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Luiz Inácio Lula da Silva assina a ata de fundação do PT no Colégio Sion, em 10 de fevereiro de 1980 em São Paulo. Foto de Juca Martins.

História, natureza e crises do PT

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Permanecem vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Só não se pode julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio.

Há quem sustente que um partido se define, essencialmente, pela sua linha política: ou é de direita, centro, esquerda ou as variantes intermediárias. Esse critério é insuficiente e ingênuo. O vocabulário político oscila e flutua de acordo com a mudança nas relações sociais e políticas de força. Quando a situação política é reacionária tudo se desloca para a direita. Quando a situação é revolucionária tudo se desloca para a esquerda. Há muita dissimulação no vocabulário político.

Nos anos oitenta florescia no Brasil o ascenso das lutas operárias e populares que se agigantaram a partir da luta pelas Diretas Já. Como o pêndulo das forças sociais se inclinava a favor dos trabalhadores, a principal representação do núcleo duro da burguesia paulista assumiu o nome de partido da social-democracia. A social-democracia é o nome dos partidos socialistas de base na classe trabalhadora, os herdeiros da tradição da II Internacional. O PSDB nunca foi social-democrata. Sempre foi um partido burguês liberal.

Já Bolsonaro, que chega ao poder em um momento reacionário, é um neofascista que governa em uma coalizão de extrema direita, mas é retratado pela mídia como se fosse apenas de direita. Bruno Covas é apresentado como a representação de uma candidatura de centro, mas, evidentemente, o herdeiro de João Dória é uma candidatura de direita.

Há quem defenda que um partido se define somente pela sua ideologia. Também é inadequado. A imensa maioria dos partidos no Brasil não tem ideologia, são legendas eleitorais que defendem interesses. Na verdade, o tema exige uma pluralidade de critérios.

Partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a transformação da sociedade. Ou podem ser explicados: a) pela história de suas lutas e linhas políticas, sobretudo, as internas; b) pelo confronto entre suas  posições  quando estão   na   oposição,   e   quando   se aproximaram  do  poder; c) pelos valores  e  ideias  que  inspiram  seu programa d)  pela  composição  social  de seus membros, militantes ou simpatizantes, ou dos seus eleitores, e da  sua  direção; e) pelo regime  interno  do seu funcionamento; f) pelas formas de seu financiamento; g) pelas suas relações internacionais. Todos estes critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução.  

Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas apenas uma caracterização de classe é inevitável. Mas análises marxistas são o estudo das contradições em distintos níveis de abstração, levando em conta as necessárias mediações.

Burguês-operário

O Partido dos Trabalhadores (PT) nunca foi um partido social-democrata clássico. O PT é o maior partido da classe trabalhadora brasileira. Mas não é somente isso. É um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral, reformista, mas não mantém relações orgânicas com a burguesia. Eleitoral, não porque concorre a eleições. Eleitoral, porque depende dos mandatos e do financiamento público para sobreviver e não de seus militantes. Reformista, não porque luta por reformas mas porque defende a regulação do capitalismo, portanto, a colaboração de classes. Porém, a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas.

Reconhecer a natureza de classe de um partido não equivale a dizer que sua política representa os interesses de uma classe determinada. É muito mais complicado. Um partido reformista pode ser, ao mesmo tempo, um instrumento útil à preservação do capitalismo e independente da burguesia. Resumindo uma longa história e sendo, portanto, “brutal”, o PT nos anos oitenta, com alguns erros táticos, foi um instrumento poderoso de representação dos interesses da classe trabalhadora, portanto, cumpriu um papel progressivo. Ao longo dos anos noventa oscilou muito e, depois que conquistou a presidência, prevaleceu o papel regressivo.

Mas a prova no “laboratório da história” sobre o PT foi que, em 2016, a classe dominante brasileira se unificou para derrubar o governo Dilma, e organizou uma campanha para criminalizar sua direção e destruir, politicamente, sua máxima liderança Lula. Ficou claro que a operação Lava Jato, embora tenha atingido, também, PSDB, MDB, PP e outros, obedecia a uma estratégia de luta pelo poder, e isso exigia deslocar o PT. A fúria de classe da burguesia confirmou que não se tratava de um partido burguês. Mas não sejamos metafísicos, vamos além do aristotelismo.

Portanto, dialeticamente, em outro grau de abstração, todos os partidos reformistas, são partidos institucionalmente estabelecidos no regime democrático liberal, e com o PT não é diferente. Marxistas da III Internacional usavam uma fórmula para identificar esta integração na defesa dos limites da ordem estabelecida: definiam a social-democracia como um partido operário-burguês. Ou seja, partidos independentes da classe trabalhadora, com direções que capitulavam diante da pressão da classe dominante. Quando no governo, com responsabilidades de gestão do Estado, ocupavam o lugar de um partido burguês-operário.

Mas como tudo que existe, os partidos, também se transformam. E o PT de 2021 é evidentemente muito diferente do PT de 1980. Quando uma análise histórica se resigna a procurar um fio de continuidade nas organizações político-sociais se está renunciando ao maior desafio. O verdadeiro desafio é descobrir o que muda. A direção do PT é a mesma, mas esses 41 anos não passaram sem consequências e o partido que nasceu da luta contra a ditadura, se ainda existe, não é o mesmo.

