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Clóvis Steiger de Assis Moura em seu escritório em 1961.

Clóvis Moura e os heróis sem monumentos

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A história oficial do Brasil e as esculturas de escravistas, genocidas e comerciantes negreiros demonstra como o aparelho ideológico dominado pela elite branca constrói uma verdadeira obstrução do passado. Essa não é um debate em torno da memória e do esquecimento, mas uma disputa sobre que futuro queremos construir.

Em 10 de julho de 1925, nascia na cidade de Amarante, interior do Piauí, Clóvis Moura – jornalista, sociólogo, historiador, intelectual público, militante do movimento negro e comunista. Conhecido como o “intelectual quilombola”, Clóvis foi um dos principais responsáveis por abrir as portas para um giro na historiografia brasileira em meados do século XX: a mudança da compreensão sobre o passado escravista e sobre o papel da população negra na construção nacional. 

Em 1959, Moura publica por conta própria, depois do manuscrito ser rejeitado pela Editora Brasiliense (ligada ao Partido Comunista), o livro Rebeliões da Senzala, destacando de maneira inovadora a importância crucial dos quilombos e insurgências escravas para a derrocada do sistema escravista. O livro se contrapunha a teses então corriqueiras sobre a “passividade” do negro brasileiro, e rejeitava a ideia de que o protesto e a rebelião negra eram desprovidos de “consciência política”. Contrariando a opinião então hegemônica nos meios marxistas, Moura identificou o escravismo como elemento sistêmico central na formação brasileira. Inspirando-se de maneira criativa no pensamento do próprio Marx, desenvolveu uma análise de classe do sistema escravista que assinalava a escravidão e o trabalho escravo como fenômenos distintamente modernos, conectados como os circuitos de acumulação do mercado global. A conclusão de Moura é que a abolição só pode ser adequadamente compreendida como expressão da luta de classes e a partir da práxis negra.

O historiador Flávio dos Santos Gomes, no livro História de Quilombolas, assinala a importância da contribuição crítica de Clóvis Moura: 

Obra de referência é Rebeliões da Senzala […], publicada primeiramente em 1959. Ele foi o pioneiro nas abordagens mais sociológicas sobre comunidades de fugitivos e suas relações com a sociedade envolvente. Buscando compreender as dinâmicas da sociedade escravista através dos quilombos, empenhou-se em abordar os quilombolas em várias regiões do Brasil, suas relações com outros movimentos políticos e a ações de guerrilha. Baseando-se em fontes primárias impressas e fontes secundárias, Moura analisou o que chamava de “desgaste” do sistema escravista, levado a cabo, em parte, pelo protesto escravo.

Autor de vasta obra, ao afirmar o primado das lutas negras, Clóvis não só rompeu com as teses culturalistas, que liam a abolição como um avanço civilizatório concedido de cima pra baixo, como também tensionou, por dentro, o próprio eurocentrismo característico de boa parte marxismo brasileiro na época, que relegava o negro a um papel objetificado e imobilizado na história e diminuía a importância do racismo como elemento estruturante do capitalismo no país. 

Por outro lado, é possível ver também em Clóvis Moura uma espécie de precursor de uma perspectiva de estudos culturais, a la Stuart Hall, uma vez que analisou em profusão como a literatura e a historiografia nacional contribuíram para a estereotipação, infantilização e bestialização da população negra – destacando-se aí sua obra pioneira “Preconceito de Cor na Literatura de Cordel”, de 1976.  De fato, a estatura teórica e política de Clóvis Moura é de tal magnitude que deve-se  pensá-lo como parte da constelação de intelectuais negros marxistas da diáspora que revolucionaram a história da escravidão e tematizaram as interseções entre raça e classe, como C.L.R. James, Eric Williams, Walter Rodney e Angela Davis. 

É por isso que hoje Clóvis Moura é parada obrigatória para demolir certos mitos ainda correntes, como a noção de que a teoria marxista seria essencialmente branca ou de que a leitura de marxistas negros requer o contato com autores estrangeiros (nos deixando vezes a mercê de demoradas traduções). 

Releitura do passado a serviço da poesia do futuro

A releitura do passado proposta por Clóvis Moura é sempre mediada pelas problemáticas do presente, pelas lutas no nosso tempo. Lutar pela democratização da memória faz parte, portanto, do esforço de construção de um outro futuro. Um dos argumentos centrais na obra de Clóvis, condensado no livro “As Injustiças de Clio” (1990), é o de que a história oficial do Brasil é um aparelho ideológico de dominação da elite branca, cujo dispositivo principal é o falseamento da história do negro. Esse falseamento não se dá apenas por meio dos livros e narrativas midiáticas, mas também pela escolha de ídolos, ícones e eventos históricos que privilegiam uma forma ainda escravista de enxergar o passado, o presente e o futuro do Brasil. Em síntese: história é poder.

