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Ilustração de Marcelo Fiedler.

O pior diplomata do mundo

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Tradução
Eduardo Pimenta

O principal arquiteto da política externa de Jair Bolsonaro combina uma retórica de nacionalismo fanático com uma patética submissão aos Estados Unidos.

O texto a seguir foi publicado na 1ª edição especial da Jacobin Brasil (2019) sobre marxismo cultural. Adquira a sua agora mesmo!


O presidente protofascista do Brasil sempre teve dificuldade para controlar a narrativa desde que chegou ao cargo. Ao longo do mandato, Jair Bolsonaro emitiu várias decisões controversas, apenas para recuar logo depois; seu vice-presidente o contradisse publicamente em diversas ocasiões; e ele fez feio em sua primeira aparição internacional no Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça. Esta última foi particularmente humilhante para um país como o Brasil, que anseia por reconhecimento internacional.

Segundo as análises, o público exclusivo de plutocratas e filantropos em Davos não ficou impressionado pelos comentários chocantemente curtos e forçados do presidente. Heather Long, correspondente do Washington Post em Davos, chamou o desempenho de Bolsonaro de um “grande fracasso”, notando que “ele tinha o mundo inteiro assistindo e sua melhor fala foi chamar as pessoas para vir passar as férias no Brasil”. Outro jornalista compartilhou a reação de um amigo presente no discurso de Bolsonaro: “Nunca passei por nada assim com um presidente aqui… Realmente bizarro”. Investidores ansiosos para capitalizar com o novo clima de negócios do Brasil esperavam um comprometimento firme com a Reforma da Previdência, entre outras medidas regressivas, mas ficaram decepcionados pela apresentação amadora do presidente. Bolsonaro, em vez de tentar consertar o dano, foi ao Twitter celebrar a notícia de que o deputado abertamente gay e de esquerda, Jean Wyllys, havia deixado o país por temer por sua vida.

Eram apenas os primeiros meses do governo, mas enquanto Bolsonaro tropeçava fora no exterior, os escândalos políticos se amontoavam em casa. Relatos de transações financeiras suspeitas envolvendo a esposa do presidente e o assessor de um de seus filhos, senador recém-eleito, apareciam nas manchetes nacionais desde antes da posse. Então, enquanto Bolsonaro jantava com executivos e políticos proeminentes na Suíça, um dos principais jornais do Brasil ligava seu filho Flávio a membros de um esquadrão da morte do Rio de Janeiro conhecido como Escritório do Crime. Esta é a mesma milícia que supostamente esteve envolvida no assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018.

Apesar da atenção crescente da mídia nesses escândalos e tantos outros que se sucederam em 2019, o projeto político geral do clã Bolsonaro permanece intacto. Sua agenda imensamente reacionária é definida por um componente nacional que tem sido destacado de forma ampla e um componente de política externa que em geral tem recebido menos atenção.  

O componente nacional é sem dúvida o aspecto mais ameaçador da presidência de Bolsonaro. Porém vale a pena analisar a sua política externa para entender o que ela revela sobre o papel que o Brasil estabelece para si, no momento em que forças da direita radical mais juntam poder real ao redor do mundo em muitas décadas. Isto é especialmente importante, considerando o papel de liderança do Brasil na América Latina e tudo o que está em jogo agora que a era da chamada “Maré Rosa” de governos de esquerda chega ao fim. O novo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é o ator principal nesse drama.

Cruzada de última hora

Desde que assumiu, Araújo descartou qualquer pretensão de conciliação com os críticos internacionais de Bolsonaro. Pelo contrário, vem traduzindo ansiosamente as opiniões reacionárias do presidente em uma política externa grosseira e imprudente, que já alterou as relações internacionais do país de formas que acenderam alertas entre parceiros comerciais fundamentais e aliados antigos – com a notável exceção dos Estados Unidos, que vê Bolsonaro como um parceiro natural. Araújo busca satisfazer o fervor reacionário que tomou de assalto o corpo político brasileiro, afirmando uma nova visão para o Brasil no cenário mundial. Ao fazer isso, ele fere a posição global do país em nome de um projeto nacional radical cujo exemplo perfeito, mas incompleto, é a belicosidade rasa de Bolsonaro. Araújo, que se imagina um pensador profundo, tem em mente algo um pouco diferente. Na sua visão, a presidência de Bolsonaro seria uma cruzada de última hora para fortalecer o edifício de uma civilização ocidental sob sítio.

