Em Abril de 2020, em reação à pandemia da COVID-19, Jürgen Habermas sinalizou que “agora, a incerteza existencial está se espalhando global e simultaneamente nas cabeças dos indivíduos conectados pela mídia”. E completou: “Nunca antes houve tanto conhecimento sobre nossa ‘falta de conhecimento’ e sobre a limitação de agir e viver na incerteza.”
Habermas está correto ao afirmar que esta “falta de conhecimento” não se relaciona apenas à pandemia em si – sobre ela, ao menos, temos especialistas – mas, sobretudo, às suas consequências econômicas, sociais e psíquicas. Notem sua formulação precisa: não se trata simplesmente em não sabermos o que se passa, nós sabemos que não sabemos, e esta “falta de conhecimento” em si é um fato social, refletida na ação de nossas instituições.
Agora sabemos que, digamos, nos tempos medievais ou no início da modernidade, eles sabiam muito menos – mas eles não sabiam disso porque se baseavam em alguma base ideológica estável que garantia nosso universo como uma totalidade significativa. O mesmo vale para algumas visões do comunismo, até mesmo para a idéia de Francis Fukuyama sobre “fim da história” – todos eles presumiram saber para onde a história estava se movendo. Além disso, Habermas está certo em localizar a incerteza nas “cabeças dos indivíduos conectados pela mídia”: nosso link com o universo conectado expande tremendamente nosso conhecimento, mas ao mesmo tempo nos joga em uma incerteza radical (somos hackeados? Quem controla nosso acesso? Seria fake news o que estamos lendo?). Os vírus atacam em ambos os significados do termo, biológico e digital.
Quando tentamos adivinhar como nossas sociedades ficarão após o fim da pandemia, a armadilha a evitar é a futurologia – a futurologia, por definição, ignora nossa “falta de entendimento”. Futurologia é definida como uma previsão sistemática do futuro a partir das tendências atuais da sociedade. E aí reside o problema – a futurologia extrapola principalmente o que virá das tendências atuais. No entanto, o que a futurologia não leva em consideração são “milagres” históricos, rupturas radicais que só podem ser explicadas retroativamente, uma vez que acontecem.
Talvez devêssemos mobilizar aqui a distinção que funciona em francês entre futur e avenir: “Futur” é o que quer que seja que virá depois do presente enquanto “avenir” aponta para uma mudança radical. Quando um presidente ganha a reeleição, ele é “o atual e o futuro presidente”, mas ele não é o presidente “que virá” – o presidente “que virá” é um presidente diferente. Então, o universo pós-coronavírus será apenas outro futuro ou algo novo “por vir”?
Isso dependerá não apenas da ciência, mas de nossas decisões políticas. Chegou a hora de dizer que não devemos ter ilusões sobre o resultado “feliz” das eleições nos Estados Unidos, que tanto aliviou os progressistas de todo o mundo. They Live [Eles Vivem] (1988) de John Carpenter, uma das obras-primas negligenciadas da esquerda de Hollywood, conta a história de John Nada, um trabalhador sem-teto que acidentalmente tropeça em uma pilha de caixas cheias de óculos de sol em uma igreja abandonada. Quando ele coloca um par desses óculos enquanto caminha na rua, ele percebe que um outdoor de publicidade colorida dizendo para desfrutarmos de barras de chocolate agora simplesmente exibe a palavra “OBEDEÇA”, enquanto outro outdoor com um glamouroso casal dando um abraço apertado, visto através dos óculos, ordena quem está vendo a “CASAR E REPRODUZIR”.
Ele também vê que as cédulas de dinheiro trazem as palavras “ESTE É SEU DEUS”. Além disso, ele logo descobre que muitas pessoas que parecem atraentes são, na verdade, alienígenas monstruosos com cabeças de metal. O que agora tem circulado na internet é uma imagem que remonta uma cena de They Live, agora trazendo Joe Biden e Kamala Harris: vista diretamente, a imagem mostra os dois sorrindo com a mensagem “HORA DE CURAR”; vistos através dos óculos, eles são dois monstros alienígenas e a mensagem é “HORA DE OBEDECER”.
Isso, claro, faz parte da propaganda de Trump para desacreditar Biden e Harris como fantoches de máquinas corporativas anônimas que controlam nossas vidas. No entanto, há (mais do que) um grão de verdade nisso. A vitória de Biden significa “futuro” como a continuação da “normalidade” pré-Trump – e é por isso que houve um suspiro de alívio após sua vitória. Mas essa “normalidade” significa o governo do capital anônimo global, que é o verdadeiro alienígena em nosso meio.
