Trecho d do livro Everything to Play For: How Videogames Are Changing the World [Tudo para jogar: Como os videogames estão mudando o mundo], de Marijam Did, publicado pela Verso Books.
Na década de 1990, os videogames eram populares, tanto como um produto criativo que proporcionava novos e profundos momentos de alegria quanto como um espaço para atores políticos criarem realidades políticas. À medida que os lucros disparavam, essa indústria criativa sucumbiu às garras da financeirização e da corporativização.
Foi uma década de criatividade explosiva e calcificação de práticas comerciais. Jogos como Cosmology of Kyoto (1993) ou Vib-Ribbon (1999) foram reverenciados por críticos de arte, e até mesmo adquiridos por instituições como o Museu de Arte Moderna [em Nova York] por seus profundos aspectos estéticos e conceituais.
Por outro lado, o tamanho dos estúdios aumentou, levando à ampliação de uma classe gerencial, com seu jargão e auditoria de certas ambições criativas. A orientação dos jogos como produtos, ou artefatos de entretenimento popular, juntamente com a mecanização dos processos de produção e marketing, tornou a indústria de games homogênea em termos de produção e elenco de criadores.
Ao mesmo tempo, os distribuidores de jogos reprimiram a pirataria, intensificaram seu controle e aumentaram sua fatia do bolo para oferecer suas fachadas de loja para desenvolvedores de jogos. Marginalizados, muitos desenvolvedores de jogos menores não conseguiram acompanhar. Qualquer ambição potencial para um movimento em massa de guildas ou cooperativas de desenvolvimento artístico de jogos, soluções de hardware de comércio justo e temas e mecânicas diversas em videogames foram enterrados… por um tempo.
Contando histórias
Muitas crianças que cresceram com videogames entre as décadas de 1970 e 1990 se tornaram elementos importantes nessa nova indústria bilionária. Quando o novo milênio chegou, a tecnologia dos jogos havia se tornado suficientemente avançada para focar não apenas na mecânica emocionante do jogo; a narrativa poderia começar a realmente assumir uma centralidade. O tipo de histórias que seriam contadas, obviamente, estava em debate. Ao mesmo tempo, uma certa estratificação também estava em andamento.
Alguns gêneros de jogos populares poderiam ser confiáveis para liberar uma dose significativa de endorfinas. Jogos de tiro como Duke Nukem, títulos de terror como Resident Evil, jogos de plataforma como Super Mario World, jogos de corrida, de esporte, de estratégia, de RPG ou de terror, todos tinham bases de fãs significativas e equipes de produção em constante crescimento, e produziam receitas saudáveis. Os avanços tecnológicos acomodaram não apenas histórias singulares e lineares com personagens bidimensionais, mas também mundos inteiros, missões secundárias e labirintos em elementos de enredo.
“Na década de 1990, os videogames eram populares, tanto como um produto criativo que proporcionava novos e profundos momentos de alegria quanto como um espaço para atores políticos criarem realidades políticas.”
Os jogadores agora podiam se concentrar não apenas no enredo ou na mise-en-scène de um jogo, mas também na mensagem mais ampla. Que tipo de valores ou narrativas isso produzia? Os videogames agora eram suficientemente sofisticados para construir uma narrativa de persuasão. Aqueles ansiosos para popularizar uma ideologia específica — sejam eles desenvolvedores de jogos opinativos, editores cortejando um determinado grupo demográfico, assessores políticos financiando projetos ou outros influenciadores culturais que desejassem diversificar suas técnicas de narrativa — não perderam tempo em se envolver neste meio inovador.
Jogos de estratégia como Freeciv ou Sid Meier’s Colonization e jogos de tiro como Tomb Raider já estavam vendendo fantasias coloniais ou chauvinistas de forma independente. Nesses jogos, o enredo geralmente desencadeava tropos de grilagem de terras imperiais, supremacia branca e representações racistas de populações não ocidentais, variando de “primitivas” a terroristas de carteirinha.
