UMA ENTREVISTA DE
Nicolas Allen e Daniel CarneiroBacurau foi recebido como um dos melhores filmes de 2020, anunciado como um novo marco cinematográfico de filmes com consciência de classe. O filme, dirigido por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, foi comparado pela crítica com Parasita de Bong Joon-ho, e os dois cineastas recifenses aproveitaram os holofotes para debater algumas questões políticas. Era inevitável que os comentaristas enquadrassem Bacurau como uma espécie de manifesto anti-Bolsonaro. Apesar do anacronismo (Bacurau foi filmado antes da vitória de Jair Bolsonaro em 2018), há um grão de verdade na descrição.
Desde o início da carreira, eles se empenham em colocar o Nordeste no centro do mapa cultural nacional. Com o sucesso do Aquarius, de 2016, e especialmente com o Bacurau, eles chamaram atenção internacional, causando consternação entre os conservadores da extrema direita. Os diretores de Bacurau estão numa batalha contra a direita que remonta pelo menos a 2016, quando fizeram um protesto em Cannes denunciando o golpe que a elite brasileira estava impondo à ex-presidente Dilma Rousseff. Desde então, Kleber Mendonça tem sido alvo de sabotagem apoiada pelo governo – tanto Aquário quanto Bacurau foram visivelmente ostracizados para não serem indicados ao Oscar.
O governo Bolsonaro tem sido especialmente agressivo em seus esforços para destruir importantes instituições culturais, como a Agência Nacional de Cinema do Brasil e a Cinemateca Brasileira. Seus ataques violentos ao financiamento das artes e da educação são um movimento típico no manual de extrema direita. Mas também servem como um lembrete de que, apesar de todas as suas deficiências, o Partido dos Trabalhadores (PT) deixou um legado considerável em relação à cultura e à educação que não pode ser apagado tão rapidamente.
Nesta conversa com Nicolas Allen e Daniel Carneiro, editores da Jacobin, os diretores do Bacurau fazem questão de ressaltar esse legado. Como destacam ambos, foi o Nordeste que viu importantes avanços com os sucessivos governos do PT, tanto em termos culturais quanto sociais. Na verdade, o apoio do governo à região historicamente marginalizada foi tão significativo que Juliano e Kleber não podem deixar de reconhecer o entrelaçamento das histórias do PT e de suas próprias trajetórias artísticas.
NA/DCL
Como foi o processo de elaboração do filme ao longo desses últimos anos, em meio a tantas mudanças políticas, com a reeleição da Presidenta Dilma, o golpe de estado, o assassinato da vereadora Marielle Franco e a tragédia da última eleição nacional?
JD
Bacurau nasce de um desconforto, uma discordância que eu e Kleber Mendonça Filho sentimos sobre muita coisa que tem sido produzida no cinema nacional, principalmente documentários sobre o sertão que retratavam seus personagens como pessoas simples, que viviam em lugares isolados e mais pobres. Fomos ao festival de Brasília e vimos uma série de documentários sobre o tema e havia sempre um olhar condescendente sobre os personagens. Concorremos com um curta chamado “Recife Frio” (2009), uma espécie de falso documentário de ficção científica. O Recife assistiu em peso, aliás, o DVD do filme vendeu mais do que o de “Harry Potter” na Livraria Cultura. Foi um hit aqui.
O filme foi premiado e na noite da comemoração começamos a pensar como no Brasil não há uma tradição de cinema de gênero, que tem sua grande fundação e surge com a indústria hollywoodiana nos Estados Unidos. Já no Brasil, o realizador de cinema de gênero nunca foi respeitado – e a gente teve um dos maiores artistas da história da humanidade, o Zé do Caixão, um gênio absoluto do cinema e de qualquer coisa que você possa imaginar. E, ele nunca foi tratado com o devido respeito.
Há uma destruição em curso, é preciso dizer. A Agência Nacional do Cinema (ANCINE) está por um fio, já faz algum tempo. A reconstrução vai levar mais tempo, enquanto que destruir é quase que instantâneo. No primeiro dia da presidência, Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério da Cultura.
