Cem anos depois da Revolução Russa, estamos num momento especial, diferente de tudo o que tivemos em décadas. Com o neoliberalismo e os partidos social-democratas tradicionais caídos em desgraça, finalmente estão surgindo novas oportunidades para a Esquerda radical.
Cada crise encontra algum tipo de resolução, e esta que atravessamos também encontrará; onde vamos parar depende em grande medida de como a Esquerda responderá a ela. Se jogarmos corretamente as cartas que temos, a abertura pode ser a ocasião para iniciar um novo ciclo de organização – revitalizando partidos de Esquerda onde for possível e iniciando novos partidos, se os já existentes se provarem imunes a qualquer tipo de reforma.
Porém, em vez de apenas olharmos em frente, esta é também uma ocasião para observarmos as lições do passado. A Revolução Russa continua sendo o experimento mais ambicioso em políticas socialistas, e seus sucessos e fracassos precisam ser parte de qualquer discussão sobre como revitalizar a esquerda. Mas não apenas a experiência russa: Temos que situar a experiência bolchevique na história mais ampla da política socialista no século XX – ao lado de exemplos do Chile, da Alemanha e da Suécia, entre outros.
A Revolução Russa deixou duas grandes heranças – uma herança organizacional e uma herança institucional. Por herança organizacional, entendo o que se pode aprender dali sobre a construção de veículos para a ação coletiva no capitalismo – sindicatos, partidos e agremiações de modo geral. Por herança institucional, entendo as estruturas básicas que formarão uma sociedade pós-capitalista – o sistema político, a organização econômica, a estrutura dos direitos. A dimensão organizacional tem a ver com como se constrói o poder dentro do capitalismo; a institucional tem a ver com o que se construirá depois do capitalismo.
Herança Organizacional
Estrutura
A Esquerda apresenta dois tipos de atitude quando se trata da organização de partidos leninistas. Para uma Esquerda, o modelo é um desastre ou, no mínimo, uma experiência negativa. A acusação aí é que o leninismo sempre e em todos os cantos terminou em puro autoritarismo. Outra parte da Esquerda responde que “OK, é verdade, mas você está confundindo Stalinismo e Leninismo.” Em outras palavras,é com o advento de Stálin que se fecha o debate.
Os defensores do partido leninista têm razão quando dizem que, em sua história inicial, o partido era notavelmente aberto e dinâmico; mas, ao mesmo tempo, o fato é que a experiência global desde os anos 30 do século passado tendeu muito mais na direção de sua forma mais tardia e antidemocrática. Assim, se o partido de Lênin era muito democrático, o mesmo não se pode dizer do partido leninista. E não podemos pôr toda a culpa em Stálin, Zinoviev ou seja lá quem for o seu vilão favorito. Um modelo de partido com estruturas democráticas mais firmes e resistentes deveria ter gerado experiências mais diversas, não uma história uniforme de ossificação.
Assim sendo, é fácil concluir, como fazem tantos progressistas hoje, que a Esquerda ‘do futuro’ teria de rejeitar o modelo do partido leninista. O problema com esse modo de pensar é que nenhum outro modelo sequer chegou perto de ser politicamente tão eficaz. Todas as alternativas surgidas na Esquerda desde a década de 1960 — os partidos de múltiplas ‘tendências’ [como o PT ou o PSOL], os horizontalistas, os anarquistas e seus grupos de afinidades, o ‘movimento de movimentos’, etc. – conseguiram mobilizar por algum tempo, mas tiveram pouco sucesso na sustentação dos movimentos, e menos ainda em avanços materiais reais. De fato, o modelo baseado em quadros foi tão bem-sucedido que todos os grandes partidos capazes de grandes mobilizações no século 20 copiaram esse modelo em algum nível, inclusive na Direita.
Considerando esse histórico, é difícil imaginar qualquer via para que a Esquerda se organize como força real sem alguma variante da estrutura concebida pelos primeiros socialistas — um partido de massas baseado em quadros, com liderança centralizada e coerência interna. Talvez não tenha de ser assim. Talvez nós consigamos conceber formas organizacionais mais abertas, mais difusas, mas que, simultaneamente, consigam fazer as coisas acontecerem. Porém, dada a nossa experiência, não temos qualquer fundamento real a partir do qual rejeitar o nosso modelo mais bem-sucedido.