Eu lembro que, quando jovem, havia o desejo por um “socialismo com um rosto humano” em contraposição ao “burocrático” socialismo de estilo Soviético. Biden hoje promete um capitalismo global com um rosto humano, onde por trás deste rosto a mesma realidade continua. Na educação, este “rosto humano” assumiu a forma de nossa obsessão com “bem-estar”: pupilo e estudantes devem viver em bolhas que os preservarão de todos os horrores da realidade externa, protegidos pelas regras do “politicamente correto”. A educação não tem mais a intenção de ter um efeito moderador para nos permitir confrontar a realidade social – e quando nos dizem que essa segurança evitará colapsos mentais, devemos contra-atacar exatamente com a afirmação oposta: essa falsa segurança nos deixa vulneráveis a crises mentais quando temos que enfrentar nossa realidade social. O que a “atividade de bem-estar” faz é fornecer um falso “rosto humano” para nossa realidade, em vez de nos permitir mudar essa própria realidade. Biden é o último presidente do “bem-estar”.
Mas então, por que Biden ainda é melhor do que Trump? Os críticos apontam que Biden também mente e representa o grande capital, só que de forma mais educada – mas, infelizmente, essa forma importa. Com sua vulgarização do discurso público, Trump estava corroendo a substância ética de nossas vidas, o que Hegel chamou de Sitten (em oposição à moralidade individual).
Esta vulgarização é um processo mundial. Vejamos o caso europeu de Szilárd Demeter, um comissário ministerial e chefe do Museu Literário Petőfi em Budapeste. Demeter escreveu em um artigo de opinião em novembro de 2020: “A Europa é a câmara de gás de George Soros. O gás venenoso flui da cápsula de uma sociedade aberta e multicultural, que é mortal para o modo de vida europeu.” Ele passa então a caracterizar Soros como “o Führer progressista”, insistindo que seu “exército progressis-ariano o endeusa mais do que o próprio Hitler”.
Se questionado, Demeter provavelmente dissuadiria suas declarações como sendo exageros retóricos; isto, no entanto, de forma alguma desfaz suas terríveis implicações. Esta comparação entre Soros e Hitler é profundamente antisemita; coloca Soros no patamar de Hitler, dizendo que a sociedade aberta e multicultural promovida por Soros não apenas é tão perigosa quanto o Holocausto e o racismo ariano que o sustentava (“progresssis-ariano”) mas ainda pior, mais perigosa ao “modo de vida europeu”.
Haveria, então, alternativa para esta terrível visão para além do “rosto humano” de Biden? Recentemente, a ativista climática Greta Thunberg ofereceu três positivas lições sobre a pandemia: “É possível tratar uma crise como uma crise, é possível colocar a saúde das pessoas acima de interesses econômicos e é possível ouvir a ciência.”
Sim, mas estas são possibilidades – também é possível tratar uma crise de tal forma que alguém a use para ofuscar outras crises (como: por conta da pandemia nós devemos esquecer o aquecimento global); também é possível usar a crise para tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres (o que efetivamente aconteceu em 2020 com uma velocidade sem precedentes); e também é possível ignorar ou compartimentar a ciência (basta lembrar aqueles que se recusam a tomar vacinas, o aumento explosivo de teorias da conspiração e etc.). Scott Galloway nos traz uma imagem mais ou menos precisa das coisas em nossos tempos de corona:
Estamos avançando em direção a uma nação com três milhões de senhores servidos por 350 milhões de servos. Não gostamos de dizer isso em voz alta, mas sinto como se essa pandemia tivesse sido amplamente inventada para levar os 10% mais proeminentes ao 1% mais alto, e rebaixar o resto dos 90% ainda mais para baixo. Decidimos proteger empresas, não pessoas. O capitalismo está literalmente entrando em colapso sobre si mesmo, a menos que reconstrua esse pilar de empatia. Decidimos que capitalismo significa ser amoroso e empático com as empresas e darwinista e severo com os indivíduos.
Qual seria, então, a saída para Galloway? Como podemos prevenir o colapso social? Sua resposta diz que “o capitalismo irá colapsar em si mesmo se não houver mais empatia e amor”. “Estamos entrando no ‘Grande Reset’ e está acontecendo rápido. Muitas empresas serão tragicamente extintas pela queda econômica da pandemia, e aquelas que sobreviverem existirão de uma forma diferente. Organizações serão, de longe, mais adaptáveis e resilientes. Equipes que trabalham distantes que seguiam prosperando com menos supervisão vão lutar por esta mesma autonomia daqui em diante. Funcionários vão esperar que executivos continuem liderando com transparência, autenticidade e humanidade.”