No final da década de 1990, o Departamento de Defesa dos EUA estava começando a sentir o poder da indústria de jogos sobre homens adolescentes — o público principal do Departamento — e criou uma campanha de recrutamento e manipulação em torno dos jogos. O poder institucional subscreveu o movimento para vincular a indústria global de videogames ao complexo militar ocidental. Apenas no ano de 1999, Pentágono gastou mais de US$ 150 milhões em jogos ou simuladores com temas militares, com outra injeção de US$ 70 milhões em 2008 e ainda mais desde então, tudo em projetos relacionados à sua própria agenda política.
America’s Army, lançado em 2002, desenvolvido e publicado pelo Exército dos Estados Unidos na esteira do reforço militar pós-11 de setembro, foi o exemplo mais gritante e caro dessa prática — com um orçamento de desenvolvimento e marketing de dez anos de US$ 50 milhões, além dos investimentos mencionados antes. Este jogo tático de tiro em equipe baseado em rodadas com cenários de combate realistas foi descrito em uma análise da época como “o retrato mais realista de armas e combate que qualquer jogo”.
“O Pentágono gastou mais de US$ 150 milhões em jogos ou simuladores com temas militares somente em 1999, com outra injeção de US$ 70 milhões em 2008 e ainda mais desde então.”
O jogo recebeu vários prêmios ao longo dos anos e conseguiu atrair milhões de jogadores, tanto em computadores pessoais quanto em consoles. Este chamado “dispositivo de comunicação estratégica” foi “desenvolvido para informar, educar e recrutar soldados em potencial”. Na página oficial de Perguntas Frequentes, os desenvolvedores confirmaram que uma das razões pelas quais pessoas de fora dos Estados Unidos podem jogar o jogo é que eles “querem que o mundo inteiro saiba o quão grande é o Exército dos EUA”.
Portanto, não é sutil. Porém, os videogames eram um veículo perfeito para o propósito de propaganda estatal. Após a franquia ser finalmente descontinuada, um total de quarenta e uma versões do jogo foram lançadas entre 2002 e 2014.
Jogos de guerra
Temas correlatos a militarização e resistência armada foram instilados em jogos para construir narrativas em torno de uma variedade de conflitos. Jane’s IAF: Israeli Air Force (1998) foi claramente destinado a aumentar a publicidade para as Forças de Defesa de Israel. O conteúdo do jogo incluía dois tipos de campanhas.
O primeiro cobria operações históricas da Força Aérea Israelense na Guerra dos Seis Dias de 1967, na Guerra do Yom Kippur de 1973 e na Guerra do Líbano de 1982. O segundo tipo incluia operações futurísticas fictícias no Iraque, Síria e Líbano. Por outro lado, um estúdio de jogos sírio lançou o jogo de ação Under Ash em 2001, que recriou momentos da história da resistência palestina à ocupação militar israelense.
Essa atenção e a aclamação aparentemente popular que os jogos com temática militar receberam no início dos anos 2000 inspiraram uma geração inteira de videogames neocoloniais que sublinharam as agendas e valores militares ocidentais como um objetivo moral primordial. Os desenvolvedores das franquias Conflict: Desert Storm, Medal of Honor e Call of Duty, agora infames, acharam relativamente fácil garantir financiamento nessa época. A porta giratória de consultores indo e voltando entre o complexo militar organizado e a enorme franquia Call of Duty é bem documentada, embora dificilmente mencionada.
Uma narrativa colonial pode ser transmitida através do enredo da história e do elenco de personagens apresentados ou, às vezes ainda mais significativamente, omitidos. O preconceito pode ser transmitido através de escolhas tão simples quanto a classificação de cores para diferentes cenários: amarelo para a África e o Oriente Médio, significando “empoeirado”, “histórico”; azul para o Ocidente, ou seja, “moderno”, ‘civilizado”. Outras escolhas incluem quais idiomas os jogadores ouvem sendo falados ao fundo e o tom de voz usado.