Ele não demonstra timidez sobre articular o que estaria em jogo, conforme sua visão de mundo. Num editorial publicado na Bloomberg logo depois de sua posse, Araújo criticou ferozmente o filósofo anglo-austríaco Ludwig Wittgenstein por apresentar uma “desconstrução pós-moderna avant- la-lettre do sujeito humano” que teria estabelecido “as raízes filosóficas de nossa ideologia globalista totalitária atual”. Entender as idiossincrasias intelectuais de Araújo é a chave para compreender o radicalismo simplório e a depravação intelectual do Brasil de Bolsonaro.

Prerrogativas imperialistas

A política externa que Ernesto Araújo vem desenvolvendo é uma rejeição generalizada da abordagem implementada pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), no poder de 2003 a 2016. A partir do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-10), o Brasil assumiu um papel proativo nos assuntos globais, e rompeu com o neoliberalismo da década anterior, quando o governo vendia ativos valiosos do Estado e abraçava a austeridade em troca de um pacote de resgate de US$ 41,5 bilhões do Fundo Monetário Internacional (FMI).

O governo de Lula foi particularmente ativo na América Latina. Em 2005, o Brasil bloqueou a proposta da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), um projeto estadunidense de longa data para ligar América do Norte, América do Sul e Caribe (exceto Cuba) em um acordo comercial como o Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio). As forças progressistas na América Latina resistiram ao que reconheceram como uma imposição neoliberal dos Estados Unidos.

O governo Lula, com um importante aliado na Argentina de Néstor Kirchner, tinha capital político suficiente para afundar o acordo. Em vez de aceitar uma estrutura de livre-comércio desenhada por Washington, Lula optou pela integração regional, e trabalhou para fortalecer o Mercosul, um bloco comercial sul-americano a que receosos políticos brasileiros prestaram pouca atenção desde sua criação em 1991.

Enquanto no poder, o PT apoiou inequivocamente outros governos progressistas da “Maré Rosa” – Venezuela, Equador, Argentina, Bolívia, Uruguai, entre outros –, e dedicou tanta atenção à América Latina que alguns dos vizinhos do Brasil se queixaram de uma tendência arrogante e quase imperialista. “É óbvio que o Brasil só quer nossos recursos”, disse Marco Herminio Fabricano, membro do grupo indígena Mojeño da Bolívia, em 2011. “[O presidente] Evo [Morales] acha que pode nos trair com seus aliados brasileiros.”

Além dessas objeções, os governos do PT enfrentaram críticas crescentes por não terem contemplado um horizonte para além de um modelo de desenvolvimento puramente extrativista, uma tendência que se tornou ainda mais aguda com a sucessora de Lula, Dilma Rousseff (2011-16). Finalmente, em 2016, as tentativas de longa data do PT de mitigar o conflito de classes por meio da cooptação de membros-chave da elite industrial e financeira entraram em colapso por completo.

Sob o PT, o Brasil também aprofundou seus laços comerciais, culturais e políticos com a África. Como observou o historiador Benjamin Fogel num artigo no portal Africa is a Country, “no final do segundo mandato de Lula, o Brasil tinha 37 missões diplomáticas na África, o maior número depois de Estados Unidos, França, Rússia e China, enquanto o comércio do país com o continente africano subiu de US$ 4 bilhões para US$ 24 bilhões”. O papel global brasileiro como parte do bloco geopolítico do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) trouxe reconhecimento internacional – e também fez o Brasil chegar a ser visto com uma certa reticência pelo establishment conservador dos Estados Unidos.

