Os eventos de Junho de 2013 ainda gera polêmicas apaixonadas, especialmente quando se tenta explicar o Brasil hoje. Basta o calendário retornar ao fatídico mês, ou eclodirem manifestações de rua como as que agora aparecem contra o racismo, o fascismo e o governo Bolsonaro, que as controversas “Jornadas” retornam ao centro do debate sobre como interpretar a sucessão de fatos que nos trouxe até aqui. Por si só, isso já seria evidência da importância do acontecimento para a história recente do país. No entanto, até hoje não há consenso – sobretudo nas esquerdas – de como caracterizá-lo. Enquanto uns lançam a culpa em 2013 pelo golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, e a subsequente eleição de Jair Bolsonaro, outros continuam a ansiar por um novo Junho a cada esquina.
De saída, é preciso compreender que Junho de 2013 incidiu nos modos pelos quais experimentamos a própria política. É inútil olhar para as manifestações como algo apartado de movimentos e disputas históricas. O que precisamos, ao contrário, é de uma compreensão da política como algo para além do Estado e da institucionalidade, atravessando como as pessoas vivem suas vidas, cruzadas por distintos modos de engajamentos.
Ao considerarmos a política como um espaço atravessado por disputas e antagonismos, é possível ver como os dissensos explicitados a partir de Junho apontam para os limites da democracia liberal ou do “neoliberalismo progressista”, como classifica Nancy Fraser, evidenciando o esgotamento de um modelo de conciliação que, já tendo aparecido no Brasil em diversos momentos, encontrou no “lulismo” sua mais recente versão. O modelo, conforme aparecia no próprio discurso oficial dos governos petistas, era marcado por um jogo de “ganha-ganha”: os pobres finalmente ganharam algum acesso às universidades e a classe C ampliou seu poder de consumo, mas os banqueiros “nunca antes na história desse país” ganharam tanto dinheiro. Foi para esse modelo, baseado em um esforço de conciliação de interesses contrapostos e na aposta na formação de amplos consensos, que junho significou o beijo da morte.
De súbito, 2013 desperta a política institucional de seus sonhos consensuais: a lógica do dissenso volta a se impor. É o próprio Lula quem tem agora, após sair da prisão, constantemente recordado o lugar das rebeliões populares na história brasileira, e como foram tradicionalmente massacradas pelas classes dominantes. Reconhecer o dissenso é olhar para esse passado de lutas como formas potentes de exercitar a política – como uma herança a ser mobilizada pelas lutas do nosso tempo.
Um entorno tecnocomunicativo
Olhar para as novas formas de comunicação oferece um ângulo privilegiado para entendermos o dissenso como modo crucial de caracterização da política. Quais foram as imagens que marcaram esteticamente as Jornadas de Junho? Aquelas gravadas por manifestantes. Em particular, ganhou considerável espaço na época o coletivo de comunicação e cultura “Mídia Ninja”, que surge, inicialmente, disputando os sentidos de jornalismo. Em um segundo momento, o coletivo amplia sua área de atuação, passa a incorporar novos tipos de atividades – “repórteres-ninja” e colunistas – e se aproxima de quadros da esquerda institucional, cobrindo eventos organizados por esse campo. A repercussão da Mídia Ninja foi tão grande que as imagens tremidas gravadas pelo grupo, com seu modo de narrar por dentro das manifestações, acabaram parando no Jornal Nacional, e dois de seus articuladores, Pablo Capilé e Bruno Torturra, foram chamados para o Roda Viva, mais antigo programa de entrevistas da TV brasileira.
Sujeitos políticos tão diversos quanto a Mídia Ninja e o Movimento Brasil Livre (MBL) têm em Junho de 2013 um marco. O MBL, pela direita liberal, procura surfar na onda do sentimento anti-establishment, se apresentando também como contrário às forças políticas dominantes, adotando inclusive uma sigla de sonoridade semelhante ao MPL (Movimento Passe Livre). A estratégia do MBL, no entanto, foi identificar o establishment ao PT, principalmente a partir das manifestações pelo impeachment. Logo em seguida, se colocam em diálogo explícito com o conservadorismo, se engajando em “guerras culturais” contra a “ideologia de gênero”, como no famigerado caso do Queer Museum.
