É madrugada em Turim, rua do Arcivescovado, início de 1920. Na porta do L’Ordine Nuovo um homem com sotaque sulista estava irredutível: queria imediatamente uma reunião com o diretor da revista. L’Ordine Nuovo não era apenas o jornal dos operários turineses, era também o jornal de Antonio Gramsci.
Na Turim do início dos anos 20, o clima político era tenso. Todas as noites os trabalhadores das fábricas se revezavam em turnos para vigiar a entrada do jornal; temia-se que, a qualquer momento, os grupos fascistas apareceriam para devastar a sede da revista. A estrutura lembrava um forte: operários carregavam fuzis e entre a entrada e as salas da redação havia um longo corredor, um pátio, um portão, arame farpado, bombas prontas para serem usadas e metralhadoras – ou pelo menos assim se dizia.
Os responsáveis pela segurança daquele turno analisaram atentamente o homem para entender se tratava-se de um espião da FIAT, de um fascista ou de um policial (ou os três); responderam que para conversar com Antonio Gramsci ele deveria vendar os olhos, para não descobrir como operavam a defesa militar do jornal. Nesse momento o suspeito ficou furioso, deu meia volta e fez menção de ir embora, mas poucos passos depois se vira e grita: “digam à Gramsci que Benedetto Croce passou aqui!”.
Quando soube, Gramsci lamentou o incidente; mas não deixou de rir, porque não conseguia imaginar o mais importante personagem da cultura italiana vendado e cambaleando a sua procura. Ria porque era um homem do humor simples: sociável e risonho, era comum que explodisse em risadas joviais, contagiando quem estivesse por perto. Risadas engraçadas que “manifestavam-se repentinamente”, de um homem que adorava piadas e brincadeiras (mesmo quando ele próprio era o alvo).
Essa é a imagem de Gramsci construída pelos seus amigos e camaradas, cujos relatos não só enriquecem os dados biográficos, como ajudam a compreender melhor o contexto (difícil mas frequentemente feliz) em que seu pensamento se desenvolveu. Gramsci não era o herói trágico e sério que geralmente imaginamos.
Obstáculos na vida
O poeta Corrado Alvaro definiu-o como “um Leopardi [poeta italiano do século XIX] que passou pela Planície Padana [área de intensa atividade industrial na Itália] com o socialismo de baixo do braço”. Gramsci compartilhava com Leopardi pouco, mas o que ambos tinham em comum era a inteligência viva, voraz e universal. Em Gramsci não encontramos pegadas de pessimismo, com exceção do “pessimismo da razão”, que segundo ele deveria servir para prever a pior situação possível de modo a “poder acionar todas as reservas de vontade e otimismo para conseguir eliminar o obstáculo”.
Gramsci também compartilhava com Leopardi um corpo marcado pela doença de Pott, ou tuberculose vertebral. A doença fez com que ele se tornasse alvo de chacotas por parte daqueles que não sabiam o que responder diante de uma superioridade dialética esmagadora. Em 1925, os fascistas interromperam o seu único discurso na Câmara dos Deputados gritando-lhe “cale-se, corcunda!”. Ou quando, durante seus estudos na universidade, alguns de seus colegas do curso de Filosofia disseram ao professor Annibale Pastore: “o Gramsci não passa de um corcunda”. “Sim, ele é” – respondeu o professor – “mas que corcunda!”. Assim como Cezanne dizia a Monet: “é só um olho, mas… que olho!”.
A doença perseguiu Gramsci por toda a sua vida, complicando suas ações cotidianas e agravando seu sofrimento na prisão – que mais tarde o levou à morte. Poderíamos nos perguntar o que teria sido de Gramsci se ele não tivesse o mal de Pott. Mas, como disse o professor da Universidade de Parma Giuseppe Amoretti com algumas palavras carinhosas:
“Antonio não poderia ser outro e um Antonio Gramsci diferente e melhor não é pensável. Ele deveria ser aquilo que a natureza e a sociedade fizeram florescer. A sua sorte física e humana deveria ser grande e singular, como aquela dos gênios e dos heróis, portanto, sem alegria e dor, mas com um longo caminho florido a ser percorrido até o fim”.