Em 2012, Dov S. Zakheim, em artigo para o National Interest de Henry Kissinger, se preocupava com a insuficiente atenção dispensada “à herança brasileira do manto do Império Português na África, facilitada por sua crescente influência econômica”. Zakheim, que trabalhou no Departamento de Defesa sob os presidentes Ronald Reagan e George W. Bush, não via “nenhuma indicação de que o senso de império, e do direito que o acompanha, está diminuindo [no Brasil]”.

Desde a Guerra Fria, os arquitetos da política externa dos Estados Unidos sempre desconfiaram da diplomacia Sul-Sul independente, particularmente quando esta passou a ser a política oficial de uma nação tão grande e economicamente importante quanto o Brasil. De fato, avaliações alarmistas da liderança do Brasil em assuntos globais eram evidentes tanto na administração republicana de George W. Bush quanto na democrata de Barack Obama, revelando uma continuidade das prerrogativas imperiais estadunidenses, disfarçadas sob discursos oficiais nominalmente diferentes.

Enquanto Bush se incomodava com a independência do Brasil na América Latina, Obama irritava-se com o engajamento do Brasil no Oriente Médio, que o então presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad disse que poderia “ajudar na promoção da paz e da estabilidade”. Quaisquer que sejam suas falhas e sucessos, a política externa do PT era sem dúvida assertiva – uma qualidade que, através das respostas que provocava, expunha as inseguranças do imperialismo estadunidense do século 21.

“Passe ave-maria”

Depois do golpe parlamentar que instalou na presidência o traiçoeiro vice-presidente de Dilma, Michel Temer, o Brasil deu um gigantesco passo atrás no cenário global, em nome de uma política externa supostamente mais realista. “A solidariedade pragmática para com os países do Sul global continuará sendo uma importante estratégia da política externa brasileira”, declarou, em maio de 2016, o então ministro das Relações Exteriores, José Serra, referindo-se a uma nova abordagem internacional que abandonaria projetos políticos mais amplos – por exemplo, a ideia de que o brics pudesse eventualmente servir como um contrapeso para a hegemonia global dos Estados Unidos – em favor de uma interpretação mais estreita do interesse nacional. “Esta é a estratégia Sul-Sul correta, e não a que foi praticada para fins publicitários, com baixos benefícios econômicos e altos investimentos diplomáticos”, argumentou Serra.

Em agosto de 2016, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, se encontrou com Serra no Rio de Janeiro e expressou seu entusiasmo com a mudança da guarda política produzida pelo golpe parlamentar: “Eu acho que é apenas uma declaração honesta dizer que ao longo dos últimos anos, as discussões políticas aqui no Brasil não permitiram o pleno florescimento, por assim dizer, do potencial dessa relação”. A disposição de Temer em adotar um papel bem menor para o Brasil agradou aos Estados Unidos, o que não é surpresa. De fato, a política externa de Temer, enfatizando os interesses materiais imediatos sobre supostos compromissos ideológicos, prefigurava a postura supostamente “não ideológica” de Araújo nos assuntos globais.

Ao contrário de seus antecessores, Donald Trump dificilmente enfrentará um governo brasileiro que desafie suas preferências políticas. Durante a campanha, Bolsonaro não demonstrou nenhum esforço para reavivar a trajetória independente que caracterizava a política externa do Brasil sob o PT e Araújo saudou Trump como “o passe Ave-Maria da Civilização Ocidental”, referindo-se a uma jogada de desespero no futebol americano que é a última esperança de um time vencer ou empatar um jogo, que normalmente acontece nos últimos segundos de uma partida. Durante a campanha presidencial, Araújo buscou as boas graças dos Estados Unidos ao propor uma aliança entre os três maiores países cristãos do mundo – Brasil, Estados Unidos e Rússia – para combater o que ele chamou de “eixo globalista” formado por China, Europa e a esquerda estadunidense.