Bacurau vem dessa vontade de fazer um filme de gênero que fosse brasileiro. Não é emular o que é feito fora, queríamos fazer o nosso. A natureza dessa tradição do jornalismo e das telenovelas de representar o próprio povo assim, isso já permitiu um mote perfeito que é rico em conflito e contradição, para iniciar um trabalho de roteiro.
Começamos dez anos atrás. Trabalhamos em vários outros projetos ao longo desse tempo, outros filmes, outras coisas, tivemos filhos e Bacurau nunca deixou de ser um projeto nosso, sempre estivemos conversando com e sobre Bacurau, mas era um filme que demandava muito. Então chegou o momento em que Donald Trump deixou de ser uma piada e passou a ser uma possibilidade real à presidência dos Estados Unidos, isso fez com que o roteiro subisse um degrau. Kleber fala muito sobre a subida de tom nos filmes dele, que eu participei: O Som ao Redor (2012) tem um tom, Aquarius (2017) sobe um pouco e Bacurau (2019) sobe lá para cima. Tem muito a ver com essa possibilidade real de eleição de Donald Trump. Nesse momento, a gente descobriu quem seriam os nossos vilões, digamos assim.
Com isso, fizemos o roteiro, durante oito meses. Isso não aconteceu num lugar afastado como uma montanha, com lareira acesa e duas máquinas de escrever, mas a gente estava com os monitores ligados, os podcasts, assistindo filmes novos e antigos, discutindo muita história. E, aí, talvez isso seja algo que explique um certo poder “premonitório” que foi identificado no filme, muita coisa que já estava escrita no roteiro começou a acontecer no Brasil também.
KMF
Nunca conseguiria fazer um filme que não refletisse o que está acontecendo na sociedade. “O Som Ao Redor” foi escrito em 2008, quando o Brasil vivia uma estabilidade muito interessante e até então inédita, o que não significa que estava tudo bem, porque nosso país é tenso e contraditório, como as sociedades em geral são –– mas alguma coisa existia ali, plana e difusa ao mesmo tempo. Um certo mal-estar difuso.
Gravei o filme “O Som Ao Redor” em 2010. Quando saí dele, fui para “Aquarius” e já estava trabalhando com Juliano Dornelles no Bacurau. Quando começamos a filmar “Aquarius” em 2014, no ano da reeleição de Dilma Rousseff, percebi a volta de alguns elementos que não via e ouvia no Brasil, especialmente, uma divisão invisível que para mim é muito visível, invisível porque não existe uma fronteira oficial, entre o Sul e o Nordeste. Como pernambucano, sempre fui muito sensível a essa separação e percebi também que alguns personagens que estavam desaparecidos, ou, até, que não tinha visto nem nos anos 90, pessoas agressivas de um corte político da direita e depois vistos como de extrema-direita, passaram a se manifestar sem tanta timidez.
Em “Aquarius”, escrevi coisas que não teria escrito em “O Som Ao Redor”, de maneira muito natural, como uma cena em que há uma discussão em voz alta onde uma pessoa aponta o dedo na cara de outra. Vemos isso em “Aquarius”, porque estava vendo isso acontecer no Brasil. Durante a filmagem de “Aquarius”, já existia uma intriga política que não fazia sentido do ponto de vista factual, mas era só uma narrativa de mentiras e a própria perseguição totalmente absurda contra o Lula e isso aos poucos foi entrando no roteiro de “Aquarius”.
Durante todo esse tempo a gente estava pensando em Bacurau, um filme de gênero, ficção científica, thriller e aventura, muito brasileiro, mas também um pouco australiano, estadunidense, italiano, com todas essas influências. Em 2016, ano do lançamento de Aquarius, ano do golpe, da expulsão de Dilma do governo federal, foi a eleição de Donald Trump. Isso foi muito impressionante, em uma semana Trump era uma piada e na próxima, era o presidente dos Estados Unidos. De repente, a realidade alcançou o roteiro e a gente precisou, depois da eleição de Trump, aumentar ainda mais a voltagem do filme.