Crises e mais crises

Acontece que mudanças não são possíveis sem crises. Os partidos podem ter crises de crescimento, alimentadas pelos seus acertos e desafios que crescem quando aumenta a influência, ou crises produzidas pelos seus próprios erros. Mas não é possível não ter crises.

No seu processo de transformações, o PT enfrentou muitas delas. A dinâmica política de sua evolução não foi linear. O critério para definir quais entre as crises foram as mais importantes será sempre controverso. O que importa não é se os que viveram o processo compreenderam a gravidade da mudança que aconteceu, mas se o desenvolvimento futuro do partido confirmou que ela foi decisiva.

Uma crise é significativa quando um partido sai dela diferente daquilo que era. Nos anos oitenta, por exemplo, quando a situação política evoluía à esquerda pela mobilização mais ativa dos trabalhadores e da juventude, o PT teve a primeira ruptura, pela direita, mas foi indolor, tanto na vanguarda mais orgânica, quanto na área de influência eleitoral. 

Três deputados federais, Bete Mendes e José Eudes, liderados por Airton Soares, romperam com o partido em 1985, porque o PT não apoiou a Aliança Democrática que elegeu, indiretamente, a chapa Tancredo/Sarney no Colégio da ditadura, na sequência da campanha das Diretas em 1984. Saíram sozinhos, sem deslocamentos militantes, e sem maiores sequelas na influência eleitoral, que permaneceu ascendente.

 A atitude da bancada do PT em relação à Constituição de 1988 foi simbólica deste período. O PT votou contra a Constituição, mas assinou o documento, portanto, assumiu, publicamente, o respeito pela legitimidade do novo regime. A direção do PT sabia muito bem que estava sinalizando para a classe dominante um compromisso. A burguesia brasileira compreendeu o gesto. Não por acaso, a direção do PSDB, liderada por Mário Covas, unanimemente, declarou o apoio a Lula contra Collor no segundo turno em 1989. Assim como Brizola.

O processo de adaptação político-social aos limites do regime democrático que saiu da eleição de Tancredo/Sarney no Colégio Eleitoral era nebuloso para a maioria da vanguarda ativista que tinha referência no PT, porém, como a evolução futura confirmou, dramaticamente, já era irreversível.

O que não impediu que, ainda durante alguns anos, uma parcela majoritária da esquerda petista considerasse que o PT, e mesmo sua direção, seria um partido “em disputa” para o projeto da revolução brasileira. O que obscurecia a mudança política profunda era que, embora o PT tivesse deixado de ser oposição ao regime democrático, era não só oposição ao governo Sarney, mas uma oposição intransigente e radical.

Uma nova crise se deu no início dos anos 1990, quando a situação política evoluía à direita, a direção do PT convocou o 1º Congresso e decidiu expulsar a Convergência Socialista, uma corrente trotskista. Dali para frente, as tendências de esquerda que ainda resistiam no PT ficaram sabendo qual seria o seu destino, se desafiassem a direção. Esta crise não teve repercussão eleitoral, mas deixou uma ferida incurável: uma das correntes da ala revolucionária tinha sido eliminada.

Paradoxalmente, após o impulso do Fora Collor, a corrente majoritária do PT — que tinha ido muito longe no seu giro à direita no 1º Congresso de 1991 — dividiu-se, originando a Articulação de Esquerda. Esta corrente, unida às tendências marxistas, como Democracia Socialista (DS) e Força Socialista, entre outras, obteve uma vitória no Encontro Nacional do PT em 1993. A reação, no entanto, foi um fogo de palha e se revelou efêmera.

No Encontro Nacional de 1995, na sequência da segunda derrota presidencial de Lula em 1994, a Articulação de Esquerda, liderada por Zé Dirceu, recuperou a maioria, em aliança com a tendência Nova Esquerda, liderada por José Genoíno e Tarso Genro.

A ilusão de que se tratava de um partido em disputa desmoronou, e a inflexão da situação política após a vitória de FHC, e a derrota da greve petroleira em 1995, foram o bastante para que a luta interna no PT se transformasse num assunto, essencialmente, de profissionais políticos.

Uma nova inflexão a direita veio em 1999, quando a direção do PT, depois da terceira derrota eleitoral em 1998, impôs um veto à campanha “Fora FHC” que a CUT e o MST vinham construindo, com o apoio da esquerda interna e externa ao PT, e que tinha realizado em Brasília um ato com cem mil ativistas. A campanha pelo “Fora FHC” de 1999 tentava mimetizar o que tinha sido a campanha “Fora FHC” em 1992, e ameaçava crescer em um contexto de intenso mal-estar provocado pela superdesvalorização do real no primeiro mês do segundo mandato de FHC. O posicionamento inflexível da direção do PT, revelou para a classe dominante a disposição de fazer a disputa respeitando o calendário eleitoral do regime.

