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Legenda da foto: Herbert Marcuse dando uma palestra em Berlim, 1967. (Jung/ ullstein bild via Getty Images)

Marcuse e as revoltas estudantis de 1968

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Tradução
Guilherme Ziggy

O filósofo alemão Herbert Marcuse foi uma das principais fontes de inspiração da Nova Esquerda na Europa e nos Estados Unidos durante a década de 1960. Nesta palestra em maio de 1968, ele discute como as revoltas estudantis incendiavam as ruas e as universidades em Paris e Berlim.

Em maio de 1968, o filósofo neomarxista Herbert Marcuse visitou Paris e Berlim no auge dos protestos organizados pelos movimentos estudantis que estavam sendo noticiados em todo o mundo. O texto apresentado aqui é a transcrição de uma palestra de duas horas sobre esses acontecimentos que Marcuse deu em 23 de maio de 1968, logo após seu retorno aos Estados Unidos, enquanto os resultados do movimento de maio na França ainda eram incertos. Ele oferece uma visão única sobre a maneira como um pensador creditado frequentemente por fornecer aos movimentos estudantis europeus de 1968 grande parte de sua energia ideológica os via à medida que se aconteciam.

Marcuse foi a Paris para participar de uma conferência acadêmica sobre “O papel de Karl Marx no desenvolvimento do pensamento científico contemporâneo”. Quando chegou, o movimento estudantil já estava em andamento e a imprensa francesa se referia a ele como o “ídolo dos estudantes rebeldes”. Ele ainda estava em Paris no dia 10 de maio, quando testemunhou os violentos confrontos entre os estudantes e a polícia no Quartier Latin, que ele narra em seu discurso. Em 13 de maio, ele estava em Berlim, onde teve um encontro amplamente divulgado com estudantes radicais e fez seus primeiros comentários sobre o movimento francês.

Marcuse então voltou para a Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) e, na quinta-feira, 23 de maio, falou para um público que lotou o maior auditório do campus. A essa altura, os protestos estudantis franceses haviam se transformado em uma onda nacional de greves que ameaçava o governo de Charles de Gaulle, embora, como Marcuse previu, o líder francês estivesse prestes a reafirmar sua autoridade. Jeremy Popkin, então um estudante de graduação em um dos cursos de Marcuse e agora professor de história na Universidade de Kentucky, transcreveu a palestra e preparou uma versão resumida que foi publicada pela primeira vez no jornal dos estudantes da UCSD e, finalmente, nos ensaios publicados de Marcuse.


O movimento começou de uma forma inocente, como um movimento pela reforma da universidade. A coisa toda foi aparentemente provocada por uma manifestação em Nanterre, um novo campus da Universidade de Paris, e medidas disciplinares subsequentes contra estudantes que haviam participado de uma manifestação contra a guerra no Vietnã. O que se seguiu foram manifestações em Paris, na Sorbonne, e as reivindicações tinham um objetivo claro: a reforma radical da estrutura antiquada e totalmente medieval da universidade.

As demandas eram principalmente para a contratação de mil novos professores, a construção de novas salas de aula e instalações para o estudo na biblioteca e uma reforma completa do sistema de provas rígido e maluco. Para dar mais peso a essas demandas, os alunos se manifestaram no pátio da Sorbonne. Por uma razão que ninguém entende – a manifestação foi perfeitamente pacífica – o reitor da universidade, aparentemente por sugestão do ministro do Interior, pediu que a polícia esvaziasse o pátio. A polícia apareceu e invadiu a Sorbonne, pela primeira vez na história da universidade.

Esta foi realmente uma novidade histórica. As universidade europeias estão imunes à polícia. A polícia não pode entrar nas universidades, e essa é uma das tradições mais antigas que é realmente seguida na França e em outros países. Foi a primeira vez na história que a polícia interveio e liberou o pátio à força, com várias centenas de estudantes feridos.