Então, eu e Juliano, sempre estivemos muitos conectados enquanto escrevíamos Bacurau, de olho nas redes sociais, na imprensa brasileira e estadunidense, YouTube, Instagram, etc., percebendo como as pessoas estavam reagindo a tudo isso. O roteiro de Bacurau veio primeiro de um ponto de vista teórico e depois do ponto de vista prático aplicado ao cinema de gênero, foi muito estranho, na verdade, como muitas das ideias se confirmaram a partir da realidade. As pessoas pensam: “Que filme futurista”, tem muita coisa ali que é repetição da realidade. Ela é a base de Bacurau, a repetição histórica.
NA/DCL
Qual a expectativa de vocês sobre o cenário político brasileiro e o cinema nacional?
JD
Há uma destruição em curso, é preciso dizer. A Agência Nacional do Cinema (ANCINE) está por um fio, já faz algum tempo. A reconstrução vai levar mais tempo, enquanto que destruir é quase que instantâneo. No primeiro dia da presidência, Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério da Cultura. A reconstrução vai acontecer. Hoje acordei otimista depois de muito tempo, a gente está se reorganizando. O que é bonito no audiovisual é que a gente aprendeu a se organizar antes da tragédia acontecer, existe uma classe organizada que fala sobre os caminhos a serem seguidos. Acho que esse ciclo da extrema direita que até poucos dias atrás parecia que iria demorar muito mais, segue outro curso com a derrota de Trump e de Bolsonaro, que quase não elegeu ninguém (prefeitos e vereadores) que apoiou nessas eleições. Isso tem um significado, esse ciclo não vai ser tão longo como parecia. O cinema, e, a cultura de modo geral, vai levar mais tempo, porque nunca é prioridade, inclusive, em governos de centro-esquerda.
Foi uma revolução o que aconteceu nos governos Lula, não há como negar que aqui em Pernambuco aconteceu algo que não acontece em lugar nenhum do mundo, com relação ao fomento para o audiovisual. Não sei quanto tempo vai levar para voltar nesse mesmo status em que o Brasil estava, de produzir 300 filmes por ano, isso nunca tinha acontecido antes, a gente estava vivendo a era de ouro. Não eram só 300 filmes sendo produzidos, mas filmes que participavam dos festivais de cinema mais importantes do mundo, o cinema brasileiro estava se impondo como um cinema forte e relevante. O que não acontecia há décadas no Brasil.
O ciclo de destruição aparentemente não vai ser tão longo quanto todo mundo achava que seria, isso é uma ótima notícia. Para mim, a melhor parte, é de que o que se plantou em termos humanos não se destrói, há uma geração de novos realizadores que não vão deixar de fazer filmes por falta de dinheiro, a expressão artística continua e os filmes continuam a ser feitos.
KMF
O lançamento de Bacurau foi constrangedor para esse governo, pelo sucesso, alcance e capacidade de gerar debate. Os números comerciais de público, a capacidade que teve de ser exibido internacionalmente, o prêmio no festival de Cannes, a estreia nos Estados Unidos, tudo isso é constrangedor para um governo que não acredita no produto cultural brasileiro, que não o vê como parte de uma indústria que também é forte economicamente no final das contas.
Para mim, o cinema fala muito alto como identidade, voz e cidadania, é a capacidade que a gente tem de ter o nosso lugar, de falar alguma coisa, é saber que Bacurau passou na “tela quente” da Rede Globo, na mesma programação onde o público assiste “Os Vingadores” e “Homem Aranha 4”. Tudo isso é muito importante. Hoje, a gente tem uma situação no Brasil onde essa indústria está sendo sabotada como parte do plano de governo. Então, como pernambucano, sinto que o clima aqui em Recife ainda é mais saudável do que em outras cidades do Brasil politicamente na área de cultura.