Mas na Turim daquela época não havia tempo a perder e as dúvidas existenciais ficavam em segundo plano para Gramsci. Era um trabalhador incansável que se dedicava integralmente à classe operária. Trabalhar com os operários das fábricas de Turim não era fácil, porque Gramsci (ao contrário de muitos intelectuais da época e de hoje) não pensava nos trabalhadores como sujeitos passivos. Como explicou o professor e jornalista Umberto Calosso durante uma sessão da Assembleia Constituinte de 1947, para Gramsci a classe operária era a “aristocracia do gênero humano” e assim deveria ser tratada.
A relação entre os intelectuais e as massas deveria, sim, ser “educativa”, mas o ensino e a cultura deveriam movimentar-se em ambas as direções: dos trabalhadores aos intelectuais e vice versa, para construir uma real pedagogia política de massa. Para Gramsci não “se ia” até a classe operária, não “se descia” até os trabalhadores para espalhar a palavra, mas se “subia até a classe operária”. A perspectiva era, portanto, revertida para o início. As palavras de Giuseppe Ceresa (aluno de Gramsci na prisão) explicam porque ele era visto como um intelectual diferente dos outros:
“Perto dele não sentíamos aquele peso, aquela distância que quase sempre coloca um operário em alerta de que a conversa é com um intelectual. Ele não nos tratava ou considerava como simples instrumentos materiais da revolta social, incapazes de protagonizar de forma consciente a revolução”.
Tornando-se protagonistas
Foi para colocar em andamento a pedagogia política de massa que Gramsci, em 1919, criou L’Ordine Nuovo com outros três redatores: o pacifista Angelo Tasca, o futuro secretário do Partido Comunista Italiano Palmiro Togliatti e Umberto Terracini, que em 1948 assinaria a Constituição italiana como presidente da Assembleia Constituinte.
Todos tinham menos de trinta anos e todos seriam perseguidos por Mussolini anos mais tarde. Tasca e Togliatti foram forçados ao exílio, enquanto os outros dois foram condenados, em 1928, a 45 anos de prisão pelo tribunal fascista. Os quatro, como disse Terracini, eram unidos por uma paixão pela cultura operária: “queríamos fazer, fazer e fazer”.
Trabalho certamente não faltava. O Grande Massacre de 1915-1918 [série de confrontos bélicos entre a Itália e os exércitos alemão e austro-húngaro na fronteira italiana com a Áustria e a Suíça] terminara apenas poucos meses antes e não trouxera nada às classes populares, apenas um milhão de mortes. Turim era um campo de batalha e a raiva dos trabalhadores era extrema; eles não acreditavam mais no “radicalismo verbal” do Partido Socialista Italiano, que com o termo “revolução” enchia os próprios comícios, mas não era capaz de indicar a direção para passar da teoria para a prática.
Enquanto isso, em 1917, a Rússia fez sua revolução: Marx era grande, Lenin o seu profeta e “pão, paz e terra” era a palavra de ordem. O Outubro Vermelho era a esperança dos oprimidos e os bolcheviques o exemplo a ser seguido para os setores mais politizados da classe operária italiana e mundial. E na Itália os mais bolcheviques eram os quatro redatores do L’Ordine Nuovo.
A faísca acendeu o fogo, e após alguns anos o movimento proletário disparou: as greves sucederam em um clima de pré-insurreição, as fábricas viviam ocupadas, os operários se armaram e formaram as Guardas Vermelhas [grupos armados de defesa proletária] e a produção das fábricas continuava mesmo durante as ocupações. A cidade que até aquele momento era conhecida como “cidade dos automóveis” tornara-se a cidade dos conselhos de fábrica, a cidade visitada por jornalistas do mundo inteiro: a “Meca do comunismo italiano”, a “Petrogrado da Itália”. O poder operário se fortalecia e afirmava não só na ótica “militar”, mas também, e especialmente, como inteligência coletiva de uma classe trabalhadora capaz de emancipar-se de seus patrões. E, claro, os patrões ficaram aterrorizados.