O que se seguiu foram manifestações cada vez maiores, começando em partes muito remotas de Paris, convergindo para o Quartier Latin. Nesse ínterim, a Sorbonne foi fechada e toda a região ao redor da universidade foi bloqueada e ocupada pela polícia. Os estudantes agora exigiam que sua universidade fosse aberta novamente para eles, e que o Quartier Latin, que eles consideravam seu próprio bairro, não tivesse mais polícia e se tornasse novamente público.

Construindo as barricadas

Eles seguiram para a Sorbonne e, como havia surgido a notícia de que a polícia voltaria a liberar a região à força, barricadas foram construídas. Este foi um evento realmente espontâneo. O que aconteceu é que os alunos simplesmente pegaram os vários automóveis que estavam estacionados, não só nas ruas, mas também nas calçadas, e sem a menor consideração pela propriedade privada, viraram os carros e os colocaram direto nas ruas. Não nas largas avenidas, o que teria sido impossível, mas nas velhas ruas estreitas ao redor da universidade.

Em cima dos carros, eles colocaram todos os tipos de coisas de madeira, lixo, caixas, latas de lixo – tudo o que puderam encontrar. Em seguida, eles arrancaram as placas de rua ­– “Mão única”, “Pare” ou que quer que fosse – e com as placas de rua eles soltaram o pavimento da rua. Não preciso comentar aqui como se faz uma revolução – seria impossível de qualquer maneira aqui, porque as ruas são muito apertadas. Assim eles soltaram os bons e velhos paralelepípedos de Paris, que já haviam servido na revolução de 1848 e 1870, e os usavam como armas contra a polícia.

Também se armaram com as tampas das latas de lixo, e com correntes de aço, e colocaram tudo o que encontraram em cima das barricadas e dos automóveis, principalmente esses anéis de ferro que ficavam em volta das árvores nas ruas. Eles construíram até uma altura de de três metros e meio a quatro metros, e a palavra de ordem era não atacar a polícia, mas confrontá-las nas barricadas.

Tudo correu bem até cerca de 2h30 da manhã, quando a polícia finalmente obteve a ordem para liberar as ruas e destruir as barricadas. O que aconteceu é que a polícia usou bombas de gás, gás lacrimogêneo – supostamente também gás à base de cloro. Eles negam, mas as evidências parecem corroborar essa versão. Eu mesmo vi os alunos com os rostos todos vermelhos, rugas inflamadas, os olhos todos inflamados. Eles usaram esse gás e o resultado é que as barricadas tiveram que ser evacuadas.

Ninguém pode, sem uma máscara, suportar esses gases. Se eles tivessem máscaras de gás, provavelmente teriam sido capazes de derrotar a polícia, porque a polícia de Paris não atira. Eles não têm pistolas e revólveres. Eles têm apenas seus cassetetes.

As empresas de segurança também têm rifles e carabinas, o que é uma proteção para os alunos, porque eles não podem atirar de forma simples e rápida com um rifle no corpo a corpo como você pode atirar com uma pistola e uma arma pequena. O gás forçou os estudantes a deixar as barricadas e fugir, depois, a polícia aparentemente atirou granadas incendiárias e incendiou as barricadas.

Gostaria de reforçar que durante todo esse tempo – e esta é a maior diferença entre os acontecimentos em Paris e aqui – a população do bairro [Quartier Latin] foi definitiva e decisivamente simpática com os alunos, e eles jogaram todo o tipo de coisas das janelas dos apartamentos para atingir a polícia. Ainda se usam penicos em Paris, e eles jogaram os dejetos com todo o tipo de lixo. Em resposta, a polícia atirou granadas de gás dentro dos apartamentos.

Agora eles tinham que deixar as barricadas. Eles tentaram fugir e descobriram que suas próprias barricadas se tornaram um obstáculo, porque haviam fechado a rua nas duas extremidades, e simplesmente não conseguiam encontrar a saída. Eles foram literalmente espancados com os professores – aliás, gostaria de acrescentar que os professores que estiveram presentes ficaram do início ao fim junto aos alunos com muita energia. Eles saíram para as ruas; estavam com eles nas barricadas e ajudavam onde podiam.

