Recentemente, em meio a uma pandemia de rara precedência, o Brasil vivenciou o estouro de um variado número de protestos. Esses protestos parecem sintonizar, no calor de ondas visíveis que se desprendem do asfalto das ruas em que acontecem, uma insatisfação há muito engarrafada no inconsciente – outrora colonizado – dos corpos que ali se movimentam.
Duas batalhas – ou bandeiras – puxam o carro dos gritos de protesto: a mobilização antifascista, que avança de encontro às variadas investidas fascistas do governo brasileiro em direção a uma cristalização regimental autoritária contra a população, e a indignação antirracista, que, engatilhada pela política de higienização desse mesmo governo e encorajada pelas manifestações do movimento negro estadunidense em vista do assassinato de George Floyd, se posiciona vocalmente na direção de um tensionamento metamórfico das estruturas necropolíticas inerentes à hegemonia do neoliberalismo.
Essas mobilizações, para além de denotar a indignação dos corpos em marcha, demandam uma elaboração das linhas de tensão que trazem à tona. É justamente sobre essas linhas de tensão que pretendo me debruçar, de tal maneira que delas se possa desdobrar alguma mobilização crítica contemporânea. Para melhor compreender a forma como essas linhas se conectam no tempo e a potência dessa conexão, é importante, primeiro, colocar em cena a maneira como, historicamente, tais batalhas sintonizaram, de maneira sensível, uma certa frequência estética e como essa mesma frequência pode nos ajudar a pensar as batalhas de hoje.
Para podermos pensar o tensionamento temporal e o desdobramento contemporâneo das manifestações, a primeira coisa a fazer é um breve retorno às emergências históricas marcantes desse confronto – discursivo, estético e factual – contra essa forma política de aniquilação da diferença e de invenção de superioridade que é o fascismo.
Acefalia
Em 1936, o surrealista Georges Bataille juntou-se aos pensadores Pierre Klossowski e André Masson para a publicação do primeiro número da revista Acéphale. A revista, que viria a ter cinco edições, tinha como intenção uma proposição crítica que colocasse em jogo um contraponto discursivo de grande potência antifascista. No número dois da revista, os pensadores se dedicaram a pensar a obra de Friedrich Nietzsche e sua apropriação pelo fascismo; o título do número era Nietzsche e os fascistas: uma reparação. A ideia que Bataille tentava colocar em cena – tanto nesse número em específico como na revista de um modo geral – era que para construir um desvio antifascista era necessário inventar um mundo sem cabeça, sem a direção única que fundamenta o pensamento fascista (a direção do facho de luz). O surrealista dizia que o fascismo se organiza de maneira a definir um líder hierárquico absoluto – aproximando-se da “redução à unidade” do ideário divino. Para Bataille a revolução social é a forma por excelência de desativação dessa organização em facho, na medida em que uma revolução social, por multiplicar as cabeças atuantes sobre e contra as estruturas opressoras, se constitui policéfala, o que, em turno, retira de cena a possibilidade do líder supremo divino e instaura a proposta acéfala.
Essa proposta acéfala de Bataille ajuda a entender a maneira como as vanguardas artísticas daquele momento propuseram a sua própria posição antifascista. Existia um impulso criativo naquele momento que se inclinava na direção de retirada de poder dessa redução à unidade mencionada por Bataille para propor uma força do múltiplo.
Já em 1924 Bataille juntou-se a um grupo de intelectuais e artistas capitaneados por André Breton – com quem ele, depois, romperia por não ser acefálico suficiente – no intuito de promover um movimento artístico que tivesse como pedra fundamental essa potência do múltiplo. O fim da Primeira Guerra Mundial não diminuiu as tensões que a fundamentaram. Podemos afirmar que a destruição geográfica do espaço e o peso psicológico da Primeira Guerra Mundial adicionaram aos fatores problemáticos da sociedade ocidental e podiam muito bem ser sumarizados na percepção daquela guerra como um gigantesco trauma. Na perspectiva psicanalítica, Sigmund Freud nos disse que são “traumáticos” aqueles estímulos externos fortes o suficiente para furar o escudo protetivo do inconsciente e fazer marca – essa marca deve ser então elaborada. Não seria um exagero pensar mesmo que o fascismo histórico nasce de uma recusa a lidar com esse trauma. E foi a partir disso, de um tipo de relação atenciosa com o trauma, que é justamente informada pelo contexto de elaboração livre do trauma pelo inconsciente artístico avançado pela psicanálise que André Breton começou a pensar o surrealismo.
No Manifesto do Surrealismo de 1924, algumas ideias conversam com a elaboração do sem-sentido (já presente no dadaísmo), com o jogo de formas (de um cubismo), com propostas abstratas de elaboração da realidade bastante presentes nas vanguardas russas e também colocam à disposição uma modulação artística de se elaborar os sintomas políticos presentes à sua maneira. As ideias de Beleza Convulsiva e de Escrita Automática funcionam de tal forma, dentro das possibilidades de desenvolvimento artístico, que o manifesto surrealista engendra, que tomam uma sociedade economicamente prejudicada e crescentemente intolerante e a desmontam, possibilitando assim uma remontagem de elementos do Real na fantasia criativa da obra de arte e criando, em conversa com seu contexto vanguardista, uma sugestão de mobilização acefálica contra a perspectiva contrária de buscar a resposta num “líder supremo”.