“A porta giratória de consultores indo e voltando entre o complexo militar organizado e a enorme franquia Call of Duty está bem documentada.”
Todos esses aspectos convidam a uma interpretação que frequentemente reflete uma certa afiliação ideológica. Nos jogos, a introdução de tais narrativas juntamente com o desenvolvimento de tecnologia forte o suficiente para apoiá-las apresentou uma vitória dupla: um julgamento moral e uma dessensibilização em relação ao massacre de qualquer um considerado inimigo do Estado.
Hoje, o complexo militar moderno usa experiências que são estilizadas para parecer videogames no treinamento de soldados. Mais perturbadoramente, eles aplicam uma interface de usuário esteticamente agradável semelhante à de um videogame em máquinas de mira para ação de bombardeio remoto na vida real. Um vídeo de 2007, que o WikiLeaks intitulou “Collateral Murder” [Assassinato colateral], retratando soldados dos EUA envolvidos em um ataque de helicóptero que matou dois funcionários da Reuters e vários civis, tem uma aparência específica de videogame. A interface de usuário nos drones de hoje foi, de fato, projetada para replicar a de um videogame.
Eventos de esportes eletrônicos e conferências de jogos agora são regularmente financiados por órgãos militares estaduais locais. É uma estratégia ganha-ganha. As empresas de jogos representam organizações governamentais e impulsionam sua própria imagem pública no processo. A aparência de estar perto do Estado permite que os estúdios recebam isenções fiscais lucrativas também. E os militares terceirizam a construção de simuladores de treinamento incômodos e atraem novos recrutas no processo.
Críticos de tais arranjos e do relacionamento estreito entre os militares e as empresas de jogos raramente são ouvidos. Embora essas colaborações manchadas de camuflagem possam beneficiar um lado da indústria global de jogos, estúdios de mentalidade mais progressista sofrem quando são abafados por essas engenhosas e bombásticas exibições de agressão.
À medida que as indústrias armamentistas se envolveram, a propaganda e a obtenção de lucro ficaram mais ousadas e cínicas. Empresas de armas, incluindo Colt’s, Barrett Firearms, Kalashnikov Concern, Zenitco, Remington Firearms, Daniel Defense, Troy Industries, Insight Technologies, Aimpoint e Eotech, têm suas armas ativamente licenciadas por várias empresas de jogos para aparecer em videogames; detalhes de tais acordos ou do dinheiro trocando de mãos não são divulgados.
Gamificação
Empresas de armas e várias agências de publicidade não foram as únicas que começaram a sentir que valia a pena desenvolver jogos digitais. A dose de dopamina que chega ao cérebro após um quebra-cabeça resolvido corretamente ou um tiro bem colocado poderia ser aplicada a outras áreas além do mero entretenimento. Em 2008, o conceito de gamificação começou a surgir nos mundos empresarial e corporativo.
Outros campos já haviam adaptado elementos de videogames — por exemplo, alguns trabalhos com déficit de aprendizagem e representação de dados científicos vêm de invenções de interface de usuário em jogos. Os investidores de capital de risco logo começaram a experimentar incorporar aspectos sociais e gratificantes de jogos em seus softwares. Elementos de design de jogos que foram originalmente destinados a aumentar a satisfação da experiência do jogador, como pontos, emblemas, tabelas de classificação, gráficos de desempenho e design de botões e efeitos de áudio elegantes, poderiam ser estendidos a outras implementações digitais.
“Empresas de armas e diversas agências de publicidade não foram as únicas que começaram a perceber que valia a pena investigar jogos digitais.”
Em seu livro de 2014 The Gameful World, os editores Steffen P. Walz e Sebastian Deterding registram a ampla adoção da gamificação. De acordo com os autores, com a ascensão dos modelos de negócios da Web 2.0 em meados dos anos 2000, as startups da web enfrentaram cada vez mais o desafio de como motivar os usuários a se inscreverem no serviço oferecido, convidar conhecidos e interagir com seus produtos regularmente. Eles precisavam de novas ferramentas para aumentar o engajamento.