Youtubers e artistas de diversas minorias, muitas vezes ignorados por aqueles que restringem a política ao espaço institucional, jogam nesse momento também um papel importante. Se antes já víamos pessoas de minorias políticas tendo visibilidade na esfera pública, a tendência pós-julho é que esses sujeitos passem a reivindicar uma presença antagônica, que não busca apaziguamentos conciliatórios, mas afirma justamente o dissenso. É o caso, por exemplo, de artistas como Linn da Quebrada, que se apresenta como “terrorista de gênero” e disputa os limites da ideia de representação, propondo tecnologias de participação política diretas. Mas é também o caso do crescimento de youtubers declaradamente marxistas ou socialistas, como Sabrina Fernandes, do Tese Onze, que não apenas abordam a questão das pautas econômicas, mas as articulam com as questões identitárias, de mulheres, LGBTQIs e negros.
Devemos, portanto, olhar o avanço do conservadorismo no entorno tecnocomunicativo também como uma atitude reativa, como a construção de um backlash contra a emergência dessas novas vozes. Explica-se dessa maneira o espaço ocupado por figuras como o youtuber Nando Moura, bolsonarista da linha de frente – recentemente rompido com Bolsonaro. Vista assim, a onda conservadora e sua estratégica comunicativa aparecem menos como um efeito direto 2013 – como nas narrativas que veem junho como uma conspiração da direita – e mais como uma tentativa de responder à liberação desses energias, de interditar as transformações almejadas por esses novos atores que entram em cena. Um exemplo: nos dias após a execução brutal da vereadora socialista Marielle Franco, Nando Moura buscou se articular com os afetos daqueles que desejavam relativizar o crime – sugeriu que Marielle contava com a simpatia da TV Globo e questionou a repercussão do atentado. O youtuber bolsonarista se contrapôs a youtubers como Nátaly Neri e Spartakus que, por sua vez, demonstram engajamentos identitários em torno de corpos de negros, gays, periféricos.
Das jornadas de junho ao bolsonarismo
É possível dizer que Junho de 2013 tem algum vínculo com a eleição de Bolsonaro? Possivelmente sim, mas não seria uma boa explicação: seria o equivalente a pôr a ascensão do neoliberalismo na conta do maio de 1968. Pensar processos culturais e políticos complexos em termos de uma única causa não é apenas uma má análise, mas também uma péssima política. Nesse caso, a consequência é liberar as esquerdas de discutir criticamente sobre suas contradições e limites. A conjuntura é sempre o encontro contingente de tendências, processos e ritmos históricos diversos, heterogêneos, cujo entrelaçamento produz efeitos imprevisíveis e, em alguma medida, abertos. “Quando uma conjuntura se desenrola”, dizia Stuart Hall, “não há como voltar atrás”: a história troca de marcha, o terreno muda – e, de repente, você está em um novo momento. Ao invés da inútil lamentação sobre a mudança de terreno, ou a culpabilização moralista dos eventos que a desencadearam, devemos assumir ativamente a responsabilidade de construir outros futuros, atuando conscientemente no desenrolar da conjuntura, articulando crítica teórica e crítica prática. Ou seja, intervindo politicamente.
É verdade que Bolsonaro, de fato, dialogou com afetos anti-establishment, com o sentimento de que uma época histórica havia se encerrado. Mas como falar em causas e consequências únicas na emergência de um fenômeno tão complexo como a eleição de alguém que historicamente se opôs à própria ideia de democracia? Como deixar de lado a relevância de todos os outros afetos, e interesses, com os quais Bolsonaro se associou?
O bolsonarismo é filho da quebra de viabilidade da nossa eterna conciliação, que ofereceu a oportunidade para uma tempestade perfeita, associando fake news ao conservadorismo de parte significativa da população, o financiamento empresarial direcionado para o disparo de mensagens em massa no submundo do Whastapp, a campanha de lawfare orquestrada contra lideranças populares como Lula, a fragilização institucional resultante no golpe contra Dilma, o crescimento do fundamentalismo neopentecostal com sua organização comunitária e relação com camadas populares, e a incapacidade de uma esquerda institucional, acostumada ao governo, em dialogar com as potências de transformações que se associam a Junho.
Da rede-rua ao poder
Dá pra dizer, contudo, que Bolsonaro foi o único a dialogar com as transformações pós Junho de 2013? Mesmo olhando somente para a institucionalidade (que, como argumentamos, é somente parte da história), fica óbvio também que não. Muitas, Juntas, Bancada Ativista, Gabinetona: são experimentações políticas que partem desse engajamento, trazendo conceitos pouco comuns à política institucional, como mandatos coletivos e mandatos quilombos.
