liderado por mulheres travando outras lutas por igualdade e liberdade. Vemos o retrocesso da falta de políticas habitacionais e o MTST veio como uma alternativa concreta.

Sobre os autores

é coordenadora do MTST, presidenta do PSOL em São Paulo e candidata a vereadora.

é jornalista, tradutora e copidesque.

Cierre

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Published in América do Sul, Cidades, Entrevista and Política

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