As primárias de 2016 criaram um dilema incomum para quem estava acostumado a estabelecer os parâmetros de uma opinião progressista aceitável na política norte-americana. Marginalizadas e desmoralizadas por décadas, as ideias de esquerda de repente voltaram com todo vigor graças a Bernie Sanders, cuja mensagem popular teve grande repercussão positiva dentro da base Democrata apesar das preferências centristas do establishment do partido.
O que fariam os guardiões da opinião liberal-progressista, tão acostumados a ditar o que os eleitores comuns podem esperar ou exigir?
O liberal-progressismo nunca se decidiu por uma resposta realmente unificada; em vez disso, transita por uma série infinita de meta-argumentos para justificar por que Sanders e/ou suas propostas, ambos populares como são, não são adequados para o Partido Democrata e para o país. São muitos os argumentos para listar todos aqui, mas muitos deles compartilham da mesma característica básica: apoio nominal a Sanders em princípio atrelado a uma total rejeição na prática.
Essa linha de argumentos uniu declarações abstratas sobre o que é desejável com afirmações dogmáticas sobre o que é possível (o que, para seus autores, geralmente é muito pouco). Dito de outra forma, os jornalistas progressistas não pararam de descobrir formas cada vez mais inovadoras de explicar por que propostas como um sistema universal de saúde não eram realistas (embora fosse popular e por mais que eles pessoalmente gostariam muito de ver acontecer), e por que a única pessoa defendendo tal pauta seria, de certa forma, um candidato ruim para presidente.
Agora, mais de dois anos depois da derrota do político que era supostamente o mais elegível pelas mãos do Republicano menos popular na história das eleições, Sanders está se candidatando novamente e algumas pessoas estão determinadas a reviver a mesma fórmula para 2020.
Quem puxou o gatilho primeiramente foi o comentarista Eric Alterman, que publicou um pequeno artigo, chamado “The Liberal Case Against Bernie” (Os argumentos liberais progressistas contra Bernie). Como era de se esperar, o texto passa por uma enorme lista de queixas tendenciosas contra Sanders, e algumas delas são inacreditavelmente mesquinhas (Alterman reclama da recente contratação de Sanders de dois jornalistas, porque ambos dignaram-se a criticar outros candidatos e seus planos de governo no Twitter, algo que apoiadores de outros Democratas candidatos à presidência evidentemente nunca fazem).
Pior, Alterman oscila vertiginosamente entre associar-se com as visões de Sanders e deixar implícito que elas são cascas de banana que vão praticamente garantir a reeleição de Trump. “Um perigoso lunático é o presidente dos Estados Unidos, e Sanders, de todos os concorrentes mais expressivos dos Democratas, é quem fará a reeleição de Donald Trump mais provável”, escreveu, antes de continuar:
Deixe-me esclarecer: sou fã e apoio Sanders desde que ele foi eleito prefeito de Burlington, Vermont, em 1981. Tive a honra de ser chamado a testemunhar sua presença no Congresso anos atrás e votei nele na primária presidencial de Nova York em 2016. Fiz isso, entretanto, não porque imaginei que ele pudesse conquistar a nomeação, mas porque esperava que um desempenho forte de Sanders ajudasse a acordar Hillary Clinton para a importância de enfrentar a desigualdade econômica e também para honrar suas corajosas críticas à ocupação da Cisjordânia feita por Israel.
Depois de alinhar-se às convicções de Sanders, Alterman prossegue para considerá-las muito revolucionárias, mencionando o histórico radical do senador de Vermont e sua identificação explícita com o socialismo. Na subsequente confusão de ataques anticomunistas, logo torna-se incerto onde suas próprias críticas terminam e onde começam as críticas das hipotéticas propagandas de ataque Republicano, que ele insiste que afundariam uma campanha presidencial de Sanders:
Sanders ainda era um socialista em 1980, quando foi delegado do colégio eleitoral do trotskista Partido Socialista dos Trabalhadores, que era a favor da abolição do orçamento militar dos EUA e declarou solidariedade a Cuba e ao Irã num momento em que este mantinha mais de 52 americanos como reféns. Eu compartilhava de alguns desses mesmos pontos de vista na juventude, mas não estou concorrendo à presidência. E se um dia eu pensasse que poderia concorrer, provavelmente não teria concordado em comparecer a um comício em 1985 em Manágua, na Nicarágua, com uma multidão cantando “Aqui, lá, em todo lugar, os ianques vão morrer”, enquanto o presidente nicaraguense, Daniel Ortega, censurava o ‘terrorismo de estado’ do meu país (mesmo que o termo fosse adequado). [grifo nosso]
Ironicamente, Alterman continua o texto e afirma que as opiniões de Sanders sobre o conflito Israel-Palestina (opiniões estas que o próprio enaltece apenas alguns parágrafos acima no mesmo artigo) farão muitas pessoas se sentirem “desconfortáveis”, além de mencionar a ameaça de uma campanha de Howard Schultz, que poderia dispersar os votos contra Trump, como mais uma razão para ser contra a indicação de Sanders.
Apesar de toda a distorção na narrativa de Alterman, sua recorrência em vários formatos desde 2016 ilustra uma deterioração mais profunda na maneira em que os liberais progressistas passaram a refletir sobre a política norte-americana após décadas de dominação direitista. Quer aceitemos esses argumentos de boa-fé ou não, suas implicações continuam profundamente conservadoras — basicamente obstruindo esforços ambiciosos da esquerda de qualquer tipo, mesmo quando as evidências disponíveis sugerem que estas propostas sejam imensamente populares e eleitoralmente viáveis. Como essas iniciativas estão destinadas a provocar o reacionarismo de uma forma ou de outra (dos meios de comunicação, do empresariado dos Estados Unidos, do Partido Republicano), Alterman está quase dizendo que é aceitável deixar tais atores limitarem os termos da oposição liberal e de esquerda a seus horizontes de possibilidade.
Há muitos fatores dignos de elogio na candidatura de Bernie Sanders, mas entre suas posturas mais significantes é uma recusa em envolver-se na política de rendição antecipada, ainda promovida de forma errônea por alguns progressistas como uma infeliz necessidade política.
Afinal, por que se render quando se pode lutar?
Sobre os autores
é colunista da Jacobin.