As Jornadas de Junho se relacionam às movimentações políticas que ocuparam as institucionalidades parlamentares nas eleições de 2016, como o Ocupa Política, Marielle Franco, o Muitas, Áurea Carolina, Talíria Petrone, Erica Malunguinho, Renata Souza, Monica Francisco e Dani Monteiro (as três últimas consideradas as sementes diretas de Marielle, por terem sido assessoras da vereadora). A Gabinetona, em Minas Gerais, montou uma estrutura que retira suas paredes e partilha seus assessores, reunindo mandatos de diferentes esferas legislativas – Áurea Carolina (deputada federal), Cida Falabella (vereadora), Bella Gonçalves (deputada estadual) e Andréia de Jesus (deputada estadual) – recupera o espírito de Junho em busca de modos mais democráticos e menos verticais de ocupar a política institucional.
Apesar de estarem nos espaços institucionais, essas militantes utilizam a tribuna legislativa para disputar a ideia de representação e reforçar as lutas de onde vieram, articulando múltiplas identidades – negros, trans, jovens, periféricos, do hip-hop, feminista, socialista, entre outras.
Junho, portanto, não foi uma coisa só: se apresentou de modos distintos em diferentes cidades, e foi experimentado de maneira distinta por diferentes setores sociais. Como não notar, por exemplo, a centralidade da questão étnica no Rio, a partir da importância da discussão sobre a preservação da Aldeia Maracanã, ameaçada pelo projeto de modernização do estádio?
O que Junho de 2013 nos mostra é que é necessário reconhecer essas multiplicidades para que possamos pensar como construir coletivamente outros mundos – e outros projetos de socialismo, que superem a armadilha do consenso como único modo de fazer democracia. Para as esquerdas está colocado o desafio de polemizar a ideia de universal, a fim, inclusive, de superar uma individualização excessiva incapaz de compor coletividades mais amplas, para além da essencialização das identidades.
De volta para o futuro
As manifestações recentes reavivaram o fantasma de Junho. À época, não faltaram identificações de “Junho de 2013” como um novo “Maio de 1968”. São fetichizações que de pouco ajudam e abstraem o caráter conjuntural desses acontecimentos. O fato é que, como realidades vivas, em curso, tudo isso são transformações em disputa. Para a análise de conjuntura, o fundamental é compreender as condições históricas, políticas, econômicas e culturais que fazem emergir as grandes transformações. Para além das possíveis analogias entre as manifestações desse ano e as Jornadas, há questões específicas que marcam a eclosão da nova onda de protestos: de um lado, o conteúdo ostensivamente antirracista, denunciando a gestão necropolítica típica da construção nacional do Brasil, e, de outro, a reação ao fascismo, que se espraia na sociedade e se instala no Palácio do Planalto.
O espectro de “um outro junho” desperta em alguns medo, uma vez que a disrupção e instabilidade deflagrada em 2013 abriu espaço para a conformação de uma extrema-direita politicamente na ofensiva. O medo alimenta um imobilismo: é melhor não sair às ruas, para não sofrer mais golpes. Lawrence Grossberg, herdeiro intelectual de Stuart Hall nos estudos culturais dos EUA, aponta o niilismo passivo como um afeto central na configuração da sociedade estadunidense sob Trump. O medo como afeto político paralisante é algo poderoso. As forças bolsonaristas – mas também as liberais – recorrem ao medo para que um outro mundo não seja desejado. A essa chantagem não devemos sucumbir: mantendo o pé sempre fincado na realidade, nos é obrigatório propor outros mundos e lutar por eles.
“O mar da história”, sugere Maiakovski, “é agitado. Haveremos de atravessar as ameaças ― como uma quilha corta as ondas”. Para atravessar esse mar é necessário superar a imobilidade imposta pelo medo. Será possível elaborar um socialismo que altere nossas condições sociais tão desiguais – de classe, de gênero, e de raça – para superar o colonialismo e a modernidade capitalista? Se conseguirmos produzir alianças entre distintos engajamentos, sem perder de vista a radicalidade sugerida pela ideia do dissenso, daí poderão nascer outros futuros possíveis.
Sobre os autores
é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo Póscom-UFBA e pesquisador associado ao Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e Transformações na Comunicação (TRACC-UFBA).