Aquele era um escândalo intolerável e só o fascismo conseguiria devolver a ordem que as instituições liberais não eram mais capazes de sustentar pelo consenso. A classe dirigente só conseguiu recuperar a ordem e o consenso com o uso do cassetete.
Mas em 1920 a Marcha sobre Roma estava longe e o L’Ordine Nuovo estava em plena atividade. A redação do jornal tornara-se o epicentro da luta política urbana e todos os dias, na mesma hora, acontecia a “comitiva”. Todos iam até o escritório de Gramsci: camaradas de Sessão e da Fração comunista, dirigentes do movimento estudantil e feminista, chefes de sindicatos. Intelectuais, guardas vermelhos, ex-docentes universitários de Gramsci, companheiros da base e pessoas sem partido.
Esse cotidiano permitia que o L’Ordine Nuovo não perdesse o contato com o movimento político real; contudo, a movimentação intensa trazia também problemas a Gramsci, que por vezes não conseguia terminar seus artigos. Como conta Mario Montagnana (redator do jornal), em certos dias Gramsci era obrigado a escrever:
“As nove ou às dez da noite, quando não havia mais visitantes, um redator falava para Antonio: ‘agora ninguém mais entra até que o artigo esteja pronto’. Porta trancada a chave, um camarada no corredor para impedir a entrada das visitas e após uma ou duas horas Gramsci entregava finalmente em duas ou três folhas do tamanho de um palmo de mão um artigo escrito com caligrafia grossa, nitidissima, quase sem nenhuma rasura”.
Com exceção desses pequenos inconvenientes, aquele contínuo entrar e sair de pessoas permitiu a concretização do objetivo que a revista estabeleceu desde o seu primeiro editorial: tornar-se uma academia de “vulgarização da inteligência” de todas as tendências político-culturais mais avançadas da época. Tal vulgarização serviu para realizar aquela que mais tarde seria a obsessão de Gramsci: a formação dos quadros de partido. Ele começava a intuir que constituir um grupo restrito de dirigentes era, a longo prazo, mais eficaz do que formar uma massa de dirigentes intermediários. Esses dirigentes deveriam representar a nata da classe trabalhadora para construir a espinha dorsal de uma grande organização revolucionária.
Nesse processo de formação foi expressa toda a paciência e potência pedagógica de Gramsci, que alertava continuamente seus companheiros para o estudo, com o intuito de convencê-los de que não existiam revolucionários de barricada e revolucionários de mesa, mas que ambos deveriam apropriar-se da cultura, uma vez que essa é a maior aliada da ação.
Pedagogia crítica
No andamento dessa jornada, Gramsci criticava socraticamente os erros dos companheiros, mas na sua crítica “nunca havia algo de negativo, nada de desencorajador, nada que fizesse com que os companheiros perdessem a confiança na própria força”, como conta Montagnana. Gramsci era um rigor revolucionário extremamente humano, sempre impessoal e que desenvolvia-se quotidianamente.
Não devemos cair na ilusão, contudo, de que Gramsci era somente um Sócrates com um coração doce. Ele era extremamente rígido e impiedoso não apenas com os adversários, mas também com os companheiros que, uma vez alcançada a maturidade política, comportavam-se como professores para outros.
É muito significativa uma carta que Gramsci enviou para Vincenzo Bianco [jornalista e dirigente do Partido Comunista Italiano] em 1924, na qual recordou como forçava um de seus primeiros alunos de redação a reescrever o texto de três a quatro vezes, com o intuito de diminuir o tamanho de oito colunas para uma e meio. “E Viglongo (o aluno), que antes era um desengonçado, acabou por escrever bem, tanto que depois pensou que tinha se tornado um grande homem e afastou-se de nós. Portanto, não serei mais o professor de jovens como ele: se eu tiver a oportunidade, irei orientar apenas operários, que não tem a aspiração de tornarem-se grandes jornalistas da burguesia”, escreveu ele.