Outros gestos simbolicamente importantes incluem a retirada do Brasil do Pacto Global pela Migração, da Organização das Nações Unidas (ONU); a ambiguidade quanto a abandonar o Acordo Climático de Paris; a intenção declarada de mudar sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, aborrecendo importantes parceiros comerciais no mundo árabe; e sua participação na agressiva campanha internacional para isolar e, finalmente, remover do governo o venezuelano Nicolás Maduro. A nova disposição do Brasil de ceder sua liderança no hemisfério está ligada ao desejo de se submeter aos Estados Unidos liderados por Trump.

Mas, além dessas considerações, as tendências ideológicas pessoais de Araújo são visivelmente bizarras. Ele representa a epidemia de mentiras convertidas em armas políticas – por exemplo, sobre como o PT pretendia forçar educação sexual explícita para crianças na escola, ou como a esquerda iria proibir a carne vermelha e as relações heterossexuais – que tem dominado a política brasileira, disseminada por canais não regulamentados como WhatsApp e Facebook. A orientação ideológica asinina de Araújo parece ser o que lhe rendeu o emprego. O extremista, em resumo, foi promovido exatamente por ser um extremista.

“Nada menos que um milagre”

Aos 52 anos, Araújo é excepcionalmente jovem, nos padrões brasileiros, para o cargo de ministro das Relações Exteriores. Embora tenha sido diplomata por quase trinta anos, ocupando alguns postos importantes ao longo de sua carreira, nunca administrou uma embaixada no exterior. De acordo com vários relatos, a hierarquia do Itamaraty aparentemente não ficou feliz com o fato de uma figura tão inexpressiva receber o cargo mais importante.

Araújo pode não ter as credenciais costumeiras para o papel que agora ocupa, mas é um ávido discípulo de Olavo de Carvalho, o guru pseudointelectual da extrema direita brasileira que por décadas tem traficado as teorias da conspiração que ajudaram a impulsionar a ascensão de Bolsonaro. No atual clima político do Brasil, essa conexão já é meio-caminho para o sucesso. De fato, em seu primeiro discurso oficial, Araújo disse que, “após o presidente Jair Bolsonaro, [Olavo de Carvalho] talvez seja o grande responsável pela imensa transformação que o Brasil está vivendo”.

Olavo de Carvalho escolheu a dedo Araújo para ser o ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro (e também ajudou a aprovar ou vetar nomes para outras áreas no governo). De forma improvável, pelo seu engajamento com o governo brasileiro, o mundo precisa agora encarar as ideias absurdas de um eremita que não vive no Brasil, onde seu papel decisivo neste governo poderia ser examinado mais de perto, mas na zona rural da Virgínia, nos Estados Unidos.

Carvalho já comentou sobre tantos assuntos diferentes que é difícil chegar a uma teoria unificadora de sua visão de mundo. Mas dois aspectos particularmente inter-relacionados nas falas dele se tornaram lugares-comuns na direita brasileira nos últimos anos: 1) uma definição irracionalmente elástica de “comunismo”, combinada com uma insistência na relevância continuada dessa ideologia como uma ameaça sociopolítica; 2) um pânico fervoroso do “marxismo cultural”, uma nebulosa teoria da conspiração que postula que ardilosos esquerdistas exerceriam controle total sobre quase todos os aspectos do pensamento na sociedade moderna.

Não está de todo claro por que as ideias de Carvalho se tornaram tão preponderantes, mas há alguns elementos a serem considerados. O primeiro fator e indiscutivelmente o mais decisivo é a gradual radicalização de direita que ocorreu ao longo dos treze anos do PT no poder. Depois que o partido de Lula venceu quatro eleições presidenciais consecutivas, milhões de brasileiros passaram a desconfiar abertamente dos processos democráticos, seja porque achavam que as eleições estariam sendo manipuladas, seja porque demagogos populistas teriam efetivamente comprado a lealdade de eleitores ignorantes por meio dos programas sociais do governo.