O que precisamos fazer é olhar diretamente para os primeiros anos do partido – antes de 1918, quando todos concordam que o partido era muito aberto e democrático — e estudá-lo atentamente. Precisamos de uma compreensão aguda sobre como aqueles bolcheviques mantinham o dinamismo que fez daquele partido a organização mais bem-sucedida de seu tempo — na qual criticar a liderança era considerado um direito de todos, uma parte constitutiva básica do que significava ser membro do partido. Havia lá mecanismos institucionais que criavam a cultura de debate e transparência, e que não fossem só eleições e comunicados? Ou, no fim das contas, esse ambiente simplesmente dependia de uma liderança comprometida com esses valores?
Se havia mecanismos institucionais operando que garantiam a democracia, então seria o caso de copiá-los, colocá-los para funcionar; entretanto, se era uma questão relacionada com uma cultura interna contingente, isso significa que as práticas democráticas têm de depender de uma espécie de compromisso moral — o que será mais difícil de replicar, porque líderes, em geral, tendem a querer conter a democracia, não ampliá-la. Mas por isso é tão importante estudar a lição e a prática reais, para compreender de onde vinha aquela democracia.
Base
A segunda questão organizacional é a da relação entre o partido e sua base. Aqui a Revolução Russa tem o que nos ensinar. Na historiografia da Guerra Fria, os bolcheviques são apresentados como se tivessem chegado ao poder mediante algo bem semelhante a um golpe. A ideia é que eles não teriam realmente uma base de massas, que seriam um pequeno grupo de ideólogos comprometidos até o fanatismo, que impuseram uma ditadura. No entanto, historiadores recentes têm mostrado, em detalhes dramáticos, que a principal razão pela qual os bolcheviques conseguiram conquistar e manter-se no poder era que, dentre todos os partidos na Rússia, os bolcheviques eram os que tinham os laços mais profundos, mais fortes e mais firmes com a classe trabalhadora nos grandes centros industriais do país. Foi por isso que, em cada mudança no humor político da classe trabalhadora – particularmente em Petrogrado, mas também em Moscou – nos meses que levaram à captura do poder, sempre eram os bolcheviques que mais rapidamente captavam as mudanças, compreendiam a situação real em campo e, portanto, eram capazes de gerar e oferecer os slogans, as frases, as palavras de ordem e os programas que capturavam e davam voz à consciência popular.
Os bolcheviques não estavam sozinhos nesse panorama. Era uma verdade assumida por todos os partidos socialistas nos anos entre as duas guerras mundiais que o fundamento da estratégia partidária precisava estar ancorada na vida diária da sua respectiva base. E não só no Ocidente. Essa noção era uma condição sine qua non do socialismo em todo o mundo. E isso funcionava. A grande era do crescimento de todas as Esquerdas – do início do século 20 até o início da década dos 1950s – aconteceu porque os grandes partidos estavam entre os trabalhadores pobres, eram dos trabalhadores pobres e funcionavam para os trabalhadores pobres.
A estratégia foi bem-sucedida por várias razões.
Primeiro, e mais importante, permitiu que aquelas organizações gerassem programas que representavam os verdadeiros interesses da própria base de cada organização, porque os partidos estavam em comunicação constante com eles – dado que lutavam ao lado da respectiva base diariamente, nos locais de trabalho e nas vizinhanças.
Segundo, essa estratégia dava enorme legitimidade, no nível das massas, aos quadros do partido – mais uma vez, porque eles estavam lá com as massas, na alegria e na tristeza. Essa legitimidade era a condição essencial para promover a luta política, porque quando o quadro orientava a própria base para que empreendesse qualquer tipo de ação, ele podia contar com a confiança e o apoio necessário para que a ação fosse bem executada.
Terceiro, essa conexão profunda e orgânica também dava suporte a uma cultura interna vibrante – de democracia, de cobrança e prestação de explicações democráticas transparentes. Um partido imerso na vida e na luta diária da classe trabalhadora podia não apenas dar sustentação a uma cultura de democracia, como também podia beneficiar-se dela. Afinal, uma cultura democrática era uma das pré-condições essenciais para ganhar e manter a confiança e o apoio da classe. Ter uma grande base, é claro, nunca garantiu nenhum sucesso – mas não tê-la sempre foi garantia de fracasso e de marginalização.