Para nós, que estamos acostumados a pensar em Gramsci quase exclusivamente como intelectual, poderia parecer estranha a afirmação de Giovanni Parodi, de que a escritura foi a menor das atividades históricas e práticas de Gramsci, enquanto “a sua maior contribuição foi o ensinamento por via oral e prática”. Parodi entrou na fábrica com 14 anos era a perfeita imagem do dirigente operário que aumentou a sua cultura política (e o seu conhecimento técnico) ao ponto de poder conduzir a produção do estabelecimento central da FIAT durante a ocupação das fábricas. A testemunha daquele mundo revolucionário da Turim pós-Primeira Guerra é uma foto dos operários sentados na escrivaninha de Giovanni Agnelli [fundador da FIAT]. Entre eles, liderando o conselho da fabrica, estava Giovanni Parodi.
Alquimia rara
Poderiam ser escritas muitas páginas para tentar explicar qual foi a fantástica alquimia criada no entorno do L’Ordine Nuovo. Qual é o truque que se escondia atrás da figura mítica de Antonio Gramsci? Como foi possível que uma revista que tratava de temas complexos tornou-se “o jornal dos operários”? Por qual motivo as Guardas Vermelhas teriam morrido para defender o L’Ordine Nuovo dos fascistas? E especialmente: como criou-se aquele círculo de afetos, solidariedade e lutas duríssimas no qual um homem de apenas trinta anos, de óculos, magricelo e desgrenhado era o representante e intérprete dos interesses da classe trabalhadora?
Se precisássemos dar apenas uma resposta, essa deveria vir da própria biografia de Gramsci. Embora ele viesse de uma família da pequena burguesia, viveu anos de extrema miséria em sua juventude, devido a prisão de seu pai condenado por apropriação indevida em 1900. Apesar da inteligência excepcional que transformou Gramsci em uma das mentes mais brilhantes da cultura européia, isso não apagou a memória consolidada por uma vida caracterizada por dificuldades e privações materiais, causadas por uma repentina degradação social.
Basta aprofundar-se na biografia de Gramsci para descobrir que ele chegou à Universidade de Turim com uma bolsa de estudos tão mísera que forçou-o a escolher entre comprar madeira para o fogão ou o próprio jantar. Como Camilla Ravera [política e uma das fundadoras do Partido Comunista Italiano] disse:
“Gramsci nunca teve muito dinheiro e o que tinha gastava em livros. Às vezes ele tinha tão pouco que nem conseguia comprar meias e acabou por ir ao jornal apenas com os sapatos nos pés”.
Togliatti, mesmo sem pai e de origem modesta, não precisava pagar o aluguel porque morava com a família, enquanto a mãe de Antonio teve que se endividar para enviar dinheiro ao filho. Além disso, Gramsci era sardo [nome dado aos italianos nascidos na região da Sardenha] e a memória da vida miserável, solitária e incerta de muitos de seus compatriotas permaneceu muito viva.
Nas lembranças de Teresa, irmã mais nova favorita de Antonio, é possível encontrar uma das imagens mais significativas da infância na Sardenha. Uma infância em que, incapazes de comprá-los, Nino [apelido carinhoso de Antonino] e Teresina aprenderam a fazer seus próprios brinquedos:
“Eu fazia bonecas de cana que cobria com pequenos pedaços de pano colorido, Nino fazia barcos, veleiros ou passarinhos engraçados com a plumas na cabeça. Depois organizávamos leilões. Cada peça tinha um número e todos os filhos da vizinhança, inclusive aqueles de proprietários ricos, vinham tentar a sorte. Em vez do dinheiro, eles nos davam uma maçã ou uma pêra”.
Para tentar escapar do sentimentalismo puro poderíamos dizer que a capacidade de Gramsci de ouvir e a sua empatia foram fundamentais, mas provavelmente o segredo do pequeno sardo foi o alinhamento de uma mente prodigiosa com o intelectualismo e a vivência material semelhante a de um proletário.
Talvez tenha sido apenas esse o segredo de Antonio, que trouxe ao mundo aquele que Sandro Pertini [político italiano e sétimo presidente da República italiana] definiu como “O político mais engenhoso que encontrei no meu caminho, cuja morte deixou um vazio profundo não só para o Partido Comunista, mas para todo o movimento operário italiano e internacional; um vazio que nunca mais foi preenchido por outra pessoa”.
Sobre os autores
é formado em História Contemporânea e é especialista em Gramsci.
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