Estamos muito distantes de estarmos organizados da maneira que devemos. No Brasil, acho que a classe trabalhadora está atônita, em grande parte desarticulada, não significa que todos estejam, o “X” da questão é que, quando você tem uma estrutura no melhor dos momentos – que é a democracia – a situação já é complexa, complicada e burocrática. Se quiserem sabotar a política cultural no Brasil, não é muito difícil fazer isso. É isso que vemos hoje. Gosto de acreditar que estamos passando por um momento ruim, além de totalmente estranho e injusto, mas ele vai passar. Com alguns anos, a gente vai conseguir juntar as peças do quebra-cabeça e remontar uma ideia de indústria cultural, que é o que os grandes países fazem.
NA/DCL
Com o cuidado de elaborar uma obra sobre o sertão, com as particularidades que possui, em especial, de evitar estereótipos e não inferiorizar as pessoas, a cultura e a história dali, mas, também, de enfatizar a pluralidade, a comunidade e as vidas locais, como vocês lidaram com o sertão nordestino em Bacurau?
JD
Sempre tivemos a consciência de que a gente não é sertanejo, somos do litoral e da cidade grande. Sempre trabalhamos com a postura de deixar o lugar e as pessoas entrarem no filme, que são uma coisa só. O sertanejo e o sertão são uma coisa só. A construção de uma obra dessas precisa ser muito aberta, você não pode achar que sabe tudo o que você está falando. Existem várias maneiras de se fazer um filme, mas eu não acredito em fazer filmes que não sejam completamente honestos com o objeto do filme, em que o cineasta inventa uma coisa da cabeça dele e impõe isso em determinado lugar. E, acho que esse erro é cometido diversas vezes, na forma como o sertanejo é representado no cinema, no jornalismo e nas novelas.
É preciso pontuar que o sertão é um lugar de riquezas culturais e históricas muito fortes, muita literatura e música. A postura era de estar completamente aberto e deixar com que esse lugar e as pessoas desse lugar ajudassem a construir a história e o olhar do filme. Funcionou muito bem. Outro aspecto, a gente viajou cerca de onze mil quilômetros para achar aquele lugar específico, aquela locação que escolhemos para filmar. Tem pessoas que vivem lá e nos arredores, milhares de pessoas, a gente teve tempo para que as pessoas que cuidavam do elenco fizessem uma pesquisa extensa e conhecessem muita gente. A gente viveu meio que nesse ambiente de comunidade com muito carinho, afeto e respeito.
Isso se reflete, pois existem coisas que estão no filme e não estavam escritas, por conta dessa experiência horizontal que se estabeleceu. O tempo é a grande chave de tudo, a gente teve o privilégio de poder fazer o filme de uma forma não muito comum, estender os prazos, de escolher o local, os atores, etc., investimos o orçamento nisso. E o resultado foi esse. Estávamos confortáveis e o caminho foi o da honestidade, de buscar e construir processos juntos, não fazer imposições nem dizer como as coisas tinham que ser feitas.
KMF
Essa pergunta funciona em três chaves. A primeira é entender qual é a representação do sertão dentro do próprio Brasil através da mídia, da televisão, do jornalismo, das novelas, do cinema, etc., das conversas na rua e das mesas de bar. O que é o sertão para as pessoas? O olhar da mídia brasileira é uma catástrofe, uma visão de sertão simplória, preconceituosa e desinformada. Tudo isso, nos dá um retrato muito ruim do sertão, mas grande parte desse retrato não tem a intenção de ser ruim. Uma coisa é fazer um filme nazista onde todo sertanejo é sub-raça, mas que “ama” o sertão, a simplicidade do povo, o jeito de falar, tudo isso faz parte de uma visão positiva do sertão, mas que na verdade não é positivo. A primeira chave era entender isso foi no festival de Brasília com “Recife frio” (2009), que é uma ficção científica de 25 minutos sobre mudanças climáticas, que foi muito bem recebido, e, lá, vimos alguns filmes, documentários brasileiros, e achamos alguns dos filmes muito invasivos e assim surgiu o desejo de fazer Bacurau.
O que podemos fazer para mostrar a nossa própria visão do sertão? Entra a segunda chave. Eu sou do Recife, moro na cidade e sou do litoral, desde criança, parte da minha família é do sertão, significa muito você receber um telefonema ou mensagem dizendo: “Aparece lá em casa que chegou o queijo”; “Voinha trouxe queijo, lá de Serra Talhada, ou de Petrolina, ou do Crato”; o jeito de falar das pessoas, a literatura, a música e o cordel. Tudo isso faz parte dessa ideia.
