A coisa mais importante a saber sobre a política externa do governo Biden até agora é que ela é estruturalmente idêntica às políticas externas de todos os presidentes dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial. É, simplesmente, uma política externa organizada em torno do princípio da dominação mundial. Sob a liderança de Biden, os EUA continuarão a fazer o que fizeram durante o chamado “Século Americano” anunciado pelo editor Henry Luce em 1941: controlar o mundo por meio de uma combinação de meios econômicos e militares.
As políticas de Biden garantirão que o dólar dos EUA continue a ser a moeda de reserva global do mundo; que as Forças Armadas dos EUA mantenham acesso às aproximadamente 750 bases do país no exterior; e que o governo continua gastando uma quantia grotesca com os militares. Temos certeza de ouvir sobre várias mudanças táticas que Biden faz – e até mesmo ver declarações prosaicas de que “o compromisso de seu governo com os direitos humanos [é] um pilar de sua política externa” – mas o imperialismo dos EUA continuará a ser a realidade governante para a maioria dos seres humanos na Terra.
A esquerda dos EUA, entretanto, está em uma posição estranha. A campanha de Bernie Sanders e o sucesso de políticos de esquerda como Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar e Rashida Tlaib demonstraram que há uma demanda real por críticas ao status quo. Simultaneamente, no entanto, a derrota de Sanders e a relativa fraqueza de AOC, Omar e Tlaib sugerem que os socialistas precisam recuar e pensar na abordagem geral sobre o papel do Estado e do próprio poder dos EUA.
A política externa deve estar no centro desse esforço. Mesmo se Sanders tivesse ganhado a presidência, teria sido difícil manipular as engrenagens do poder para fins anti-imperialista, até porque nós, socialistas, ainda não entendemos completamente como funciona exatamente o império norte-americano. Essa formação de Estado é única na história mundial: não é apenas genuinamente global, mas também difunde poder e autoridade por meio de uma rede opaca de instituições públicas, corporações multinacionais, consultorias e think thanks internacionais. Descobrir como moldar e trabalhar dentro dessa matriz incrivelmente complexa exigirá um trabalho intelectual significativo. É um projeto ao qual a esquerda, atualmente fora do poder, mas com um futuro promissor, deve se dedicar.
O que nos leva aos primeiros 100 dias de Biden. Até agora, o novo presidente prometeu remover todas as tropas norte-americanas do Afeganistão até o vigésimo aniversário dos ataques de 11 de setembro de 2001; não conseguiu se juntar ao acordo nuclear com o Irã; devolveu os EUA ao Acordo de Paris sobre mudança climática; começou a reconstruir relações com aliados na Europa e na Ásia; e adotou uma postura agressiva em relação à Rússia e à China.
Ao todo, Biden adotou uma abordagem restauracionista da política externa dos EUA, organizada em torno de três objetivos: 2) acabar com a intervenção dos EUA no Afeganistão; 3) restabelecer a fé nacional e internacional na “liderança” dos EUA (o eufemismo comum para “hegemonia”); e 3) construir um senso comum midiático onde domínio dos EUA tanto em casa quanto no exterior, levante o espectro da competição de grandes potências e uma “Nova Guerra Fria”.
A questão, claro, é se o programa restauracionista de Biden terá sucesso.
Por um lado, parece improvável. A liderança global dos EUA tem cada vez menos apoio doméstico e internacional. Os fracassos no Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Iêmen e outros lugares levaram a maioria dos jovens a abraçar uma visão preconceituosa da política externa dos EUA. Como a Pew relatou recentemente, os jovens de 18 a 29 anos estão muito interessados em reduzir compromissos militares no exterior e são menos propensos a priorizar a política externa do que seus colegas mais velhos. Se as coisas se mantiverem estáveis, isso sugere que os EUA podem enfrentar pressão interna para reduzir sua presença global.
Além disso, a presidência errática de Donald Trump fez com que vários aliados norte-americanos nem sempre contassem com os EUA. Angela Merkel falou por muitos deles quando declarou em 2017 que a presidência de Trump indicou que os aliados dos EUA “devem tomar o destino em suas próprias mãos”.
Por outro lado, a estrutura do império norte-americano permanece praticamente inalterada e enfrenta pouca oposição séria. Os jovens podem ser amplamente céticos em relação ao poder militar dos EUA, mas o estabelecimento da Força Totalmente Voluntária em 1973 e o uso crescente de iniciativas militares privados para lutar nas guerras dos EUA significa que a maioria dos norte-americanos está blindada dos efeitos mais imediatos do imperialismo. Já se foi o tempo em que jovens de uma ampla variedade de origens estavam lutando e morrendo em guerras estrangeiras (uma das muitas razões pelas quais o movimento anti-guerra hoje é tão fraco). Além disso, os capitalistas norte-americanos se beneficiam enormemente com a hegemonia do dólar, e poucos provavelmente desistirão sem lutar.
E no nível da alta política, aliados dos EUA como Merkel podem reclamar dos erros norte-americanos quanto quiserem, mas a verdade é que muitos países ao redor do mundo, da Alemanha à Coréia do Sul, de Israel à Arábia Saudita, ficam felizes em contar com o EUA quando lhes convém – e isso acontece frequentemente. É improvável, por exemplo, que qualquer nação da Europa Ocidental rejeite a reafirmação de Biden sobre o compromisso dos EUA com a OTAN, que ele promete fazer durante sua primeira visita à Europa em junho.
Isso tudo para dizer que, apesar de seus recentes e inúmeros fracassos, o império norte-americano continua forte – muito forte. Nos últimos 50 anos, sucessivas gerações de congressistas dos EUA protegeram os norte-americanos comuns de muitas das consequências diretas das aventuras imperiais, ao fornecerem bens de consumo baratos. Enquanto isso, nenhuma outra nação – nem a Rússia, nem a China – tem capacidade para desafiar o poderio militar e econômico dos EUA.
Se a esquerda quer mudar essa situação e ajudar a reorganizar a ordem internacional em linhas democráticas e igualitárias, teremos que nos preparar para uma longa luta, que vai muito além de um único mandato presidencial, muito menos dos primeiros 100 dias.
Sobre os autores
Daniel Bessner é professor associado em Civilização Ocidental na Escola Henry M. Jackson de Estudos Internacionais da Universidade de Washington. Ele também é membro não residente do Quincy Institute for Responsible Statecraft e editor colaborador da Jacobin.