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(Reprodução Reuters)

Vinha de Portugal e já sabia do tamanho do Brasil

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Nesse final de semana perdemos a legendária economista e militante Maria da Conceição Tavares. Fugindo da ditadura de Salazar em Portugal e embora tenha sido perseguida pela ditadura brasileiro, ela encontrou no país uma potência adormecida onde pôde desenvolver teses fundamentais para compreender a atual hegemonia global dos EUA e os problemas do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo.

Esse texto é o que consigo escrever depois dos primeiros dias de luto. A perda de Maria da Conceição Tavares é um duro golpe em uma geração que ainda teima em achar que o Brasil tem futuro e que ainda irá cumprir seu desígnio de país-nação. Em que pese o desaparecimento material, Maria da Conceição Tavares deixa uma obra substancial e, mais que isso, deixa um exemplo de intelectual aguerrida, corajosa e coerente, a qual fez da vida um compromisso com o desvendamento do processo de funcionamento da economia brasileira e sua particularidade na dinâmica capitalista internacional – e, sobretudo, se embrenhou no esforço militante de concretizar o sonho de superação das nossas mazelas.

Maria da Conceição Tavares chegou ao Brasil nos anos 1950, desembarcando no Rio de Janeiro em pleno carnaval. Sem conseguir revalidar seu diploma de graduação em matemática, foi estudar economia na antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ. Após trabalhar com estatísticas fundiárias, foi contratada para trabalhar no antigo BNDE, hoje BNDES. No entanto, fez e consolidou sua carreira nos escritórios do Brasil, e posteriormente do Chile, na Comissão Econômica para América Latina e Caribe, a CEPAL.

As fases do seu pensamento

Diversos pesquisadores do seu pensamento traçam periodizações com relação a sua produção bibliográfica. Uma delas pode ser compreendida a partir de três principais fases: a primeira delas na Cepal, na qual sua principal obra foi o texto “Auge e declínio do processo de substituições de importações do Brasil”; a segunda como docente do curso de Ciências Econômicas na Unicamp, em que sua principal contribuição teórica ficou marcada pelo texto – em conjunto com José Serra – intitulado “Para além da estagnação”; e uma terceira e última fase, já como quadro na UFRJ e mais ligada à temática da economia política internacional, teve como obra de referência o texto “A retomada da hegemonia norte-americana”.

O elemento que confere sentido e uma certa linha de continuidade entre os três períodos – embora tenham sido eles de produções bem distintas – pode ser entendido pelo prisma das desigualdades, tanto interna ao Brasil e seus impactos no padrão de crescimento e estagnação, quanto na análise das desigualdades entre o centro e a periferia capitalista, analisando como a dinâmica da economia política internacional impacta nossa dinâmica de acumulação.

Em “Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil”, Tavares defende a tese de que, com a crise internacional no início dos anos 1930, as possibilidades de manutenção da economia brasileira centrada nas exportações de produtos primários como eixo dinamizador da acumulação interna estavam esgotadas. Os limites à capacidade de importação, dados pela queda do montante e do valor das exportações, paradoxalmente, ensejaram mudanças estruturais, para as quais contou as políticas econômicas do governo Vargas e a capacidade industrial instalada pregressa. Com isso, houve uma mudança fundamental: as exportações de produtos primários seguiram essenciais, mas não mais representavam o elemento central de geração de renda interna, mas contribuíram para o desenvolvimento nacional mediante capacidade e obtenção de moeda forte. O eixo principal passou a ser o investimento e a importação de bens de capital, fortalecendo um processo de substituição e importação de produtos supérfluos pela importação de maquinário para internalizar a produção de manufaturas.

“O que fez a ditadura, no período conhecido como ‘milagre econômico’ – segundo os autores – foi adaptar a demanda a nova estrutura de oferta ligada ao maior dinamismo do setor de bens de consumo duráveis.”

No entanto, uma industrialização que foi acompanhada de aumento das desigualdades sociais, setoriais e regionais, estreitou o mercado interno de consumo e levou ao esgotamento desse processo, em função da dirimida demanda agregada interna, que desestimulou novos investimentos de elevada escala e escopo. Portanto, as desigualdades sociais e a perversa distribuição funcional da renda foram limitadores à continuidade no processo de substituição de importações.

Já na Unicamp, na década de 1970, Tavares vai entrar para a história com a publicação do texto “Para além da estagnação”. Nesse texto, ela faz uma contundente crítica à Celso Furtado, que – em um livro chamado Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina – apregoava que o Brasil viveria um período de estagnação econômica, sobretudo pós golpe militar de 1964. O raciocínio do autor era, basicamente o seguinte: usando um modelo de equações básicas de equilíbrio dinâmico, Furtado constatou que haveria redução na taxa de crescimento por haver uma elevada relação capital/produto na indústria brasileira – isto é, indústria produzindo com elevada tecnologia e poupando mão de obra, o que impactava na geração de emprego e renda. Assim, como a estreiteza do mercado interno de consumo, não haveria motivos para ampliação do investimento, sobretudo aquele que demanda escalas mais elevadas. Portanto, a desigualdade social geraria estagnação.