Essas duas chaves são importantes. A terceira aconteceu de uma maneira muito linda, quando chegamos para gravar o filme, até mesmo antes, quando fizemos algumas viagens longas para procurar a locação, confirmamos muitas coisas que havíamos observado com o contato com as pessoas e os pequenos museus nas pequenas comunidades. Não sei se Juliano contou para vocês a história de uma senhora que o chamou para ir visitar o museu da comunidade, que era na sala de estar da casa dela, uma parede na sala de estar era o museu. Quando a gente chegou para filmar a produção naturalmente atraiu um grupo grande de pessoas que vieram trabalhar no filme, como carpinteiros, eletricistas, atores, atrizes, etc., não só nós nos alimentamos muito do que eles tinham para mostrar e falar durante a produção, como muitos deles passaram a ser personagens em Bacurau.
Aconteceu uma coisa muito linda, que, soube depois, aquelas pessoas que trabalharam com a gente durante seis meses, na verdade eram os marginalizados das comunidades onde viviam. Havia poetas, pessoas trans, músicos, palhaços, atores, doidos, homossexuais… os maluquinhos de cada comunidade. A primeira vez que a gente falou sobre isso foi numa entrevista ao Mubi na praia, no festival de Cannes, eu e Juliano meio que travamos e começamos a chorar. Hoje, consigo falar sobre isso sem parar a conversa e chorar. Foi muito forte quando a gente entendeu que essa união que aconteceu lá foi anormal. Foi uma experiência difícil de narrar.
NA/DCL
Muito se falou da violência do filme, alguns afirmaram que Bacurau estimula práticas de violência, lembro desse pudor e moral reprovando outros filmes também, como se fossem “panfletos”, fizeram isso com outros realizadores, como Quentin Tarantino e Cláudio Assis. Qual a sua impressão sobre isso e como vocês trabalharam a violência no filme? Em algum momento, surgiu a pergunta: “Vocês não acham que exageraram, não?”
JD
É muito importante dizer que não temos controle da reação do público e, dentro do filme, a violência não é retratada como algo banal ou divertido. No cinema comercial vemos a violência sendo retratada dessa forma, como um fetiche. Já no nosso a violência é uma tragédia. O filme termina e não há uma celebração. Ninguém comemora o que acabou de acontecer, as pessoas estão devastadas, as pessoas estão com raiva e tristes. É isso que está no filme. E faz toda a diferença. A violência é uma coisa feia, Kleber fala uma coisa que gosto muito, uma pessoa puxar um revólver e apontar para alguém, é algo muito extremo e sério, e, está acontecendo. Começamos a assistir isso no cinema como se não fosse nada, como se fosse alguém escovando os dentes. É assim que o cinema constrói a violência. No Bacurau não é assim.
KMF
Em primeiro lugar, um filme é muito do que você esperava que ele fosse ou desejaria que fosse. E quando você finalmente o assiste, e, precisa sincronizar o que você criou na sua cabeça e o que você viu. Nós partimos para fazer um filme de gênero, de ação e aventura, do tipo que o cinema brasileiro não tem feito ou não faz, por questões de mercado e de cultura. Queríamos um filme que fosse muito brasileiro e honesto com relação ao que ele mostra. Não tenho problema em utilizar a violência gráfica no filme, se essa violência faz parte da construção do filme e da narrativa dos livros de história, da realidade e da sociedade que estou retratando e, também, da história do cinema. A história do cinema precisa ser contemplada. A violência gráfica sempre existiu, mas a partir do final dos anos 50, houve um aumento na forma e capacidade de mostrar a violência, e, hoje, a violência é muito livre, cabe a você entender se ela é “livre” de uma maneira estúpida, ou, se tem uma base humana e é considerada relevante.