A barricada do outro lado da rua bloqueou a fuga dos estudantes e a polícia teve um jogo fácil. Havia no total cerca de 800 feridos naquela noite, e desses 800, cerca de 350 eram policiais, o que não é uma proporção ruim.

A Greve Geral

De alguma forma, isso encerrou a manifestação e o protesto. Seu jovem líder, Daniel Cohn-Bendit – que organizou as barricadas e esteve nelas o tempo todo, até as 6 horas da manhã, quando a batalha de rua foi perdida – disse: “Agora só há uma coisa a ser feita, uma greve geral.” E dentro de uma hora, ele foi aos poderosos sindicatos da França e conseguiu que os grandes sindicatos declarassem greve geral na segunda-feira seguinte. Como vocês sabem, a ordem de greve foi seguida 100% das categorias.

Neste ponto, gostaria de explicar a vocês porque acredito que este evento é de grande importância. Em primeiro lugar, deve curar de uma vez por todas quem ainda sofre do complexo de inferioridade intelectual. Não há a menor dúvida de que, neste caso, os alunos mostraram aos trabalhadores o que poderia ser feito, e que os trabalhadores seguiram a palavra de ordem e o exemplo dos alunos. Os estudantes literalmente eram a vanguarda – não de uma revolução, porque não foi uma revolução, mas de uma ação que de fato se transformou espontaneamente em uma ação de massas. Este é, na minha opinião, o ponto decisivo.

O que testemunhamos em Paris durante essas três semanas é o ressurgimento repentino e o retorno de uma tradição, e desta vez, uma tradição revolucionária, que estava adormecida na Europa desde o início dos anos 1920. Vimos o aumento e a intensificação espontâneas das manifestações, desde a construção das barricadas até a ocupação dos prédios – primeiro os prédios da universidade, depois os teatros, as fábricas, os aeroportos, as emissoras de televisão, seja o que for. A ocupação, é claro, não foi feita só pelos estudantes, mas gradualmente pelos trabalhadores e funcionários dessas instituições e empresas.

Todo o movimento de protesto foi primeiro violentamente condenado pelos sindicatos controlados pelos comunistas e pelo diário comunista L’Humanité. Eles não só suspeitavam dos alunos como vilipendiaram o movimento e de repente o Partido Comunista Francês (PCF), que durante muito tempo, décadas, colocou a luta de classes no gelo, simplesmente denunciou os estudantes como crianças burguesas.

Eles não queriam ter nada a ver com os burgueses, e não aceitava ordens dos filhos de burgueses – atitude compreensível se tivermos em mente que a oposição estudantil desde o início não foi apenas dirigida – eu voltarei nisso – contra a sociedade capitalista da França além da universidade, mas também contra a construção stalinista do socialismo.

Esse é um ponto muito importante. O movimento definitivamente também foi dirigido contra o PCF, que foi considerado, e continua sendo – por mais estranho que possa parecer nesse país – como parte integrante do sistema. É um partido que ainda não é um partido de governo, e que não deseja nada mais que se tornar um partido do governo o mais rápido possível. E essa tem sido, de fato, a política do PCF há anos.

Quando perguntamos como o movimento estudantil se tornou um movimento de massas, encontramos uma resposta muito difícil. Como eu disse, o movimento foi inicialmente confinado à universidade, e as demandas foram inicialmente acadêmicas – demandas por reformas na Sorbonne. Mas então veio o reconhecimento de que a universidade é, afinal, apenas parte de uma sociedade maior, do establishment, e que, a menos que o movimento se estendesse além da universidade e atingisse os pontos mais vulneráveis da sociedade como um todo, ele não prosperaria ou permaneceria isolado.