Certamente, isso é o que mais diferenciava os primeiros partidos socialistas e os grupos de Esquerda que existem atualmente no Ocidente. A Esquerda socialista mantém uma conexão muito tênue com as comunidades de trabalhadores, se é que ainda há qualquer contato. Praticamente em todo o mundo a Esquerda socialista está estruturalmente separada dos trabalhadores e opera na maioria das vezes como pequenos grupos em contextos de classe média – universidades, ONGs, grupos de estudo, etc. Essa realidade tem várias consequências importantes. Para começar, diferente da esquerda trabalhista tradicional, essa esquerda não pode realmente organizar e liderar lutas da classe trabalhadora, porque está fisicamente separada daquela classe. O núcleo do engajamento político dessa esquerda distanciada da massa trabalhadora é de apoio, e de reação – aparecer para ajudar num piquete, disseminar as palavras de ordem, tentar arregimentar simpatias. Mas isso significa que essa esquerda é integralmente dependente de outros agentes para a organização, porque não está em posição para iniciar a luta, ela mesma.
Além disso, seu confinamento àqueles ambientes significa que, para manter seus compromissos com o socialismo, a esquerda hoje precisa socializar seus membros para que se simpatizem com os interesses e a opressão de outra classe. Tudo isso é muito diferente dos tradicionais partidos de esquerda, que estavam em ambientes da classe trabalhadora e, portanto, podiam recrutar seus militantes dentro da própria classe e, assim, treinar seus membros para lutar por seus próprios interesses materiais. Para aqueles primeiros grupos, a luta era uma necessidade, porque lutavam pela sobrevivência e pelo bem-estar para si mesmos e para os seus próximos.
Hoje, os grupos têm em grande medida de imaginar quais seriam esses interesses, já que não têm como aprender sobre eles por engajamento direto. Na maioria das vezes, fazem isso lendo sobre eventos passados e, a partir deles, tentando encontrar paralelos na cena atual. Mas assim fica muito difícil desenvolver alguma estratégia. É quase impossível inovar, porque a maior parte dos membros não têm experiência direta das mudanças nos locais de trabalho, nem estão em posição de tentar novas iniciativas. Isso leva naturalmente a uma espécie de dogmatismo, porque a única coisa que sabem com certeza é o que funcionou no passado.
O resultado de longo prazo de estarem isoladas dos trabalhadores é que essas organizações se tornam o paraíso para uma política de estilo de vida para estudantes e profissionais com compromissos morais. Elas oferecem aos membros meios para que se sintam como se estivessem muito envolvidos na mudança, mas o envolvimento é altamente individualista e permanece em grande parte confinado a atos de solidariedade simbólica. Dado que a organização real está tipicamente fora de questão, a energia tende a ser dirigida para dentro, na direção da cultura e das características do próprio grupo. Quem chega nos EUA vindo de países que têm tradições políticas mais radicais jamais deixa de perceber o quanto os debates dentro da Esquerda estadunidense são estridentes e moralistas, mas, sobretudo, o quanto são apolíticos. Tendem a discutir linguagem, identidade individual, linguagem corporal, hábitos de consumo e coisas do tipo. É uma consequência natural de uma “esquerda” que de fato não passa de pequenos grupos constituídos de pessoas em ambientes de classe média, que não possuem uma maneira orgânica de serem treinados em política de classe. Tem sido assim há tanto tempo, que até mesmo a ideia de basear a política na classe trabalhadora é vista como exótica ou dispensável.
Se a Esquerda almeja chegar a algum lugar, se pretende recapturar o papel que já teve como o motor da justiça social, terá de se re-plantar dentro das comunidades dos trabalhadores. Até o momento, ninguém mostrou qualquer prova de que as mudanças das quais precisamos e na escala necessária – colocar as pessoas acima dos lucros, salvar o meio-ambiente, erradicar as opressões sociais –, possam ser alcançadas sem enfrentar o capital. E como fazer isso sem mobilizar a capacidade da única força social capaz de pôr de joelhos o capital – a classe cujo trabalho gera os seus lucros?