Se você assistir “O Poderoso Chefão” (1972), o que pensa? “Aquilo ali é uma violência idiota ou gratuita? Ou uma violência que faz parte do comportamento humano e das relações humanas, de poder, de dinheiro, de política?” Eu acho que faz parte do filme e faz muito sentido. Quando Pacote fala, “Tu não acha que Lunga exagerou, não?” Acho uma fala muito boa, porque é muito importante que um filme não normalize a violência. Não aguento mais ver filme que por qualquer coisa uma pessoa puxa uma arma e aponta para outra, isso não aconteceu na minha vida e espero que nunca venha acontecer. Peguei numa arma uma única vez, num set de filmagem, 23 anos atrás, e, estava sem balas, peguei e falei: “Pô, pesado né?” Então, a ideia de violência é dramatizada, tenho um interesse muito grande em dramatizar a violência, ela precisa fazer parte de um contexto e, infelizmente, o contexto de violência no interior do Brasil é muito forte. Não estaríamos sendo verdadeiros com o filme, com o Brasil, com o mundo… fazendo um filme onde cada cena tivesse um elemento de violência verdadeiro pelo menos na filosofia e na forma humana de retratar aquele momento. Estou totalmente seguro e tranquilo da forma como nós lidamos com isso nesse filme.
Agora, para quem acha que o filme é irresponsável, é impossível você fazer um filme que utiliza da violência com forma gráfica, ou, se fosse o caso, questões de sexualidade, que ainda são um tabu no cinema. Toda vez que alguém cruza a barreira do mercado e expõe a sexualidade de maneira franca e explícita, sem chegar à controvérsia de que aquilo não era necessário, que é gratuito. Bacurau recebe muitas críticas de gente que diz que tem muita gente nua no filme. Nua e feia. Nua e fora dos padrões. Mas, a ideia é justamente essa. As pessoas ficam nuas e isso faz parte da vida. Posso jurar para você, que elas foram filmadas com muito respeito pela câmera. O espectador sabe disso, as cenas de nudez não são engraçadas, elas são só naturais. São pessoas que estão nuas em sua intimidade.
NA/DCL
O que você pensa em relação a tantas conexões e aproximações ao redor do mundo com Bacurau, considerando a forma como foi feito e sendo um filme que parte de uma cidade do interior e mostra realidade social específica do Brasil, particularmente, do nordeste? Notadamente, com detalhes sobre o colonialismo e a formação da sociedade brasileira, como um quadro na casa grande que tem escrito embaixo: “Que saudade da casa grande”. Como foi realizar o filme com o encontro de pessoas vindas de diversas partes do mundo naquele local (atores estrangeiros, cineastas de Recife, atores locais, pessoas do sertão, atores de vários estados, etc.?
KMF
Essa pergunta é difícil de responder, sobre como cada frame desse filme é importante para nós, no sentido de trazer informações sobre o Brasil. Vejo que o filme foi e tem sido muito bem recebido mundo afora. Agora vai estrear no Japão. Quando você faz um filme e o exibe fora do Brasil, da sua cultura, é uma coisa, quando ele passa na sua cultura é a mesma coisa só que diferente, é curioso, mas tem muita gente que diz assim: “Eu não sei nada sobre o Brasil, mas eu acho que…” Como se fosse uma prerrogativa você ter lido um livro sobre o Brasil.
Quando o filme começa a ser exibido internacionalmente, havia um posicionamento que vinha de pessoas no Brasil, uma percepção do cinema brasileiro de um olhar incrivelmente conservador, e que chamamos de “complexo de vira-lata”.
Quando eu vi “Os incompreendidos” (1959) de François Truffaut, não sabia nada sobre a França, era adolescente e gostei do filme, quando vi os filmes norte-americanos sem saber falar inglês, também gostei dos filmes. Essa falta de prática de alguns estrangeiros de lidar com o filme brasileiro e talvez de ficarem em pânico por não terem entendido o filme, quando na verdade tudo envolve o comportamento humano e a história. Essa troca que é desigual, a gente recebe muito, mas oferece pouco, manda pouca coisa de volta. E, quando manda, as pessoas ficam confusas porque não tem a prática de decodificar isso. É difícil responder à pergunta porque nós fizemos o filme de maneira intuitiva e apaixonada, não é um filme que foi arquitetado e construído como uma peça de engenharia.