Como observou o psicólogo social Sander van der Linden, “uma série de estudos têm mostrado que a crença em teorias conspiratórias está associada a sentimentos de impotência, incerteza e uma generalizada falta de capacidade de ação e controle”. Tais sentimentos certamente floresceram entre um número considerável de eleitores anti-PT e membros das elites conservadoras desde pelo menos 2010. De fato, no início do segundo mandato da Dilma, essa multidão perdeu qualquer receio sobre isso e passou a contestar abertamente os resultados de eleições livres.

Uma explosão no acesso à internet é outro fator que explica a proliferação das teorias conspiratórias de Olavo de Carvalho. Ávido youtuber, ele posta críticas frequentes na plataforma que a socióloga Zeynep Tufekci chama de “um dos mais poderosos instrumentos de radicalização do século 21”. Por último, o aumento da educação superior nos governos do PT também pode ter produzido um público maior para argumentos históricos e sociológicos pseudointelectuais. Há muito mais a ser dito sobre como Olavo de Carvalho conquistou o alcance que tem hoje, mas sua influência é agora uma realidade que os progressistas no Brasil precisam encarar de frente.

O argumento de que as forças progressistas exerceriam uma influência decisiva sobre as normas e costumes cotidianos prosperou, apesar (ou talvez por causa) do recuo real da esquerda desde pelo menos o fim da Guerra Fria. Embora o PT tenha se deslocado gradativamente para o centro a fim de conseguir uma vitória histórica em 2002, seus inimigos inveterados alegaram que o partido havia simplesmente desenvolvido uma camuflagem mais eficaz para sua agenda subversiva. Mais recentemente, a noção de que os marxistas furtivamente venceram a guerra cultural se tornou um artigo de fé unificador para os movimentos de direita em todo o mundo.

Mas Olavo de Carvalho não é um mero imitador. Ele tem protestado contra a ameaça supostamente iminente do comunismo na América Latina há décadas. De acordo com ele, a manifestação mais insidiosa dessa ofensiva secreta seria o Foro de São Paulo, uma conferência de partidos políticos de esquerda de mais de vinte países da América Latina e do Caribe, estabelecida em 1990. Steve Bannon, o guru de Donald Trump que tem se aproximado do clã Bolsonaro, também protesta abertamente contra o “marxismo cultural”, buscando formar uma união transnacional de movimentos identitários brancos e cristãos para enfrentá-lo.

Uma recente reunião de cúpula entre Bannon e Olavo de Carvalho representou um encontro de duas linhas distintas, embora ligadas, de reacionarismo histérico. Curiosamente, Bannon tratou Carvalho como o veterano respeitável naquele encontro, sugerindo que as teorizações paranoicas do brasileiro têm um impacto orgânico na política global. Da forma como vem sendo invocado pelos arquiconservadores atualmente, o “marxismo cultural” é uma reconstituição da ameaça existencial de que o fascismo sempre precisou para florescer. Por causa de seus textos numerosos e de sua presença no YouTube, Carvalho deveria figurar de forma proeminente em qualquer análise futura da atual conjuntura.

Ernesto Araújo canalizava a escrita prolífica e os vídeos de Olavo de Carvalho no YouTube em um blog pessoal que manteve antes de se tornar ministro das Relações Exteriores. Nele, Araújo se referia ao “globalismo” como um produto do “marxismo cultural” (uma conexão com claras nuances antissemitas). Para o ministro das Relações Exteriores, Carvalho destaca-se como “talvez a primeira pessoa no mundo a enxergar o globalismo como resultado da globalização econômica, entender seus horríveis propósitos e começar a pensar em como derrubá-lo. Por muitos anos ele também foi a única pessoa no Brasil a usar a palavra ‘comunismo’ para descrever a estratégia do PT e tudo o que acontecia no país, numa época em que todos pensavam que o comunismo era apenas uma espécie de coletivismo que havia morrido com a União Soviética, cegos para a sua sobrevivência sob muitos outros disfarces na cultura e nas ‘questões globais’”.