Portanto, muito antes da eclosão desses acontecimentos, houve uma tentativa sistemática de convencer os trabalhadores, que estavam sendo proibidos pelos sindicatos, para ingressar nos protesto. Os alunos foram enviados para as fábricas em Paris e nos subúrbios da cidade. Lá eles conversaram com os trabalhadores e aparentemente encontraram simpatia e adeptos, principalmente entre os trabalhadores mais jovens.

Quando os alunos realmente saíram para as ruas, quando começaram a ocupar os prédios, esses trabalhadores seguiram seu exemplo e somaram suas próprias demandas, principalmente por maiores salários e condições de trabalho, às demandas acadêmicas dos alunos. As duas frentes voltaram a se unir de uma forma bastante espontânea e de certa maneira coordenada e, dessa forma, o movimento estudantil se tornou realmente um movimento social maior, um movimento político maior.

Nessa reviravolta, quando já centenas de milhares de trabalhadores em greve ocuparam as fábricas de Paris e nos subúrbios, o sindicato controlado pelos comunistas, a CGT, decidiu endossar o movimento e torná-lo uma greve oficial. Essa é a política que eles empregam há décadas. Mesmo que vejam um movimento que ameaça sair do controle e não permanecer mais sob a batuta do PCF, eles rapidamente o endossam, e assim o assumem e o organizam.

As demandas do movimento

Quanto às demandas políticas desse movimento, podem ser resumidas como contrárias ao regime autoritário na França, e pela politização da universidade – ou seja, por estabelecer um vínculo visível e efetivo entre o que se ensina em sala de aula e o que está acontecendo fora da sala de aula; para preencher a lacuna entre um modo de ensino e currículos medievais ultrapassados e a realidade – a terrível e miserável realidade – que está fora das salas de aula.

Eles exigiam a politização da universidade, total liberdade de expressão, com uma qualificação muito interessante. Cohn-Bendit declarou em várias ocasiões que seria um abuso da liberdade de expressão tolerar os protagonistas da política norte-americana e os defensores da guerra do Vietnã. O direito à liberdade de expressão não deve ser interpretado como tolerar aqueles que estão, por sua política e por sua propaganda, trabalhando para derrubar os últimos resquícios de liberdade ainda existentes nesta sociedade, e que estão transformando o mundo, ou melhor, uma grande parte do mundo, em um domínio neocolonial. Isso foi afirmado de forma muito clara.

Outra demanda dos alunos foi a criação de empregos. Uma das queixas, um dos verdadeiros temores dos alunos é que, depois de terem sido educados e treinados por anos na universidade – principalmente como cientistas, engenheiros, técnicos e assim por diante – não conseguem encontrar emprego na hora de ganhar a vida, porque o desemprego é novamente generalizado na França, e toda uma geração enfrenta o perigo de não conseguir trabalho. Isso também junta diretamente uma demanda acadêmica com uma demanda política e com o protesto contra a sociedade vigente.

O movimento é, ou tornou-se, de novo espontaneamente, uma manifestação socialista e um movimento socialista, mas – como quero enfatizar novamente – um movimento socialista que rejeita desde o início a construção repressiva do socialismo que tem prevalecido nos países socialistas até hoje. Isso pode explicar as tendências supostamente maoístas entre os estudantes, novamente usadas principalmente pela imprensa comunista para denunciar os estudantes como trotskistas, revisionistas e maoístas – maoístas no sentido de que Mao Tse-Tung é de uma forma ou de outra um símbolo para a construção de uma sociedade socialista que evita a repressão burocrática stalinista característica da construção socialista da União Soviética e do bloco soviético.

Isso também traz à tona outro aspecto muito essencial do movimento estudantil, e acho que aqui há um terreno comum entre o movimento norte-americano e o francês. É um protesto total – não só porque certamente foi desencadeado por um protesto contra males específicos, contra deficiências específicas, mas ao mesmo tempo, um protesto contra todo um sistema de valores, de objetivos, de desempenhos exigidos e praticados nesta sociedade. Em outras palavras, é uma recusa em aceitar – continuar aceitando – seguir com a cultura da sociedade vigente. Não apenas as condições econômicas, não apenas as instituições políticas, mas todo o sistema de valores que eles acreditam estar podre em sua essência.