De certa maneira podemos dizer que a posição das vanguardas históricas – de maneiras distintas, mas harmônicas – para lidar com o fascismo histórico era a de desmontar a perspectiva do facho, de desabilitar a possibilidade de uma referência única e, então, engendrar um mundo que compreendesse a força da diferença nas posições perspectivas das pessoas.
O novo
Em 1974, já alguns anos após a Primeira Guerra Mundial e no contexto de reverberação dos horrores do fascismo histórico, o poeta Pier Paolo Pasolini publicou um artigo no Corriere della Sera, um jornal de grande circulação na Itália, no qual alertava contra o avanço cultural de um “novo fascismo”. Para Pasolini o “novo fascismo” funcionava a partir de uma lógica de consumismo e de uma busca pela formatação individual, pelo “tornar todos iguais”. Pasolini caracterizava o “novo fascismo” como “americanamente pragmático” referindo-se à hegemonia consumista estadunidense. Para o poeta italiano, existia uma tamanha força nessa hegemonização do consumo e formatação individual, que ameaçava a eliminação por completo da diferença de maneira a reforçar um sistema capitalista que se alimenta da anestesia e da inação.
O crítico de arte Hal Foster abre seu livro O retorno do real com um ensaio intitulado Quem tem medo da Neovanguarda?. Nesse ensaio, o crítico elabora seus pensamentos sobre o acontecimento da neovanguarda e desenvolve uma ideia bastante interessante sobre como pensar o tempo com relação a esse acontecimento repetido-mas-diferido da vanguarda. Para Foster, a relação entre as vanguardas históricas e as neovanguardas é uma questão de aplicação do conceito de a posteriori freudiano. Ele nos diz que para pensar essa relação é preciso entender que “diferentes modelos de causalidade, temporalidade e narratividade são necessários”, pois “há muito em jogo na prática, na pedagogia e na política para que se deixe de desafiar os modelos obscurantistas estabelecidos”. Ou seja: é necessário entender a relação de tensão que sempre se estabelece nessa proposta de jogo da repetição. Essa repetição coloca em cena que “um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori”, na relação histórico-discursiva com nossos ancestrais.
O efeito a posteriori, que Freud pensa no Caso do Homem dos Lobos, tem a ver com o caráter de real do segundo momento traumático, “um trauma acontece na sua repetição” enquanto Foster vai dizer que “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retensão, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos – em suma, num efeito a posteriori que descarta qualquer esquema simples de antes e depois, causa e efeito, origem e repetição”. Essa mesma ideia que Foster aplica à vanguarda como movimento artístico, pode ser aplicada para pensar essa reemergência do fascismo como diagnosticado por Pasolini. As estruturas que formam um pensamento fascista parecem seguir uma lógica cíclica de acontecimentos que repetem e diferem. Ela parece se formar a partir de uma ambiência cultural que passa a caracterizar o outro como lugar do diferente e o diferente como lugar da ameaça.
Na neovanguarda, a proposta acéfala de Bataille ressoava como força histórica, como memória ancestral, mas não era a estratégia mais efetiva contra esse fascismo constituído por anestesia. E é por essa razão que as forças da neovanguarda se movimentaram em direção a intensificação do sensível: para fazer retornar a sensação. Podemos, por exemplo, relembrar a íntima relação crítica da pop-art com a formatação subjetiva que uma sociedade de consumo cristaliza. Essa relação crítica aparece nas telas de Andy Warhol sobre as celebridades de Hollywood que aludem a reprodução enfadonha da indústria e as telas de Richard Hamilton que desconstruíam anúncios publicitários. Foster menciona que essas estratégias da pop-art funcionavam como uma forma de trazer de volta a sensação ao alertar de maneira exacerbada contra a anestesia que elas mesmas apresentavam.
Imagem dialética
Retornemos às manifestações que estouram no Brasil e às suas reivindicações. Como pensar essa emergência – ainda mais uma vez – do fascismo? Como propor uma elaboração crítica sobre ele? Como potencializar uma mobilização democrática? Talvez parte da resposta esteja justamente em sintonizar nossos sentidos – nossa estética – às propostas artísticas que, de maneira acéfala, constroem leituras sobre o contemporâneo e engajam em um diálogo com os eventos sociais.
Em 2003, a poeta Alice Walker publicou um livro intitulado Confiança Absoluta na Bondade da Terra. Em meio aos poemas, Walker – uma escritora que há muito tem sido uma voz poderosa mundialmente no movimento negro e na luta antirracista – escreveu:
Ainda que nos sintamos sós
Ainda que nos sintamos
Sós
Nós nunca
Realmente estamos.
Os Ancestrais,
Aquele chamado
Deus
Aquela chamada
Morte
Proeminentes
Entre Eles,
Repousam em nossos
Ombros
Sempre.