Não é só o caso russo mas toda a tradição do socialismo, se estendendo por mais de um século e meio, o que demonstra essa verdade básica. Uma esquerda isolada dos trabalhadores é um espetáculo, não uma força política.
Estratégia
Sobre a questão da Estratégia, a Revolução de Outubro talvez seja menos instrutiva. A tomada do poder pelos bolcheviques não foi um Golpe de Estado, mas, de fato, ela incorporou uma derrubada repentina e violenta de um regime, num contexto de falência do Estado e de desintegração das forças militares. Podemos descrevê-la como uma Estratégia de rompimento com o capitalismo através de uma ruptura.
Hoje não há dúvidas de que as décadas do início do século 20 até a Guerra Civil Espanhola podem ser descritas como um período revolucionário. Foram tempos em que a possibilidade de ruptura podia ser contemplada seriamente, e em que era possível construir uma estratégia em torno dela. Muitos socialistas defendiam uma abordagem mais gradualista, mas os revolucionários que os criticavam não estavam vivendo num mundo de fantasias.
Para muitos partidos a via russa, como tal, era um caminho viável. Mas a partir dos anos 1950s, estreitaram-se as aberturas para esse tipo de Estratégia; hoje parece uma alucinação completa pensar sobre o socialismo através dessas lentes. Essa é uma verdade indubitável nos países capitalistas avançados, mas também é verdade para grande parte do Sul Global. Hoje o Estado possui uma legitimidade infinitamente maior entre a população do que tinham os Estados europeus há um século. Além disso, o poder coercitivo e de vigilância do Estado, e a coesão interna da classe dominante dá à ordem social uma estabilidade que está ordens de magnitude acima daquela que havia em 1917. Isso significa que, embora se possa admitir e talvez até esperar que surjam condições revolucionárias nas quais a ruptura do Estado seja realmente pensável, não podemos construir uma Estratégia política em torno dessa expectativa – não podemos tomá-la como a perspectiva estratégica fundamental da Esquerda. Hoje, a estabilidade política do Estado é uma realidade que a Esquerda tem de reconhecer. O que hoje está em crise é o modelo neoliberal de capitalismo, não o próprio capitalismo.
Nesse caso, as lições que podemos extrair da experiência russa – como um modelo de transição para o socialismo – são limitadas. Nossa perspectiva estratégica precisa minimizar a centralidade de uma ruptura revolucionária e navegar por uma abordagem mais gradualista. Para o futuro previsível, a estratégia da Esquerda tem de operar com vistas a construir um movimento para pressionar o Estado, acumular poder dentro dele, mudar a estrutura institucional do capitalismo e erodir o poder estrutural do capital – ao invés de investir diretamente contra ele. Isso implica numa combinação de política eleitoral e de mobilização das massas.
Você constrói um partido baseado nos trabalhadores, fortalece a capacidade de organização da classe, enfrenta os chefes no ambiente de trabalho, cria anéis de força na sociedade civil, e usa esse poder social para fazer avançar reformas políticas através da participação na política eleitoral. As reformas devem ter o duplo efeito de tornar mais fácil a organização futura, e também de conter o poder do capital de minar as reformas mais à frente. Há vários nomes para uma estratégia desse tipo – reformas não-reformistas, reformas revolucionárias. Porém, seja lá como a gente a chame, essa estratégia implica uma abordagem mais gradual que aquelas possíveis para os bolcheviques.
No entanto, isso significa que temos de estudar cuidadosamente as experiências de partidos e países que não chegaram ao socialismo, mas que mesmo assim alcançaram verdadeiros ganhos políticos e de organização. Temos de estudar a social-democracia, principalmente suas variantes mais ambiciosas. Antes de mais nada, precisamos compreender como eles combinavam as dimensões eleitoral e não-eleitoral numa perspectiva estratégica abrangente. Isso também implica em estudar a legislação daqueles países, os modelos econômicos que eles implementaram, como usavam o Estado, como lidaram com o poder estrutural do capital e com a sua hostilidade contra os avanços dos trabalhadores. As conquistas obtidas pelas social-democracias mais avançadas, como os países nórdicos, são realmente extraordinárias – e a sua difamação ritual pelas esquerdas sob acusações de mero “reformismo” é um equívoco. Essas conquistas foram o resultado de muita luta e enfrentaram uma oposição de unhas e dentes pelas elites dominantes.