Em Atritos entre história, o conhecimento e o poder, Clóvis deixa explícito: a história oficial seleciona os “heróis da pátria” a partir de uma perspectiva elitista e conservadora, e promove o esquecimento daqueles que, em diversos momentos, buscaram transformar o Brasil a partir das lutas dos subalternos e despossuídos. Por meio de seus intelectuais orgânicos, as classes dominantes estabelecem os critérios que vão determinar quais personalidades devem ser valorizadas e quais devem ficar às margens: 

Daí por que o julgamento de valor de quase todos eles em relação aos fatos e heróis continuará sendo o mesmo estabelecido pelos historiadores do Império. Esses heróis “oficiais” continuam sendo Duque de Caxias, Domingos Jorge Velho, Pedro I, Pedro II, Princesa Isabel, Barão de Cotegipe, Feijõ, Barão de Rio Branco e, também, Deodoro da Fonseca e os demais participantes do golpe militar republicano.

Em contraste, figuras populares, que combateram por projetos alternativos de sociedade, como Zumbi dos Palmares, os membros da Revolta dos Búzios na Bahia (1798), Frei Caneca, Pacífico Licutã e os demais malês, entre outros, “constituem o grande painel de heróis sem monumentos, mas que desarticularam as estruturas de poder em vários momentos da nossa história. Eles não são considerados heróis porque o seu heroísmo passa pela áspera estrada dos derrotados”. 

A obra de Clóvis Moura lança o desafio: se há alguma possibilidade de refundação do país em um pacto nacional que de fato inclua o povo, isso exige nada menos que a demolição da história oficial – uma história branca, colonial e elitista. O ato de fazer história requer, necessariamente, uma agência fora da institucionalidade, bem como a construção de uma ética de desamor pelo Brasil oficial e de amor pelo Brasil real, o Brasil das lutas dos oprimidos. Uma ética, portanto, de desapego à memória dos supostos vencedores: “fazer história e, por extensão, ciências sociais fora dos quadros institucionais e da visão marcial do poder é um ato de coragem”. 

Abaixo os monumentos dos senhores

Dentro da atual polêmica sobre a derrubada de estátuas de “heróis” escravistas coloniais, desencadeada pelos protestos de massa anti-racistas,  a perspectiva de Clóvis nos diz que a desconstrução do lugar inconteste da nossa memória oficial, presente em livros e monumentos, é justamente esse ato de coragem que o fazer prático da história precisa assumir em países como o Brasil. A pronta defesa de esculturas de senhores de escravos, genocidas e comerciantes negreiros demonstra como a obstrução do passado não é só um debate em torno do lembrar e esquecer, mas uma disputa sobre o futuro a ser construído. Que estátuas que até muito recentemente não corriam risco de serem derrubadas sejam agora possíveis alvos de uma fúria histórica militante é evidência de que as lutas contemporâneas contra o racismo e o fascismo carregam no seu bojo a luta pela democratização da memória. 

Clóvis Moura, infelizmente, não viveu para ver esse momento. Faleceu em 2003, após longos meses internado devido a um câncer de garganta. Tendo ingressado no PCB nos anos 1940 e tendo acompanhado o PC do B na ruptura de 1962, terminou seus dias como um comunista sem partido – mas com lado. Fiel ao compromisso da construção da história pela perspectiva dos de baixo, contribuiu com o MNU no início dos anos 80 e com o MST. Seu pensamento permaneceu para sempre marcado pela ideia de “quilobagem”, que caracterizava como um “movimento de rebeldia permanentemente organizado e dirigido pelos próprios negros”. Crítico a tese do “fim da história” e à vitória do neoliberalismo, cuja consequência epistêmica era a profusão de historiadores acadêmicos que procuravam entender o passado a partir dos “critérios neoliberais do presente”, Moura persistiu afirmando a rebeldia como o princípio de dinamização da realidade. Se quisermos seguir nos seus passos, nossa responsabilidade é a de, como ele bem dizia, repor em primeiro plano a ação dos oprimidos como agentes dinâmicos do processo social.

Sobre os autores

é editor da Jacobin Brasil e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Antifascismo, Livros and Política

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