Mas, novamente, como isso será feito? Galloway propõe a destruição criativa que permite a falência de negócios e, ao mesmo tempo, protege as pessoas que perdem seus empregos: “Nós deixamos as pessoas serem demitidas para que a Apple pudesse surgir e colocar a Sun Microsystems fora do mercado, e então nós tiramos essa incrível prosperidade e temos mais empatia com as pessoas.”
O problema, claro, é: quem é o misterioso “nós” na última frase citada, ou seja, como, exatamente, a redistribuição é feita? Será que apenas tributamos mais os vencedores (neste caso, a Apple), enquanto lhes permitimos manter sua posição de monopólio? A ideia de Galloway tem um certo talento dialético: a única maneira de reduzir a desigualdade e a pobreza é permitir que a competição de mercado faça seu trabalho cruel (deixamos as pessoas serem demitidas), e então… o quê? Esperamos que os próprios mecanismos de mercado criem novos empregos? Ou o Estado? Como o “amor” e a “empatia” são operacionalizados? Ou contamos com a empatia dos vencedores e esperamos que todos se comportem como Bill Gates e Warren Buffett?
Acho essa suplementação dos mecanismos de mercado pela moralidade, amor e empatia totalmente problemática. Ao invés de nos permitir obter o melhor dos dois mundos (egoísmo de mercado e empatia moral), é muito mais provável que obtenhamos o pior dos dois mundos.
O “rosto humano” dessa “liderança com transparência, autenticidade e humanidade” são Bill Gates, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, as faces do capitalismo corporativo autoritário que se apresentam como heróis humanitários, como nossa nova aristocracia celebrada em nossa mídia, citada como sábios humanitários. Gates doa bilhões para instituições de caridade, mas devemos lembrar como ele se opôs ao plano de Elizabeth Warren de um pequeno aumento nos impostos. Ele elogiou Thomas Piketty e uma vez quase se proclamou um socialista – verdade, mas em um sentido distorcido muito específico: sua riqueza vem da privatização do que Karl Marx chamou de nossos “bens comuns”, nosso espaço social compartilhado no qual nos movemos e nos comunicamos.
A riqueza de Gates não tem nada a ver com os custos de produção dos produtos que a Microsoft está vendendo (pode-se até argumentar que a Microsoft está pagando a seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto), ou seja, a riqueza de Gates não é resultado de seu sucesso na produção de um bom software a preços mais baixos do que seus concorrentes, ou em maior “exploração” de seus trabalhadores intelectuais contratados. Gates se tornou um dos homens mais ricos do mundo ao se apropriar e permitir que milhões de se comuniquem através do meio que ele privatizou e controla. E da mesma forma que a Microsoft privatizou o software que a maioria de nós usa, contatos pessoais de nossa rede são privatizados no Facebook, compra de livros pela Amazon, ou a pesquisa pelo Google.
Há, portanto, um grão de verdade na “rebelião” de Trump contra os poderes corporativos do mundo digital. Vale a pena ouvir os episódios do podcast War Room, de Steve Bannon, o maior ideólogo do populismo trumpista: não se pode deixar de ficar fascinado por quantas verdades parciais ele consegue combinar em uma mentira geral. Sim, sob Barack Obama, a lacuna que separa os ricos dos pobres cresceu imensamente, grandes corporações ficaram mais fortes… mas sob Trump esse processo continuou, e Trump reduziu impostos, imprimiu dinheiro principalmente para salvar grandes empresas e etc.. Estamos, portanto, enfrentando uma terrível falsa alternativa: um grande reset corporativo ou populismo nacionalista, que acaba sendo a mesma coisa. “O Grande Reset” é a fórmula encontrada para mudar algumas coisas (até mesmo muitas coisas) de forma que as coisas permaneçam basicamente as mesmas.
Mas existiria, então, uma terceira via, fora do espaço dos dois extremos da restauração da velha normalidade ou de um “Grande Reset”? Sim, um verdadeiramente ótimo reset. Não é nenhum segredo o que precisa ser feito – Greta Thunberg deixou bem claro. Primeiro, devemos finalmente reconhecer a crise pandêmica como ela realmente é, parte de uma crise global em todo o nosso modo de vida, da ecologia às novas tensões sociais. Em segundo lugar, devemos estabelecer o controle social e a regulação sobre a economia. Terceiro, devemos confiar na ciência – confiar, mas não simplesmente aceitá-la como uma agência que toma as decisões.