A esse respeito, acho que também se pode falar aqui de uma revolução cultural – no sentido de que é dirigida contra todo o establishment cultural, incluindo a moralidade dessa sociedade existente.

Condições e tradições francesas

Se você me perguntar agora: como podemos explicar que na França o movimento estudantil encontrou a ajuda espontânea e a simpatia por parte da população – um apoio muito definido entre a classe trabalhadora, organizada e não organizada – enquanto nos Estados Unidos é exatamente o oposto, a resposta que vem à mente é dupla.

Primeiro, a França ainda não é uma sociedade rica. Ou seja, as condições de vida da maioria da população ainda estão muito abaixo do padrão de vida norte-americano, o que evidentemente contribui para uma identificação muito mais frouxa com o governo do que a que prevalece nos Estados Unidos. Em segundo lugar, a tradição política do movimento da classe trabalhadora francesa ainda está viva em um grau considerável.

Eu poderia acrescentar uma explicação um tanto metafísica: a diferença entre as perspectivas na França, de um movimento radical na França e nos Estados Unidos, isso também pode ser resumido lembrando que a França, afinal, passou por quatro revoluções em 100 anos e isso aparentemente estabelece uma tradição revolucionária que pode ser desencadeada, trazida à vida e renovada quando necessário.

Deixe-me falar também sobre o movimento estudantil na Alemanha. Só posso falar do movimento estudantil em Berlim. Não visitei nenhum outro lugar na Alemanha desta vez. Uma mudança considerável está ocorrendo desde que visitei Berlim no ano passado. O movimento se tornou muito mais radical no sentido de clamar por ação constante e rejeitar qualquer tipo de conversa, discussão, esforço teórico. O desejo de se tornar e permanecer imediatamente praticante [sic] é tão forte que se afirma quase diariamente.

As reuniões na Universidade Livre de Berlim acontecem literalmente todos os dias. A maior sala de aula que está à disposição dos alunos para reuniões políticas é utilizada frequentemente. A propósito, a universidade de Berlim é, até onde sei, a única em que a carta de fundação prevê a representação dos alunos no corpo docente. Representantes dos alunos têm cadeiras no Senado Acadêmico e têm voz e voto nas nomeações e dispensas de docentes. Este é o estatuto da universidade, que foi estabelecido, eu acho, em 1948.

Essa radicalização – e acho que podemos discuti-la – tem seu perigo: expor o movimento estudantil a forças muito superiores com as quais ele não pode lidar. Em termos de números, o movimento estudantil em Paris contava com, digamos, cerca de 10 mil a 15 mil estudantes no começo, para chegar de 800 mil a 100 mil pessoas. Agora, com esse número, você pode ocupar prédios – você pode até manter prédios por muito tempo – especialmente se você tiver o apoio da população.

Em Berlim, não há nada disso. O movimento estudantil se vê definitivamente confrontado com a hostilidade declarada do povo de Berlim e com a hostilidade declarada ao trabalho organizado. Nesse aspecto, é muito parecido com aqui nos Estados Unidos. Nessas condições, uma política de manifestações intensificadas – manifestações com a intenção de ir além de um ritual e até mesmo arriscar o confronto com a polícia – é um empreendimento perigoso. Mas quero dizer que aqui, de maneira muito clara e honesta, existe uma tendência à qual acho que não pode ser combatida com eficácia.

Eu até tentei fazer isso e apontar esses perigos. Não adianta, porque eles perderam a paciência. Eles não acreditam – e ninguém pode culpá-los por isso – no processo democrático que prevalece na Alemanha. Eles conhecem perfeitamente a brutalidade da polícia na Alemanha. Eles também sabem em que medida o governo da República Federal ainda está permeado por herdeiros do sistema nazista, e também conhecem a estrutura ainda muito autoritária da própria universidade e a atitude hostil da maioria dos professores e membros do corpo docente – novamente um contraste com a situação na França.