Em julho de 2002, a direção do PT articulou através de Palocci, ex-prefeito em Ribeirão Preto, um Manifesto no lançamento da quarta candidatura de Lula à presidência, desta vez tendo como vice Zé Alencar, um dos maiores empresários do setor têxtil, e senador por Minas Gerais. Este documento declarava com todas as letras a decisão de honrar o pagamento da dívida pública, interna e externa. Finalmente, em 2003, depois da eleição de Lula, a direção do PT não hesitou em expulsar Heloísa Helena, e os deputados que vieram a fundar o PSOL, com a acusação de indisciplina por terem se recusado a votar no Congresso a reforma da Previdência.

 Foi uma nova crise e transformação. Ficou comprovado que a mão da direção do PT não iria tremer no seu giro estonteante. A classe dominante brasileira compreendeu o significado deste gesto. Foi, porém, em 2005, que o PT atravessou a primeira crise séria de sua história. Uma parcela do núcleo duro de sua direção foi decapitada, politicamente, pela crise aberta pelas denúncias do mensalão. Apesar de indisfarçável satisfação das frações majoritárias da classe dominante com o governo Lula desde o primeiro mandato, a oportunidade aberta pela crise do mensalão precipitou uma ofensiva política burguesa no Congresso Nacional e na mídia, com algum eco nas ruas, que fez Lula tremer no Palácio do Planalto.

 O mensalão obrigou o PT a sacrificar Zé Dirceu e outras lideranças, e deixou o partido, parcialmente, desmoralizado entre os setores mais críticos do ativismo operário e popular, em boa parte da vanguarda estudantil mais lutadora, e nos meios da intelectualidade de esquerda mais honesta.

A quarta grande crise foi precipitada pelas Jornadas de Junho de 2013. Milhões nas ruas em mobilizações contra todos os governos, sem poupar os governos liderados pelo PT, em especial, Haddad em São Paulo, e Dilma Rousseff em Brasília, puseram fim aos dez anos de estabilidade política no país. Em um mês, os índices de aprovação do governo Dilma desabaram, vertiginosamente, de quase 60% para menos de 30%, em um contexto muito semelhante ao do “que se vayan todos da Argentina em dezembro de 2001, das mobilizações da “geração à rasca” em Portugal, dos “indignados” da Puerta de Sol em Madri, ou mesmo dos jovens desempregados na Grécia. Depois de setembro de 2013, todavia, o governo liderado pelo PT se recuperou. 

A incerteza política, e a tendência à estagnação econômica, contaminaram os humores da maioria da burguesia, que elevou o tom de suas exigências, depois da reeleição de Dilma em 2014 contra o PSDB de Aécio Neves. Mas a direção do PT, confiante na quarta vitória eleitoral, não hesitou em jogar mais uma vez a cartada da conciliação para responder aos ultimatos da classe dominante e concordou em entregar o Ministério da Economia a Joaquim Levy, indicado pelo Bradesco, um dos os maiores bancos do país, ao mesmo tempo que aceitam o ajuste fiscal que mergulhou o país na mais grave crise de recessão que se viveu desde o fim da ditadura. Essa decisão precipitou a quinta grande crise: o rompimento da geração mais jovem da classe trabalhadora com o PT implicou um salto de qualidade.

Mas nada pode ser comparado à ofensiva iniciada em 2015 que culminou no impeachment de Dilma Rousseff em 2016, passou pelo governo Temer, pela condenação e prisão de Lula e eleição de Bolsonaro em 2018. Desde então, o PT vive a grande crise, embora com resiliência entre os ativistas veteranos que vieram dos anos oitenta e noventa, em especial, nos setores mais organizados da classe trabalhadora.

As lutas de hoje

Agora, no início de 2021, o PT vive sua sétima grande crise. Ainda com alguma resistência de militantes veteranos que viveram nas décadas de 1980 e 1990, geralmente oriundos de setores mais organizados da classe trabalhadora, o PT perdeu para o PSOL em termos de influência sobre a juventude. É difícil prever qual será o destino de um PT envelhecido, quando consideramos a entrada em cena do vigor do movimento feminista, da potência das jovens negras, da audiência ambiental, do impulso dos LGBT, e da ruptura da nova geração de trabalhadores, os mais instruídos da história do país, porém, precários e com salários miseráveis.

Quem vai liderar a próxima onda de lutas no Brasil? Será que a esquerda aceitará o desafio de derrotar Bolsonaro? Não é possível prever se o PT vai se recuperar ou não porque ainda estamos em uma situação desfavorável e defensiva na luta contra o Bolsonaro. Mas a história sugere que a luta de classes pode assumir formas lentas antes de se tornar vertiginosa.

O mesmo vale para o destino dos partidos.

Sobre os autores

é historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor do livro "O Martelo da História. Ensaios sobre urgência da revolução contemporânea"(Sundermann, 2016).

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Ditaduras, Eleições, Golpes de estado and Política

2 Comments

  1. […] enxergam ou não valorizam quem efetivamente se dedica a travar esta luta cotidiana. Os artigos de Valério Arcary e de Lincoln Secco, publicados recentemente em Jacobin Brasil, trazem bons exemplos precisamente […]

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