É como se
Nós carregássemos dois
Ninhos de passarinhos
Logo abaixo de nossas
Orelhas;
Neles,
Como tantos ovos,
Os Ancestrais
Repousam.
Eles andam junto
Escutando
Todas as conversas,
Todo
Pensamento,
Observando tudo
O que fazemos.
Frágeis como ovos,
Mas também
Duros na queda,
Não importa
A Eles
Se nos
Desencontramos
De quando em vez,
Que nos tornemos
Perdidos
Ou caiamos.
Tropeços são
Comuns
Em todo caminho
Que Eles viram
(& viram muitos).
O que Lhes importa
É que
Nos corrijamos
Atentemos o olhar
Para onde estamos indo
Que Eles mantenham
A alta vista
Que apreciam
E,
O que é mais crucial
Para nos ajudar,
O Equilíbrio.
No poema Ainda que nos sintamos sós Walker traz à tona uma ideia de arrasadora potência sócio-política: que em nossos corpos reside a memória gestual dos nossos ancestrais; a ideia de que o movimento desses corpos é um movimento de elaboração histórica.
Sete anos depois de publicar Confiança Absoluta na Bondade da Terra, Walker publicou um outro livro de poemas, que em seu título já trazia uma potencialização do poema acima: Tempos Difíceis Demandam Danças Furiosas. No título Walker nos impele a nos movimentar em fúria e, nessa fúria, fazer mover as estruturas históricas com a memória de nossos ancestrais. Nossa dança nunca é solitária, nossos passos nunca são solitários, nosso movimento nunca é solitário, ele reverbera, desdobra e pervive.
Walter Benjamin definia a sua Imagem Dialética como aquela que suspensa, como que atingida por um raio, abria uma constelação em que o pretérito interpenetrava o agora abrindo a possibilidade de construção do porvir.
Talvez, o mais importante das manifestações que acontecem nesse momento no Brasil seja que elas constituem uma dança furiosa – demandada por nossos tempos difíceis – e nessa dança elas constroem uma imagem dialética. Talvez, o poder da poesia hoje seja justamente de fazer dançar a memória gestual dos atos poéticos que a precederam – vanguardas e neovanguardas – e nessa dança sugerir uma espécie de alternativa gestual a quem puder sintonizar sua frequência.
Em sua leitura filosófica da obra de Freud, Eros e Civilização, Herbert Marcuse, lendo as propostas estéticas de Friedrich Schiller, advoga por um pensamento sensual da sociedade nos seguintes termos:
A disciplina da estética instala a ordem da sensualidade contra a ordem da razão. Introduzida na filosofia da cultura, essa noção almeja uma libertação dos sentidos que, longe de destruir a civilização, dar-lhe-ia uma base mais firme e incentivaria muito as suas potencialidades. Operando através de um impulso básico – nomeadamente, o impulso lúdico – a função estética “aboliria a compulsão e colocaria o homem, moral e fisicamente, em liberdade”. Harmonizaria os sentimentos e afeições com as ideias da razão, privaria as “leis da razão de sua compulsão moral” e “reconciliá-las-ia com o interesse dos sentidos”.
No dia 1 de julho de 2020 aconteceu em diversos estados uma tomada de posição social por parte dos trabalhadores de aplicativos, demandando direitos trabalhistas mínimos e uma regulação decente de seu trabalho. A proposta reverberou pelo território nacional e cobrou seu preço das empresas que hoje se estruturam de maneira a abandonar seus trabalhadores alegando uma lógica individualista de “colaboração”, que nada mais é do que uma repaginação mal engendrada da antiga exploração capitalista, que concentra todos os riscos sobre os trabalhadores.
A tomada de posição dos entregadores organizados sintoniza uma carência sensível no campo político da esquerda no Brasil: a de uma tomada de posições corporais (sensuais) contra um sistema financeiro fantasmático e relembra o gesto antifascista proposto por Georges Bataille.
A manifestação age de modo a descolonizar os inconscientes insatisfeitos que marcham pelo asfalto quente, afinando sua posição com as batalhas que mencionei no início deste texto. Toni Morrison nos lembra em seu ensaio Racismo e Fascismo que os dois são irmãos gêmeos e, quanto a isso, vale chamar a atenção para o fato de que o pai desses irmãos não é ninguém menos que o capitalismo. Dessa forma, a tomada de posição dos entregadores de aplicativos contra essa mais nova face neoliberal do capitalismo sintoniza as revoltas antifascistas e antirracistas anteriores e convoca todo um movimento de revolução social para se manifestar no mundo em uma dança furiosamente sensual. As manifestações que agora despontam guardam em si a potência de mobilizar um porvir em meio a essa suspensa imagem em que nos encontramos aprisionados. Um movimento que reintroduz o sensível no discurso político e faz mexer, com nossos ancestrais, a história. Nos tempos difíceis em que vivemos, essa dança furiosamente sensual é uma resposta que reinventa o pretérito no agora – e não podemos demandar nada menos que isso.
Sobre os autores
é professor de Literatura Comparada, Crítico Literário, Curador e Tradutor. Mestre em Literatura, trabalha explorando as consonâncias entre Arte e Política.