Nessas circunstâncias, eles simplesmente acreditam que, a menos que ajam – de tal forma que as pessoas realmente vejam e ouçam com seus próprios olhos e com seus próprios ouvidos o que está acontecendo – a menos que possam impressionar a sociedade, fisicamente e diretamente, com suas demandas, eles não seriam ouvidos. A conclusão agora é que quanto mais radical, quanto mais inconformista for a expressão da oposição, melhor ela será. Ou seja, desde incendiar placas até estilhaçar vitrines, e esforços ou ações desse tipo, tudo isso é organizado como meio de ser ouvido e meio de ser visto – ou seja, como um movimento para conter o poder desta sociedade.

Isso assume, não para os alunos especialmente, formas às vezes um pouco desagradáveis, principalmente na universidade e em reuniões. Também tem uma tendência muito definida de condenar tudo o que não está de acordo com esta política intensificada de “ação pela ação”, de condenar tudo o que é liberal – bem, não quero usar o termo que é usado neste contexto, e isso é constantemente gritado assim que alguém tenta expressar uma opinião um pouco menos radical. Em qualquer caso, liberal se tornou um palavrão. Não há dúvidas sobre isso, e novamente se olharmos para a tradição do liberalismo alemão – e o liberalismo em outros países – é compreensível porque se tornou um palavrão.

Novamente, é muito difícil hoje neutralizar essa tendência de forma eficaz, porque se você olhar para todo o movimento – para o grau surpreendente que ele se transformou, contra suas próprias intenções, um movimento internacional e, de fato, o único de oposição eficaz que temos hoje – então você se sente muito hesitante e muito relutante em acusar até mesmo as características desagradáveis ​​e até mesmo prematuramente radicais. Você sente que precisa se identificar com ele, na esperança de que, por tentativa e erro, o movimento ganhe força e, ao mesmo tempo, fortaleça sua organização e coordenação internacional.

Bem, acho que isso é tudo o que quero dizer por ora.

Questões

Após seu discurso, o professor Marcuse respondeu às perguntas da plateia. Questionado se ele apoiava a visão de que as pessoas não poderiam apoiar a guerra do Vietnã, ele respondeu:

Eu apoio essa visão, sim. Eu não disse que aqueles que discordam de mim não deveriam ser tolerados, entretanto. Eu disse explicitamente, e mencionei, que aqueles que defendem e propagam a guerra do Vietnã não deveriam, em uma sociedade verdadeiramente democrática, gozar do direito democrático de liberdade de expressão. Essa política necessariamente mina a democracia enquanto existe. Portanto, não é uma questão de discordar de mim de forma alguma.

Questionado se apoiaria a supressão de qualquer outro sistema filosófico, como o objetivismo de Ayn Rand, Marcuse respondeu:

Não. Como você sabe, gosto muito de filosofia. Não conheço nenhuma filosofia hoje que seja um perigo real para o sistema existente ou para a mudança do sistema existente na direção de um melhor. Eu deixo perfeitamente claro que o conceito de tolerância repressiva não tem absolutamente nada a ver com qualquer censura à arte, literatura, música, filosofia ou qualquer que seja. Isso está absolutamente fora de questão. Falo apenas sobre a retirada da tolerância daqueles movimentos que demonstraram seu caráter agressivo e destrutivo.

Sobre as leis de emergência aprovadas na Alemanha Ocidental na época:

A legislação de emergência que está agora sendo discutida no parlamento alemão e com toda a probabilidade que será aprovada, é, na minha opinião, uma das peças legislativas mais sinistras nos dias de hoje. Dá ao governo o poder de, em situações de emergência, suspender as garantias constitucionais mais importantes e, por exemplo – esse sendo o inciso mais surreal – mobilizar as forças armadas dentro do país. Não é de se admirar que o movimento estudantil na Alemanha seja hoje direcionado principalmente contra essa legislação emergencial. Receio que continue sem sucesso e que a legislação de emergência seja votada [até a aprovação] com o apoio do Partido Social-Democrata.