Por exemplo, em 2007, a IBM contratou o pesquisador de comunicação Byron Reeves, que publicou um informe técnico sobre o papel dos jogos online para a liderança empresarial. Em 2008, uma plataforma de perguntas e respostas para desenvolvedores de software intitulada Stack Overflow foi lançada usando um sistema de reputação com pontos e emblemas inspirados pela experiência em jogos de seus desenvolvedores. Rapidamente ganhou prestígio na indústria de tecnologia.
Em março de 2009, o aplicativo para iPhone Foursquare estreou no festival South by Southwest (SXSW) e demonstrou que elementos de design de jogos podem impulsionar o contato inicial e a retenção de usuários. Em agosto seguinte, Rajat Paharia, do Bunchball, registrou o domínio gamification.com. O site de compartilhamento de vídeos do Vimeo adicionou um botão “curtir” em novembro de 2005, e o Facebook seguiu o exemplo quatro anos depois. Adicionar um cálculo, uma interação lúdica na interface, aumentou as taxas de engajamento dos sites.
Hoje, a gamificação é uma técnica amplamente adotada que é quase perfeitamente incorporada em como nos envolvemos em vários cenários digitais, como produtividade organizacional, aplicativos de autoajuda, retenção de conhecimento, recrutamento e avaliação de funcionários, treinamento físico, aprendizado de regras de trânsito e muito mais. Naturalmente, os maiores adeptos da gamificação foram agências de marketing; 70% das empresas da Forbes Global 2000 pesquisadas em 2013 disseram que planejavam usar a gamificação para fins de marketing e retenção de clientes.
Experiências de compras gamificadas agora são comuns na internet, mas as empresas também adicionaram componentes visuais de videogame às suas marcas. O teórico de jogos Ian Bogost escreve:
A gamificação é reconfortante. Ela dá conforto aos vice-presidentes e gerentes de marca: eles estão fazendo tudo certo e podem fazer ainda melhor adicionando “uma estratégia de jogos” aos seus produtos que já existem, espalhando “gaminess” como aioli em ciabatta no almoço de vendas indulgente do consultor.
Do outro lado do espectro, muitos videogames agora oferecem uma perspectiva de “trabalho”: conclua tarefas, colete pontos, resolva problemas e percorra seu caminho até a próxima pontuação alta. Da sensação de simulação de tarefas agrícolas FarmVille ao clássico cult moderno Euro Truck Simulator, as empresas de jogos agora convidam o jogador a trabalhar o dia todo, e esse trabalho foi abraçado pela base de jogadores. Em novembro de 2022, A Little to the Left, onde os jogadores arrumam prateleiras ou limpam itens e fazem outras tarefas de organização, foi lançado com ótimas críticas e marcado como o jogo “acolhedor” do ano.
“Hoje, a gamificação é uma técnica amplamente adotada e incorporada quase perfeitamente à maneira como nos envolvemos em vários cenários digitais.”
A série de simulação social de grande sucesso Animal Crossing, lançada em 2001, foi elogiada pelos jogadores por fornecer a eles uma sensação de segurança, não importa quão irreal. Muitos relataram que completar as tarefas lhes dava uma sensação de realização, estabilidade e segurança, e que as achavam impossíveis de resistir. Para os jogadores, este jogo personificava a promessa que o capitalismo fez a eles: que haveria recompensas por seu trabalho.É tentador julgar esses jogadores como sujeitos do capitalismo, fazendo exercícios laboriosos de lucro para o ganho de outra pessoa. No entanto, os fãs de Stardew Valley (2016) — outro produto do gênero — provavelmente argumentariam que em um mundo de tão poucas certezas e senso de controle, os resultados previsíveis e repetitivos das ações nesses jogos têm um efeito calmante. E quem sou eu para questionar isso?
Sobre os autores
é uma crítica da indústria de jogos e autora do livro "Everything to Play For: How Videogames Are Changing the World".