Os últimos meses foram marcados por uma série de manifestações no Brasil, nos Estados Unidos e em dezenas de outros países no mundo onde a palavra de ordem que ganhou as ruas foi “black lives matter” (vidas negras importam). Na sequência, uma polêmica tomou as redes: a “fuga de tema” dos protestos, onde o antirracismo estaria sendo ofuscado pelo antifascismo. O foco das manifestações, argumentaram alguns, deveria ser sobre raça antes de tudo.
“No Brasil, luta antifascista não é luta antirracista”, escreve o pensador negro Dodô Azevedo, ponderando que a branquitude brasileira, por mais que possa vir a ser solidária a causa do povo negro, incorrerá sempre no mesmo vício: “incorporar às demandas políticas do povo preto suas próprias demandas, apagando as nossas”. A acadêmica negra Katiúscia Ribeiro complementa:
“O fascismo ameaça a liberdade de todos, por isso é legítimo apelar contra ele, mas cabe reconhecer que nossa população negra vive, no contexto da diáspora, o perpétuo fascismo da branquitude e experimentam o mais longo período de holocaustos da história.”
Katiúscia se refere ao povo africano diaspórico (pessoas negras nascidas fora de África em razão da escravidão) e a perseguição que sofre historicamente. Nesse ponto, traça um paralelo entre o fascismo de hoje e o fascismo de sempre, que é uma realidade ininterrupta para o povo negro desde o nosso sequestro e escravização forçada, a partir de 1530. O que a pensadora aponta é para um contínuo de violência contra àqueles de pele negra, uma violência que segue nos perseguindo até hoje.
Com o privilégio de podermos ver esses meses passados em perspectiva, é necessário levar essas críticas a sério. Entre enfrentamentos diretos com a polícia e postagens vazias de blocos da cor preta nas redes sociais, a pergunta que fica é: em termos práticos, como ser antirracista?
Racismo estrutural, estrutura racista
Mal havíamos começado a falar quando nos ensinaram que “quem descobriu o Brasil” foi um navegador português e seus associados – cujos nomes não valem a lembrança. Mais tarde, em enfrentamento, alguns de nós aprendemos a dizer que “não, foram os ‘índios’ [indígenas] que descobriram primeiro”. O que é uma resposta bonita, mas prejudicada.
Prejudicada porque um país não é descoberto, é fundado. A palavra “descobrir” retira o caráter violento da colonização, genocídio e destruição utilizados pela Coroa Portuguesa e burguesia brasileira na fundação desse país. “Descobrimento” dá um caráter inocente e até científico para o que foi uma conquista brutal, cruenta e traiçoeira.
Seria possível ver o argumento de Katiúscia como uma denúncia a esse contínuo de violência dos europeus (e seus descendentes) contra os povos indígenas e africanos (e seus descendentes). Mas um olhar mais atento vai perceber que essa análise está incompleta; a palavra-chave do argumento é branquitude.
Como foi utilizada, a palavra branquitude significa o lugar de poder que “os brancos” exercem sobre os “não-brancos”. Note-se: é desimportante para a análise os inúmeros exemplos que temos sobre “brancos” que não gozam desses poderes; a questão da branquitude é apontar o supremacismo branco na História, trazido para as Américas pelas caravelas do invasor europeu e inoculado em nossas terras por meio da fundação de seus Estados coloniais e da concentração de riquezas nas mãos de poucas famílias de proprietários.
Contribuir para desmantelar a supremacia branca, como um sistema de poder, deve ser o ponto central das manifestações antirracistas. O problema é que “quando as pessoas falam sobre esse assunto, elas nunca falam sobre a supremacia branca”, como bem aponta a líder feminista negra Barbara Smith em entrevista ao Democracy Now. “Fala-se de relações raciais, fala-se da necessidade de reformar e mudar a cultura policial, mas ninguém quer discutir como essa bagunça começou”. E continua:
“Nós vivemos sob um sistema de capitalismo racial, onde as piores consequências do capitalismo recaem sobre pessoas não-brancas. E é por isso que nós vemos resultados econômicos tão desproporcionais para famílias negras. É impossível falar de raça nos EUA sem falar de classe, assim como é impossível falar de classe sem falar de raça. Racismo, supremacia branca e capitalismo estão absolutamente interligados”.
A fala de Barbara Smith se aplica também ao contexto brasileiro. Lá como cá, vemos recair desproporcionalmente sobre o povo negro os piores efeitos do capitalismo. A pandemia do COVID-19 ressalta essa realidade, seja no aumento meteórico do desemprego, seja na morte em decorrência do espalhamento do vírus.