É claro que passamos muito tempo trabalhando nos filmes, inclusive, estou agora trabalhando num novo roteiro, e a grande pergunta quando você está escrevendo é: “Essa ideia é boa? Essa ideia vai ser boa amanhã? E daqui há um mês?” Depois de um mês você lê e parece que é uma boa ideia, mas tem ideias que vão se esfarelando. Acho que Bacurau teve muito tempo para pensar nas ideias. Você citou “saudade da casa grande” e quando a gente chegou naquele lugar que é uma casa grande, de extração de algodão, no sertão do Rio Grande do Norte, viu que, de fato, os quadros da sala da casa grande são aqueles: “O que você vai fazer? Mandar tirar, por que não combina com minha decoração?” Deixa lá e filma esse quadro. Outra coisa incrível, num dos anexos dessa fazenda, eram os equipamentos de cultivo do algodão: todos os equipamentos são norte-americanos, de Massachussets, máquinas de “Cotton Gin”: “O que você vai fazer, tirar esses equipamentos daqui?” Não, traz a câmera. Vira um momento no filme.
O colonialismo está em todos os lugares, ele está nesse iPhone aqui e naquela máquina de “Cotton Gin”. Eu gosto de filmar esses detalhes, embora apareça rápido. A experiência completa de ter feito Bacurau é a experiência perfeita para quem trabalha com cinema. Juntar todas essas pessoas diferentes no sertão do Rio Grande do Norte. Para mim, que ainda continuo sem entender como aquele lugar nunca foi realmente filmado, entram várias outras questões, voltando lá para a primeira pergunta, do que o sertão deve ser quando aparece numa tela de cinema.
Mostramos um sertão verde e isso não está no padrão da imagem e do cinema brasileiro. Bacurau faz algo que o “Baile Perfumado” (1996) já tinha trazido, que é mostrar que essa área fica verde, mas não tem nenhum problema com isso, não há problema dela estar verde e continuar sendo sertão. Quando o filme começa a ser mostrado internacionalmente, havia um posicionamento que vinha de pessoas no Brasil, uma percepção do cinema brasileiro de um olhar incrivelmente conservador, e que chamamos de “complexo de vira-lata”, por que diziam que esse filme jamais seria exibido nos Estados Unidos, que é um filme anti-americano, mas o filme apenas questiona o papel dos Estados Unidos no mundo. O filme foi bem recebido lá e no resto do mundo e a ideia é muito clara. No final das contas há uma percepção muito forte no filme, ele tem muita compaixão, é o que pega muito a gente, não é uma obra cínica, onde a vida não vale nada, a vida é importante em Bacurau.
A sequência na casa de Damiano, uma das mais discutidas do filme, foi muito importante termos feito como fizemos. De início, uma ação extremamente violenta, uma cena de guerra, seguida por uma perplexidade dos dois personagens brasileiros, querendo saber porque “vocês estão fazendo isso com a gente” e a personagem invasora não sabe responder. Esses detalhes fazem o filme viajar muito bem, fosse só um filme de ação onde o invasor perdesse a cabeça e Damiano chegasse com um machado para terminar, não seria o filme nosso.
Não é uma fórmula, é uma reação orgânica, a reação à Bacurau foi orgânica. E é muito bonito ver isso ao vivo numa sala de cinema cheia, é algo que eu nunca vou esquecer. Até o início da pandemia, o filme ficou em cartaz por quase seis meses no cinema São Luiz, que é no centro da cidade do Recife, uma sala 1952, conservada como palácio intacto muito bem equipado. Durante um mês, até em dias da semana, havia fila dando volta no quarteirão, exatamente como eu lembrava quando era criança e ia ao São Luiz. O valor do ingresso lá é cinco vezes mais barato do que num “Multiplex”. Então, é uma experiência muito autêntica de ver um filme em condições muito boas no centro da cidade, uma quebra de paradigma para um lançamento de filme nacional.