Araújo também vincula explicitamente Olavo de Carvalho a Bolsonaro, proclamando em um artigo para a revista conservadora New Criterion que “graças à explosão no acesso à internet e, especialmente, à revolução das redes sociais, as ideias [de Olavo de Carvalho] de repente começaram a percorrer todo o país, atingindo milhares de pessoas que haviam sido alimentadas apenas com os mantras oficiais. Essas ideias romperam todas as barreiras e convergiram com a postura corajosa do único político brasileiro verdadeiramente nacionalista dos últimos cem anos, Jair Bolsonaro, dando-lhe um nível totalmente inédito de apoio popular”. Esse era o ímpeto de que o Brasil precisava para se remodelar em um “país nacionalista, conservador e antiglobalista”.

Ele também observou a importância de investigações anticorrupção como a Operação Lava Jato, cujo rosto público, o juiz Sergio Moro, foi nomeado ministro da Justiça de Bolsonaro após presidir um julgamento intensamente político que levou à prisão do ex-presidente Lula. “A investigação sobre o esquema de corrupção do PT – talvez o maior empreendimento criminoso que já existiu – evoluiu e começou a esclarecer as profundezas da tentativa do PT de destruir o país e conquistar o poder absoluto”, afirmou Araújo, retomando aquela que se tornou a linha padrão dos eleitores conservadores que buscavam demonstrar estar motivados por fatores além da simples hostilidade ao PT. Mesmo após revelações sobre a conduta do ministro Moro no The Intercept Brasil, o governo Bolsonaro mantém seu apoio à operação.

Para Araújo, a crescente circulação das reflexões de Olavo de Carvalho produziu algo como uma libertação nacional: “Vivemos por muito tempo limitados pelo discurso globalista de esquerda. Agora podemos viver em um mundo onde criminosos podem ser presos, onde pessoas de todos os estratos sociais podem ter as oportunidades que merecem e onde podemos nos orgulhar de nossos símbolos e praticar nossa fé. O sistema de controle psicopolítico está acabado, e isto é nada menos que um milagre”.

O que Araújo vê como um poder de previsão na obra de Olavo de Carvalho é, na verdade, teoria da conspiração elementar. Em um estilo que o ministro das Relações Exteriores claramente imita, Carvalho invoca tantas referências esotéricas e obscuras em suas falas que seus argumentos podem ser difíceis de identificar. A intenção, com certeza, é exatamente essa: ao parecer abastecer-se facilmente de um poço profundo de conhecimento, Carvalho imbui uma camada de sofisticação àquilo que, essencialmente, não passa de clichê reacionário.

Identificar o PT no poder como uma aventura comunista, por exemplo, é afirmar que as palavras não têm significado. A campanha presidencial de 2018 estava infestada desse tipo de niilismo ideológico, com uma parte esmagadora dos eleitores anti-PT incapazes ou indispostos a defender Bolsonaro nos méritos de suas propostas desumanas, mas ansiosos para atacar Fernando Haddad, o candidato do PT, com acusações absurdas. É nesse contexto que a política externa brasileira está agora sendo elaborada.

“Eu sei quem eu sou”

É nítida a ironia nisso tudo: a direita brasileira por muito tempo acusou o PT de politizar a burocracia federal e conduzir as relações exteriores de forma ideológica. Agora, no entanto, Ernesto Araújo está afastando o Brasil de praticamente todos os grandes países industrializados, exceto os Estados Unidos, reivindicando para si mesmo o manto da elaboração de políticas racionais e imparciais, apesar das questões existenciais que o chanceler invoca em seus pronunciamentos.