Pensemos no conceito de racismo estrutural, popularizado no país pela caneta do jurista negro Sílvio Luiz Almeida. Em termos gerais, trata-se de localizar o racismo como peça fundamental, sistêmica, na construção da sociedade em que vivemos. Não vem a ser um tipo específico de racismo, muito menos a “desculpa perfeita” para justificar comportamentos racistas individuais. O conceito chama atenção para o fato de que todo racismo é racismo estrutural, porque a palavra racismo não quer dizer “preconceito” ou “ofensa”: descreve uma relação de poder.
Racismo como relação de poder
Na manhã do dia 23 de junho deste ano, a professora doutora indiana radicada na Inglaterra Priyamvada Gopal postou o seguinte tuíte: “white lives don’t matter. As white lives (vidas brancas não importam. Enquanto vidas brancas)”. Em resposta, Priyamvada recebeu de volta uma enxurrada de ameaças de morte, de violência sexual, e de clamores de paz contra esse “discurso de ódio” que “não tem mais lugar na nossa sociedade”. O tuíte chegou a ser deletado pela própria plataforma.
A professora de Cambridge explicou-se dois dias depois, lembrando que a postagem em questão estava dentro de um contexto crítico a uma ideologia e estrutura social supremacista branca, e não contra a integridade física de ninguém. Gopal vai além e afirma: “É preciso abolir o branco”.
Tal como ocorreu com os irlandeses, com os judeus europeus e vários asiáticos, argumenta Priyamvada, a branquitude se comporta menos como um fato biológico e mais como um clube de acesso restrito, uma ideologia, uma posição de poder:
“Uma característica distinta da branquitude enquanto ideologia é que ela tem meios de fazer-se invisível e por conta disso torna suas operações mais letais e difíceis de combater. Ciências naturais e humanas estão em comum acordo que ‘raça’ não é uma categoria biológica, mas sim uma maneira de criar diferenciais de poder, das quais decorrem consequências práticas. Se a nossa intenção é de remover esse diferencial de poder nas sociedades ocidentais, então a ideologia dominante – branquitude – precisa ser abolida”.
Nesse sentido, o caminho para a desracialização da sociedade começaria pelo topo: negar a raça do opressor enquanto se reafirma o valor da raça do oprimido; fazer frente ao racismo não enquanto a uma mazela social, mas como uma relação de poder que é fundamento da modernidade capitalista. “Teríamos a vontade política de erradicar verdadeiramente a supremacia branca, ou o que queremos é somente cortar as arestas e fazermos mudanças cosméticas?”, pergunta Barbara Smith. “Fico alegre em ver estátuas de racistas sendo derrubadas, mas isso não nos levará necessariamente às condições materiais que nosso povo precisa”, conclui a feminista negra e uma das fundadores do célebre Coletivo Rio Combahee.
Paralelamente, Priyamvada Gopal expõe a inerente contradição de “ideais progressistas” como programas de inclusão baseados em raça ou workshops e panfletos sobre “como não ser um racista”. A professora reconhece que “algumas dessas medidas são sim necessárias, mas elas enfocam somente no sujeito que é vítima, em vez do sistema que perpetua o racismo”.
Como resultado, o combate ao racismo enquanto estética simplesmente acaba sendo, ainda que involuntariamente, uma ferramenta de manutenção da estrutura racista, da supremacia branca, da branquitude.
“Se meu pai me deu um emprego, foi porque eu mereci!”
Não há como lutar contra o racismo sem pôr em xeque a estrutura que o perpetua. Não há como lutar contra o racismo na superficialidade, assumindo somente uma estética antirracista que se recusa a ir à raíz do problema. Não se trata de negar o valor das ações afirmativas, políticas públicas, oferta de bolsa de estudos, distribuição de cestas básicas, etc.. Ninguém há de negar a validade dessas medidas ou a importância que uma “oportunidade de ouro” pode trazer na vida de um indivíduo em extrema necessidade.
O problema fundamental é que a “lógica da inclusão” funciona como um show de calouros. Entre nós, população negra, a sorte e o talento (e um pouco mais de sorte) podem garantir a uma Elza Soares uma vida à altura da sua genialidade; porém, essa lógica não serve para salvar todos os habitantes do Planeta Fome.