Maria da Conceição Tavares e Jose Serra, em que pese a concordância com o diagnóstico de que havia um esgotamento do processo de substituição de importações, não concluíam que essa crise representava uma tendência de estagnação. Pelo contrário, a crise abriu caminho para um processo de transição, para um novo modelo de desenvolvimento capitalista que podia conviver plenamente com taxas elevadas de crescimento não somente a despeito da concentração de renda e riqueza, senão que exatamente por causa dela.

“Portanto, infelizmente Tavares estava certa, e concentração de renda também pode gerar crescimento, ainda que perverso.”

O que fez a ditadura militar, no período conhecido como “milagre econômico” – segundo os autores – foi adaptar a demanda a nova estrutura de oferta ligada ao maior dinamismo do setor de bens de consumo duráveis. Nesse sentido, o próprio processo capitalista de concentração de renda, especialmente após a política de arrocho salarial e a criminalização das greves, conferiu dinamismo a esse novo padrão de acumulação, que não dependia mais do consumo de massas para se realizar. Portanto, o salário do trabalhador não importava para a realização das mercadorias. Eram as classes médias o eixo central da acumulação, via sua capacidade de consumir os bens da nossa “modernização conservadora”, especialmente as novidades vindas da nova indústria de bens de consumo duráveis, em que o automóvel e os eletrodomésticos marcaram a face desse período. Portanto, infelizmente Tavares estava certa, e concentração de renda também pode gerar crescimento, ainda que perverso.

Por fim, Maria da Conceição Tavares, na sua “última fase”, se dedicou a compreender a economia política internacional, muito embora sua ida para a UFRJ tenha sido desdobramento da sua tese do “crescimento endógeno”, ou seja, da capacidade do Brasil crescer e se desenvolver autonomamente. Isso não exclui, obviamente, o olhar sobre as determinações do cenário mundial, dado o caráter periférico e dependente da economia brasileira. Seu texto seminal, de 1985, intitulado “A retomada da hegemonia norte-americana”, se dedica a compreender como os EUA, que passou por um período de contestação da sua hegemonia no campo produtivo, militar e monetário, dá um “golpe” nos juros em 1979 e coloca a economia mundial de cabeça para baixo. Tavares vai tratar desse tema a partir da idéia de que a ação unilateral do Banco Central norte americano (FED) é a resolução das tentativas de desestabilização dos EUA via dois movimento de reafirmação da hegemonia americana: no plano geoeconômico através da “diplomacia do dólar forte” com a valorização da moeda americana após o golpe dos juros e a drenagem da poupança do mundo; e no plano geopolítico através da “diplomacia das armas” com as ações finais na corrida armamenticia e na desestabilização da URSS, a única nação que partilhava com os EUA a hegemonia global. 

A “diplomacia do dólar forte” permitiu que o FED retomasse o controle sobre os seus próprios bancos e do resto do sistema bancário privado e internacional e ainda reafirmou o dólar como moeda internacional, em que pese o fim do lastro metálico. A nova política econômica ainda permitiu a soldagem dos interesses globais do capital financeiro internacional, rearticulando os seus múltiplos anéis nacionais que irão assumir o poder político e se espalhar do centro aos países da periferias, o que a autora denominou como a “nova arquitetura financeira”. 

“Para os países periféricos sobrou as consequências desse processo, como a crise da dívida e os ajustes impostos pelos organismos multiateriais, como o FMI.”

Em síntese, sua tese é a de que a retomada da hegemonia americana e a nova “financeirização capitalista” são duas faces de um mesmo processo, resultante das políticas do próprio governo norte-ameriano, amadurecidas na hora em que seu poder parecia entrar em decadência. Para os países periféricos sobrou as consequências desse processo, como a crise da dívida e os ajustes impostos pelos organismos multiateriais, como o FMI.

Uma militante e economista incansável

Além dessa grande expoente do pensamento original sobre o Brasil, na melhor versão da Economia Política, Tavares foi, sobretudo, uma militante. Veio fugida da ditadura de Salazar, em Portugal; foi presa em 1968 durante a ditadura militar brasileira; trabalhou no governo da Unidade Popular de Salvador Allender, foi assessora econômica do MBD e figura muito próxima de Ulisses Guimares. Posteriormente entrou para o PT e foi Deputada Federal no período auge do neoliberalismo brasileiro.

Uma incansável brasileira, que adotou e amou esse país e o escolheu como seu. Nós devemos muito a ela e nossa principal forma de homenageá-la, todo os dias, é manter vivo e, quiça, realizar, o sonho do Brasil potência que tanto almejava essa grande mulher economista!

Sobre os autores

é doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, DESTAQUE, Economia, História, Perfil and Teoria

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