Em nome de um antiglobalismo obscuro, o fervoroso ministro que quer ser visto como uma mão firme tem atraído críticas tanto dos neoliberais da The conomist quanto dos liberais do The New York Times. Os investidores internacionais – que veem o Brasil principalmente como um mercado em expansão e um produtor de matérias-primas – esperam que o ministro da Economia, Paulo Guedes, um rígido economista neoliberal treinado na Universidade de Chicago, possa implementar reformas favoráveis aos negócios, apesar da sede de sangue autoritária de Bolsonaro e da cruzada civilizacional imaginada por Araújo.

Ao desenhar um papel global reacionário para o Brasil, Araújo está claramente tentando marcar pontos políticos em casa, já que o conservadorismo descarado invade o mainstream brasileiro como em nenhum momento desde o fim da ditadura. A aposta de Araújo é bem alta, conforme “a luta pró ou contra a ordem global tornou-se uma luta pelo controle da ordem global”, como Quinn Slobodian colocou recentemente em um artigo na revista New Statesman. A onda reacionária transnacional com a qual Araújo comprometeu o Brasil pode muito bem já ter atingido seu ápice. Enquanto isso, ele não tem demonstrado a capacidade de trazer o Brasil de volta da margem radical, caso os ventos da diplomacia internacional comecem a mudar.

Que fará ele, por exemplo, se Trump não vencer a reeleição em 2020? Os relacionamentos em que o Brasil aposta todas as suas fichas hoje poderiam facilmente tornar o país um pária amanhã. Além disso, Araújo pode enxergar uma luta civilizacional compartilhada que colocaria o Brasil ao lado dos Estados Unidos, mas os presidentes estadunidenses nunca trataram a maior nação da América Latina como um parceiro igual. Trump, especialmente, se preocupa pouquíssimo com a América Latina. Não obstante o entusiasmo do senador da Flórida, Marco Rubio, pelo governo Bolsonaro, Araújo está se iludindo se acha que os Estados Unidos vão colocar de lado um histórico imperialista para travar uma guerra conjunta contra valores progressistas.

Araújo usa seu ministério para proclamar em voz alta um novo papel internacional para o Brasil (e para si mesmo). “Nós nos tornamos diplomatas que fazem coisas que só são importantes para outros diplomatas.”, argumentou ele em seu primeiro discurso oficial. “Isso precisa acabar. Deixemos de olhar no espelho e passemos a olhar pela janela. Ou melhor ainda, vamos sair à rua para o Brasil verdadeiro. Não tenhamos medo do povo brasileiro. Somos parte do povo brasileiro.”

O compromisso de Araújo de sacudir a cultura oficial do Brasil não é inerentemente uma má ideia – o Itamaraty é tão elitista quanto qualquer outra instituição em uma sociedade desigual como o Brasil. Mas, ao apelar para um “senso comum” que seria auto-evidente, Araújo está prometendo alinhar a política externa brasileira com as premissas reacionárias do presidente e de Olavo de Carvalho.

Nesse sentido, o discurso de posse de Araújo ofereceu uma destilação de sua visão emocional de política externa: “Aqueles que dizem que não existem homens e mulheres são os mesmos que pregam que os países não têm direito a guardar suas fronteiras, são os mesmos que propalam que um feto humano é um amontoado de células descartável, são os mesmos que dizem que a espécie humana é uma doença e que deveria desaparecer para salvar o planeta”.

Ele continuou com talvez a mais sucinta articulação já vista da onda reacionária que assola o mundo: “Quando eu era criança […] e adolescente […], ouvia muita gente dizendo: ‘O mundo caminha inexoravelmente para o socialismo’. Mas não caminhou. Não caminhou porque alguém foi lá e não deixou. Hoje escutamos que a marcha do globalismo é irreversível. Mas não é irreversível. Nós vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao seu ponto de partida”.