O discurso da meritocracia é ainda mais vil quando empunhado contra não-brancos: o trabalho não dignifica nossa alma, não há bolsas de estudo o suficiente para todos, nem todas as nossas crianças são prodígios. O racismo não é só uma violência econômica; é também uma presunção de culpa.
Grada Kilomba, pesquisadora negra portuguesa que se dedica ao estudo psicológico do racismo cotidiano, vê na associação da pele negra à figura do ladrão uma repetição de uma cena colonial. Como um latifundiário que mira um horizonte repleto de produtos agrícolas de seu engenho, a pessoa branca nega fazer parte de uma relação de violência e opressão. Como um escravizador, a pessoa branca nega estar se apropriando do fruto do trabalho alheio.
Na forma de negação, o colonizador vê na pessoa não-branca/colonizada algo que “se recusa a reconhecer em si próprio”. Em outras palavras, o colonizador precisa ver no explorado um “ladrão”, para não enxergar o verdadeiro criminoso no espelho. “No racismo”, conclui Kilomba em Memórias da Plantação, “a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão social”.
A negação é peça fundamental para a manutenção da branquitude em seu lugar de opressão supremacista. Para isso, negam a raça como fator determinante de seu lugar econômico-social, como também negam a autodeterminação dos povos indígenas, porque sabem ,mesmo que inconscientemente, que instaurar a dúvida sobre essa relação de poder dificulta o seu enfrentamento.
Enquanto ideologia dominante em nossa sociedade, a branquitude impõe a ordem estabelecida como algo “natural”, algo que sempre existiu e sempre vai existir, propositalmente confundindo as leis da natureza com a artificialidade das construções sociais. É o que Bourdieu chama de naturalização .
Todos nós humanos temos em comum a morte como fim da vida – é condição de estarmos vivos. Isso é natural, faz parte do funcionamento do universo como ele é. Mas nós, negros, temos uma relação com a morte além da natural, que é naturalizada. O racismo existe como essa determinação artificial sobre os nossos corpos, é o que nos faz mais suscetíveis a morrer ou sermos mortos.
O racismo, essa relação de poder, é indissociável da opressão econômica que sofre o povo pobre brasileiro. É o contínuo da violência colonial que fundou esse país: seja a nível macro, como as políticas de austeridade e seu impacto direto às famílias não-brancas, seja a nível micro, como o entregador de comida chamado de “preto, favelado, olha seu tênis furado” por um branco morador de condomínio de classe média alta.
Faz parte da branquitude buscar a naturalização dessa riqueza acumulada ao longo de várias gerações por meio da negação, como se sua origem racial em nada contribuísse para sua posição econômica. A título de ilustração, é o caso Luciana Salton, tataraneta do italiano Antonio Domenico Salton e herdeira da Vinícola Salton S.A., o maior complexo vitivinicultor das Américas, cujo slogan é “um mundo a explorar”. À revista Veja, Luciana afirma negativamente que “sobrenome não garante emprego”, como uma justificativa do seu mérito pessoal de ocupar um cargo de direção – na empresa da qual é herdeira direta.
A branquitude depende da negação para garantir a ilusão de que vivemos numa sociedade justa. Imersos na ilusão de justiça, naturaliza-se o racismo enquanto essa relação desigual de poder. A concentração de riqueza no país obedece a mesma lógica colonial de apropriação indevida da produção do trabalhador. Não raro, famílias do empresariado brasileiro têm na escravidão a origem do seu poder financeiro.
Antirracismo como enfrentamento à estrutura racista
O reverendo negro estadunidense Martin Luther King Jr. é comumente lembrado como um pacifista, um defensor da paz acima de tudo e em qualquer circunstância, eternamente congelado na frase “I have a dream (eu tenho um sonho)”. Mas o Dr. King não era um homem só de sonhos e palavras de amor; foi um homem pragmático, de ação, preocupado em apontar para o racismo como a continuação de um projeto de poder colonial:
“Ao mesmo tempo em que [os EUA] se recusaram a dar ao negro nem mesmo uma nesga de terra, o Congresso por força de lei distribuiu pelo país milhões de acres de terra. Mas não só deram terras, como construíram universidades com dinheiro público para ensinarem como manter suas fazendas. Não só isso, como providenciaram técnicos agrícolas para especializarem ainda mais aquelas fazendas. Não só isso, como garantiram crédito de financiamento a juros baixos para que se mecanizassem essas fazendas. Não só isso, como hoje muitas dessas pessoas recebem subsídios federais para não produzir. E são essas mesmas pessoas que dizem ao negro que ele tem a obrigação de melhorar de vida sozinho, contando somente com o próprio trabalho.”