Por que não? Voltemos a Habermas, com quem nós começamos: nossa situação é que somos compelidos a agir enquanto sabemos que não sabemos todas as coordenadas da situação em que estamos, e a omissão funcionaria, ela própria, como um ato. Mas não seria esta a situação básica de toda ação? Nossa grande vantagem é que sabemos o quanto não sabemos, e esse saber sobre nosso não-saber abre o espaço para a liberdade. Agimos quando não conhecemos toda a situação, mas esta não é simplesmente a nossa limitação: o que nos dá liberdade é que a situação – em nossa esfera social, pelo menos – é, em si mesma aberta, não totalmente pré-determinada. E nossa situação perante a pandemia certamente está aberta.
Aprendemos a primeira lição agora: “lockdown” não é suficiente. Eles nos dizem que “nós” (nossa economia) não podemos permitir outro bloqueio rígido – então, vamos mudar a economia. O bloqueio é o gesto negativo mais radical dentro da ordem existente. O caminho além, para uma nova ordem positiva, leva à política, não à ciência. O que deve ser feito é mudar nossa vida econômica para que ela consiga sobreviver a bloqueios e emergências que com certeza nos esperam, da mesma forma que uma guerra nos obriga a ignorar as limitações do mercado e encontrar uma forma de fazer o que é “impossível” em uma economia de livre mercado.
Em março de 2003, Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa dos Estados Unidos, aventurou-se em uma espécie de filosofia amadora ao falar sobre a relação entre o conhecido e o desconhecido: “Existem conhecidos conhecidos. Essas são coisas que sabemos que conhecemos. Existem desconhecidos conhecidos. Ou seja, existem coisas que sabemos que não sabemos. Mas também existem desconhecidos desconhecidos. Que são coisas que não sabemos que não sabemos.” O que ele esqueceu de acrescentar foi o quarto termo crucial: os “desconhecidos conhecidos”, coisas que não sabemos que conhecemos – que é exatamente o inconsciente freudiano, o “conhecimento que não conhece a si próprio”, como costumava dizer Lacan.
Se Rumsfeld pensava que os principais perigos no confronto com o Iraque eram os “desconhecidos desconhecidos”, as ameaças de Saddam Hussein das quais nem sequer suspeitávamos, o que devemos responder é que os principais perigos são, pelo contrário, os “desconhecidos conhecidos”, as crenças e suposições rejeitadas que nem mesmo temos consciência de serem aderentes a nós mesmos.
Devemos ler a afirmação de Habermas de que nunca soubemos tanto sobre o que não sabemos por meio dessas quatro categorias: a pandemia abalou o que nós (pensávamos) que sabíamos, nos tornou cientes do que não sabíamos que não sabíamos e, na forma como o enfrentamos, nos apoiamos no que não sabíamos que sabíamos (todas as nossas presunções e nossos preconceitos que determinam o nosso agir, embora nem tenhamos consciência deles). Não estamos lidando aqui com a simples passagem do “não saber” para o “saber”, mas com a passagem muito mais sutil de “não saber” para “saber o que não sabemos” – nosso conhecimento positivo permanece o mesmo nesta passagem, mas ganhamos um espaço livre para a ação.
É em relação ao que “não sabemos que sabemos”, nossas presunções e preconceitos, que a China, Taiwan e Vietnã, saíram muito melhor do que a Europa e os Estados Unidos. Estou ficando cansado da afirmação eternamente repetida “Sim, os chineses contiveram o vírus, mas a que preço?” Eu concordo que precisamos de um Julian Assange para nos dizer o que realmente aconteceu lá, toda a história, mas o fato é que, quando a epidemia explodiu em Wuhan, eles impuseram imediatamente o bloqueio e paralisaram a maior parte da produção em todo o país, claramente dando prioridade às vidas humanas e não à economia – com algum atraso, é verdade, eles levaram a crise muito a sério.
Agora eles estão colhendo a recompensa, até mesmo na economia. E – sejamos claros – isso só foi possível porque o Partido Comunista Chinês ainda é capaz de controlar e regular a economia: há controle social sobre os mecanismos de mercado, mesmo que de maneira “totalitária”. No entanto, mais uma vez, a questão não é como eles fizeram isso na China, mas como nós devemos fazer isso em nossos países. A forma chinesa não é a única forma eficaz, não é “objetivamente necessária” no sentido de que, se você analisar todos os dados, terá de fazê-lo à maneira chinesa. A epidemia não é apenas um processo viral, é um processo que ocorre dentro de certas coordenadas econômicas, sociais e ideológicas que estão abertas a mudanças.