A razão mais importante para estudarmos a história da social-democracia, contudo, é para compreendermos as suas limitações. Por isso não se deve descartar a social-democracia como “apenas” reformista. Se não compreendermos porque elas falharam, apenas repetiremos aquele fracasso. É importante considerar que, aconteça o que acontecer depois, se pessoas como Jeremy Corbyn ou Bernie Sanders chegarem ao poder nos próximos anos, a agenda política deles será talhada, em grande medida, no modelo estabelecido pela social-democracia.
Isso é ótimo em muitos sentidos, mas a social-democracia era uma força que já estava exaurida lá pelos anos 1980s; aqueles partidos degeneraram num ethos gerencial; a sua agenda de reformas foi congelada e, na sequência, revertida; e eles se provaram amplamente desinteressados em revitalizar seu próprio legado. Que esse fenômeno tenha sido tão amplamente disseminado indica que não pode ter sido o efeito de erros e traições individuais: Havia algo de estrutural por trás desse processo. Isso significa, por sua vez, que a Esquerda precisa compreender as raízes estruturais desse fracasso para que tenha pelo menos alguma chance na luta para evitar o mesmo destino. Daí que, enquanto temos de compreender de que modo veio à luz algo tão ambicioso como o plano Meidner na Suécia, no final dos anos 1970s, também temos de compreender porque ele foi derrotado e porque o Partido Social-democrata tornou-se cada vez mais conservador nos anos seguintes.
Institucional
Não vou me alongar sobre o ponto óbvio de que a lição institucional a se extrair de Outubro é, em muitos sentidos, negativa – devemos rejeitar por completo o modelo político gerado pelos bolcheviques, de uma ditadura de partido único e a revogação de liberdades básicas.
Foi um erro calamitoso desqualificar os direitos liberais como direitos “burgueses”, como fizeram muitos marxistas no início do século XX, implicando que aqueles direitos seriam de algum modo ilusórios ou fraudulentos. Essa manobra retórica tornou muito mais fácil a extinção desses direitos por Stálin e, antes dele, pelo próprio Lenin. Os direitos liberais foram o resultado de lutas e conquistas pelos movimentos da classe trabalhadora, não por capitalistas liberais. Qualquer esquerda digna de seu nome precisa proteger e aprofundar esses direitos, não descartá-los no lixo.
Mais desafiadora é a questão do planejamento econômico. Temos de começar com a observação de que a expectativa de uma economia sob planejamento centralizado simplesmente substituindo o mercado não tem fundamento empírico. Nós podemos desejar que o planejamento funcione, mas não temos evidências empíricas de que ele pode funcionar. Todas as tentativas de colocá-lo em operação por mais do que por curtos períodos fracassaram. A experiência russa é o exemplo mais elaborado disso. E esse fracasso tem de ser encarado e explicado, não pode ser simplesmente contornado. Não basta dizer, como dizem muitos marxistas, que aquela experiência “não era socialismo de verdade, então não conta”. Talvez não fosse mesmo socialismo – e talvez algum socialismo de verdade, com democracia de verdade, com conselhos de trabalhadores de verdade e com computadores de verdade fará com que o planejamento econômico funcione; mas o ônus da prova cabe integralmente a quem diz que ele vai funcionar. Não se pode vencer essa discussão com um gesto de pouco caso e recusando a experiência do século passado.
Em outras palavras, temos de considerar seriamente a possibilidade de que o planejamento como Marx vislumbrava talvez não seja uma possibilidade real. Qualquer discussão terá de seguir com um exame minucioso da experiência soviética, para tentar verificar se o fracasso estava relacionado com o modo específico como o planejamento foi instituído, ou se talvez a lição seja que uma economia industrial moderna simplesmente não pode ser dirigida com planejamento. É de fato muito surpreendente a pouca atenção que a Esquerda contemporânea dá a essa questão – comparada, por exemplo, à energia consumida desconstruindo filmes de Bollywood.