Há muito os brasileiros debatem o equilíbrio adequado entre a autoafirmação nacionalista no cenário mundial e o consentimento com os ditames das potências estrangeiras. A ditadura que governou o país de 1964 a 1985, por exemplo, deferia inteiramente a Washington em seus primeiros anos, com o embaixador do Brasil nos Estados Unidos proclamando que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Conforme o regime envelheceu, setores mais vigorosamente nacionalistas das Forças Armadas prevaleceram e procuraram transformar o país em uma potência hemisférica por conta própria. Até aqui, Araújo combina o discurso obstinado dessa segunda corrente com a essência submissa da primeira.

É possível que, no caos que provavelmente definirá a presidência de Bolsonaro, Araújo acabe caindo. Seu ardente senso de auto-importância casa com o objetivo de Bolsonaro de alterar drasticamente a orientação da política externa do Brasil – de fato, ambos compartilham de um poço profundo de egoísmo em sua crença de que homens durões e assertivos poderiam facilmente resolver problemas complexos. Mas é difícil imaginar Araújo conquistando apoio político independentemente de seu presidente ou de seu venerado guru intelectual. Um golpe potencialmente fatal para Araújo será, portanto, se Olavo de Carvalho ou suas ideias forem efetivamente desacreditadas nos próximos anos.

Outro possível revés para Araújo se chama Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente nomeado para assumir a embaixada em Washington a despeito de seu despreparo abissal para o posto mais importante da diplomacia internacional. Bolsonaro, o pai, até afirmou que, caso o senado rejeitasse a indicação do Bolsonaro, filho, de presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados para embaixador, ele lhe entregaria o cargo do próprio Araújo. A ironia nesse cenário seria nítida: o chanceler de qualificações questionáveis que conseguiu seu posto por questões meramente ideológicas desfeito por um rapaz até menos preparado por razão mais absurda ainda. “Se puder dar um filé mignon ao meu filho, eu dou”, disse o presidente. Itamaraty, nesse caso, seria o corte nobre.

Os militares também poderiam colocar em perigo o emprego de Araújo. Desentendimentos com as Forças Armadas já ameaçam reduzir sua influência. Não há dúvida de que em um confronto direto entre Araújo, o guerreiro cultural que se vê em uma luta civilizacional, e os pragmáticos de sangue-frio nas Forças Armadas, Bolsonaro ficaria com os últimos. No fim das contas, os militares agora ocupam vastos setores do alto escalão no atual governo. Ainda assim, a visão de política externa grosseiramente conspiratória de Araújo já se tornou parte central da imagem nacional e internacional do Brasil sob Bolsonaro. Este é exatamente o rosto que o atual governo parece querer apresentar ao mundo.

Em seu discurso de posse, Araújo relatou uma lição que aprendeu com Dom Quixote por meio de Olavo de Carvalho. Em certo ponto no clássico de Cervantes, o protagonista encontra-se deitado à beira da estrada em algum lugar em La Mancha, delirante e derrotado. Nesse triste estado, Quixote confunde um camponês com o marquês de Mântua. O camponês exasperado responde que não é um aristocrata, que é vizinho de Quixote e que o conhece há anos. O camponês, então, lembra o homem prostrado de que ele não é Dom Quixote, como afirma, mas Alonso Quijano. Dom Quixote para, pensa e responde: “Eu sei quem sou”.

Para Araújo, a moral da história é clara: “Algumas pessoas dirão que o Brasil não é isso tudo que o presidente Bolsonaro acredita e que eu também acredito, dirão que o Brasil não tem capacidade de influir nos destinos do mundo, de defender os valores maiores da humanidade, que devemos apenas exportar produtos e atrair investimentos, pois afinal somos um bom país, quieto e pacífico, mas não temos poder para nada. Dirão que o Brasil é apenas Alonso Quijano. Mas o Brasil responderá: ‘Eu sei quem eu sou’”. Se Araújo conhece como termina a história de Dom Quixote é uma questão em aberto.

Sobre os autores

é professor de história na Hampden-Sydney College em Virginia. Está escrevendo um livro sobre os sentidos políticos do nacionalismo no Brasil no século XX.

Cierre

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Published in América do Sul, EDIÇÃO, Imperialismo, Perfil and Política

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