Agora, bem no final de 2020, vivemos uma época louca em que a esperança de que as vacinas funcionem se mistura à depressão crescente, e até mesmo ao desespero, devido ao número crescente de infecções e às descobertas, quase diárias, de novos “desconhecidos” sobre o vírus. A princípio, a resposta a “o que deve ser feito?” é fácil: temos os meios e recursos para reestruturar o sistema de saúde para que sirva às necessidades das pessoas em tempos de crise e etc.. No entanto, para citar a última frase de “Louvor do Comunismo” de Brecht, de sua peça A Mãe: “É a coisa simples, que é tão difícil de se fazer.”
São muitos os obstáculos que tornam tudo tão difícil de se fazer, sobretudo a ordem capitalista global e sua hegemonia ideológica. Precisamos então de um novo comunismo? Sim, mas o que sou tentado chamar de comunismo moderadamente conservador: todas as etapas que são necessárias, desde a mobilização global contra ameaças virais e outras até o estabelecimento de procedimentos que restringirão os mecanismos de mercado e socializarão a economia, mas feito de uma forma conservadora (no sentido de um esforço para conservar as condições da vida humana – e o paradoxo é que teremos que mudar as coisas justamente para manter essas condições) e moderado (no sentido de levar em consideração cuidadosamente os efeitos colaterais imprevisíveis de nossas medidas).
Como Emmanuel Renault apontou, a principal categoria marxista que introduz a luta de classes no coração da crítica da economia política é aquela chamada de “leis tendenciais”, as leis que descrevem uma tendência necessária no desenvolvimento capitalista, como a tendência da queda da taxa de lucro. (Como Renault observou, fora Theodor W. Adorno quem insistira nessas dimensões do conceito de “Tendenz”, de Marx, que o torna irredutível a uma simples “tendência”.) Descrevendo essa “tendência”, o próprio Marx usa o termo antagonismo: a taxa em queda do lucro é uma tendência que empurra os capitalistas a fortalecer a exploração dos trabalhadores e os trabalhadores a resistirem a ela, de modo que o resultado não seja predeterminado, mas depende da luta – por exemplo, em alguns estados de bem-estar social, trabalhadores organizados forçando os capitalistas a fazerem algumas concessões consideráveis.
O comunismo de que estou falando é exatamente essa tendência: as razões para isso são óbvias (precisamos de uma ação global para combater as ameaças à saúde e ao meio ambiente, a economia terá de ser de alguma forma socializada), e devemos ler a forma como o capitalismo global está reagindo a pandemia precisamente como um conjunto de reações à tendência comunista: o falso “Grande Reset”, o populismo nacionalista, a solidariedade reduzida à empatia.
Então, como a tendência comunista prevalecerá? Uma resposta triste: por meio de crises constantes. Vamos deixar claro: o vírus é ateu no sentido mais forte do termo. Sim, deve ser analisado como a pandemia é socialmente condicionada, mas é basicamente um produto de contingência sem sentido, não há uma “mensagem mais profunda” nela (como a peste foi interpretada como um castigo de deus na época medieval). Antes de escolher a famosa frase de Virgílio sobre “acheronta movebo”, como o lema de seu livro Interpretação dos Sonhos, Freud considerou outro candidato, as palavras de Satanás do Paraíso Perdido, de Milton: “Que reforço podemos receber da Esperança / Que não qual resolução do desespero.”
Se não podemos obter nenhum reforço da esperança, se somos obrigados a admitir que nossa situação é desesperançada, devemos obter resolução do desespero. É assim que nós, Satãs contemporâneos que estamos destruindo nossa terra, devemos reagir às ameaças virais e ecológicas: em vez de buscar em vão por reforço em alguma esperança, devemos aceitar que nossa situação é desesperadora e agir resolutamente sobre ela. Para citar Greta Thunberg novamente: “Fazer o nosso melhor não é mais suficiente. Agora precisamos fazer o que parece impossível.”
A futurologia lida como aquilo que é possível, nós precisamos fazer aquilo que é (sob o ponto de vista da ordem global existente) impossível.
Sobre os autores
é um filósofo independente, autor de mais de trinta livros e foi aclamado como o "Elvis da teoria cultural" e o "filósofo mais perigoso do Ocidente".
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