Em todo caso, dado o histórico duvidoso do planejamento central, temos de considerar seriamente a ideia de que uma economia pós-capitalista talvez tenha de tomar a forma de algum tipo de socialismo de mercado. Há muitos modelos desse tipo de economia na esquerda e todos possuem características diferentes. Seja lá qual for a estrutura institucional de um socialismo de mercado, o que importa é que os princípios subjacentes em sua concepção sejam fiéis a aquilo que os socialistas buscam – colocar as pessoas acima dos lucros. Para elaborar um pouco mais, seja lá qual for o modelo que acabe se estabelecendo, ele será diferente do capitalismo no sentido de que:
- O mercado será contido, de modo a não ser o árbitro sobre o bem-estar das pessoas;
- Os tomadores de decisões econômicas terão de prestar contas democraticamente;
- Não se admitirá que desigualdades de riqueza se traduzam em desigualdades de poder político.
É claro, haverá outros princípios que darão forma ao desenho das instituições. Mas é difícil imaginar qualquer modelo aceitável de socialismo – de mercado ou planificado – que não considere os princípios listados acima. Uma economia que desconsidere qualquer desses princípios provavelmente não poderá ser qualificada como socialista – não, pelo menos, no sentido em que as Esquerdas sempre compreenderam o conceito.
Expor com clareza o que queremos obter com um tipo de economia nos permite compreender o que está em jogo. O planejamento não é desejável como um fim em si mesmo: ele sempre foi abraçado como um meio para alcançar um fim, e o objetivo básico que os socialistas almejam é uma ordem humana e social justa. Talvez acabemos descobrindo que o planejamento total não seria apenas irrealista, mas também desnecessário – talvez no fim das contas se verifique que os objetivos fundamentais aos quais os socialistas aspiram de fato sejam alcançáveis através de um socialismo de mercado. Talvez possa até mesmo ser o caso de que o planejamento central crie tensões com algumas das dimensões da justiça social.
Um dos piores legados da era da Segunda Internacional foi a identificação entre socialismo e planejamento central. Essa equação não deve ser repetida nunca mais. Modelos econômicos não são fins em si mesmos; são instrumentos para alcançarmos o que estamos realmente buscando – uma sociedade na qual as pessoas consigam se ver umas às outras como fins, não como meios.
O Que Se Vê Adiante
Sabemos, pelos esforços dos socialistas do último século, que o caminho até uma ordem mais igualitária passa por um confronto com o capital, que não é possível contorná-lo. Os únicos partidos que já obtiveram qualquer sucesso real nessa empreitada foram partidos de massa baseados em quadros e que tinham raízes profundas nas classes trabalhadoras. Nesse momento, o maior desafio diante da Esquerda é cortar o cordão umbilical que a liga aos campi das universidades e às ONGs, e voltar a mergulhar no ambiente dos trabalhadores. Qualquer esquerda viável hoje também precisa abraçar a política eleitoral como o segundo braço de uma estratégia de pinça, na qual a força nas bases populares é combinada com a ala parlamentar, uma alimentando a outra. No momento atual, em países como os EUA ou o Reino Unido, parece estar havendo uma abertura mais depressa para a dimensão parlamentar do que para a dimensão das bases populares – a Esquerda deveria entrar de cabeça, capitalizar os benefícios dessa inserção e, então, usá-los para construir a base. Ao mesmo tempo, precisamos aprofundar a discussão sobre o que queremos obter com a nossa luta.
Está claro que um socialismo viável será uma ordem pluralista, multipartidária, com uma redução significativa do mercado. O quanto poderemos fazê-lo recuar depende em grande medida de questões práticas sobre o que é possível fazer e o que não é. Mas exatamente porque a estratégia de ruptura está fora de questão, precisamos começar pela estrada da social-democracia – e depois, dela para o socialismo democrático. Temos bastante experiência sobre como chegar na primeira parte do percurso, mas sabemos bem menos sobre como chegar na segunda.
Sobre os autores
é professor de sociologia na New York University. Seu livro mais recente, ‘Postcolonial Theory and the Specter of Capital’ [“Teoria Pós-colonial e o Espectro do Capital”] acaba de ser publicado pela editora Verso.