Não é coincidência que Luther King tenha se tornado cada vez mais abertamente crítico à estrutura capitalista, e ao racismo que lhe é intrínseco, nos meses que antecederam seu assassinato. Intrínseco, porque o racismo é parte integral do controle social capitalista, mantido pela ordem. Para King, a paz ,como justiça social, deve sobrepor-se a essa ordem desigual, mais interessada em travar guerras que em superar a pobreza.
Buscar a superação do racismo é buscar a superação da pobreza, pensava Luther King. O enfrentamento ao racismo, portanto, precisa cobrar o trabalho dos negros roubado pela burguesia. E recuperar essa riqueza demanda luta coletiva organizada: “É isso que nós estamos enfrentando, é essa a nossa realidade. Agora, quando nós chegarmos a Washington em luta, nós estaremos chegando para sacar o nosso cheque”.
É claro que um cheque não seria o suficiente para abonar essa dívida. Seria preciso muito mais. Mas essa é a riqueza da metáfora: os brancos nos devem; os brancos nos devem porque tomaram de nós os frutos do nosso trabalho, e usaram o Estado para legitimar o roubo que cometeram. A dívida histórica é real, e tanto lá como cá, precisa ser paga em vida, materialmente, não em sonho.
A intelectual e militante negra Angela Davis vê os recentes protestos de escala internacional com esperança: “há tempos só o que víamos eram manifestações voltadas para a responsabilização judicial de policiais que mataram pessoas negras, individualmente”, diz a acadêmica estadunidense. “Hoje, nós vemos novas demandas, demandas de dissolver a polícia como instituição e imaginarmos um modelo diferente de segurança pública”, e conclui, “não sei se já houve um enfrentamento global ao racismo nesse nível, às consequências da escravidão e do colonialismo”.
“Me abrace, me dê um beijo, faça um filho comigo…”
Programas de empreendedorismo voltado para os negros, projetos de economia negra comunitária e cursinhos pré-vestibular voluntários são todas boas ideias, mas insuficientes na luta contra o racismo. Para desmantelar uma estrutura de poder é necessário um projeto coletivo de massas com um horizonte revolucionário. Propostas cosméticas de reforma policial ou o delírio de um capitalismo negro acabam servindo como uma defesa não-intencional da ideologia da branquitude, porque patrocinam na teoria as consequências da escravidão e do colonialismo em que vivemos na prática. Como argumentou Douglas Barros na sua crítica aos limites do antirracismo liberal: “Se nosso antirracismo for conivente com essa forma, se acreditarmos que só iremos até aí, não seremos antirracistas o bastante porque manteremos intocados o significante raça que dá sustentação a ordem excludente e desigual do capitalismo”.
Vivemos, nós todos, num impasse: queremos ser felizes, mas vivemos num mundo triste. Queremos viver em paz e justiça, mas “essa paz” nos mata e “essa justiça” nos prende. Queremos o melhor para nós e para nossas famílias, mas não há pão para todos e por isso nos viramos uns contra os outros.
Precisamos, coletivamente, superar esse impasse. Sermos felizes na construção de um mundo novo. Construirmos a paz e a justiça que queremos, para que nossas crianças vivam uma vida plena. Precisamos pensar coletivamente e levar a luta a eles, os brancos encastelados, porque construir um mundo livre do racismo é nossa tarefa histórica.
O poder que oprime nossa raça, no entanto, não vem somente pelo chicote; vem também pelas migalhas. Negros em destaque hoje são constantemente cooptados, sentam à mesa com Sinhô e Sinhá e voltam à senzala dizendo que abolição é “coisa de branco”. Esses “negros no topo” não defendem os interesses dos negros; defendem os interesses do topo.
É preciso, sim, viver a vida e ser feliz. Merecemos. Mas não podemos nos deixar enganar: o mundo não vai mudar sozinho. Por isso não nos cabe desistir e “sentar na poltrona num dia de domingo”.
Não há qualquer possibilidade de dissociarmos a luta antirracista da luta antifascista – ambas são, necessariamente, lutas contra o sistema capitalista e suas consequências. Ambas são contra a “paz” burguesa, a “paz” da branquitude: uma paz iníqua, injusta e desigual, que não podemos seguir admitindo.
Sobre os autores
é advogado criminalista, comunista, mestre em direitos humanos internacionais pela Arizona State University e doutorando em estudos africanos na Universidade Federal da Bahia.