Eu gostaria de acrescentar aqui que é um exemplo típico para refutar o argumento que tem sido levantado repetidamente em conexão com a atual rebelião estudantil, que este radicalismo de esquerda, na situação prevalecente, só pode servir para fortalecer a direita. Ou seja, a famosa tática de antagonizar o oponente. Ainda estou para conhecer uma oposição que não antagonize o adversário. Esse é o próprio princípio de oposição.

Mas além do que se diz e se faz agora – e isso também é uma conspiração internacional – a esquerda, especialmente a esquerda estudantil, já é culpada pela possível ou provável intensificação dos movimentos de extrema direita na Europa, e não apenas na Europa. O mesmo foi dito sobre a oposição comunista e socialista no período pré-nazista e assim por diante. Acho que se deve rotular de uma vez por todas esse argumento como uma falsificação histórica.

O que aconteceu, por exemplo, durante a República de Weimar? Hitler chegou ao poder não porque a esquerda era muito radical e muito forte, mas porque a esquerda não era radical nem forte o suficiente. A esquerda estava dividida e essa divisão permitiu que a direita chegasse ao poder. Este argumento pode ser refutado com fatos históricos.

Sobre as perspectivas de uma aliança entre trabalhadores e estudantes na França:

É bem possível, acho muito provável, que o movimento se divida novamente e que as questões sejam resolvidas separadamente. A extrema direita é relativamente inativa na França. Como de costume, a oposição contra os movimentos de protestos não parece se concentrar tanto no que é chamado de extrema direita, mas no centro – ou seja, no próprio governo vigente. Eu acho que é uma mudança muito importante – uma mudança que eu acho que ainda precisa ser explicada em termos de guerra contra o nazismo e o fascismo, onde, é claro, os partidos de extrema direita estão fedendo desde o início, mas eles não são exatamente os representantes mais adequados da direita francesa.

O ataque total à sociedade é consciente ou pelo menos semiconsciente principalmente entre os alunos. No que diz respeito aos trabalhadores, este parece ser ainda o velho protesto sindical. Digo que parece ainda ser desta forma, porque aparentemente não é o caso dos trabalhadores mais jovens, que estão muito insatisfeitos com os sindicatos e querem mais do que aumentos salariais e melhores condições de trabalho.

Por exemplo, eles acrescentam como uma demanda definitivamente política o fim de um regime personalista [de Charles de Gaulle] e uma liberdade de expressão real e efetiva o direito à reunião. Esse caráter total do movimento não é algo que seja consciente e metodicamente declarado e praticado. Isso sai claramente das declarações dos alunos. Entre a oposição da classe trabalhadora, é ainda muito mais precário.

Sobre a situação da Europa Oriental, em particular a “Primavera de Praga” que se desenrolava na Tchecoslováquia:

A Tchecoslováquia ainda se apega à tradição do período stalinista em um grau considerável. Essa – pode-se dizer com segurança – repressão terrorista, esse controle completo de todas as expressões do pensamento e essa repressão rápida de todas as opiniões divergentes pareciam cada vez mais arbitrárias e desnecessárias à medida que a situação econômica e política parecia estar assegurada.

Nesta situação, o que aconteceu foram as dificuldades essenciais na economia, e a demanda por reformas econômicas que relaxassem ou em grande medida eliminasse o controle altamente centralizado e introduzisse na economia socialista características da economia capitalista – por exemplo: incentivos, lucros, um grande grau de autoridade concedido à gestão de empresas individuais, e assim por diante.

Esse relaxamento econômico foi usado para exigir correspondentemente um relaxamento cultural – isto é, a abolição da censura e da pré-censura, e do rígido controle partidário imposto a escritores, filósofos, profissionais em geral, sejam eles quais forem. O movimento na Tchecoslováquia não é dirigido contra a sociedade vigente como tal, mas aos controles pós-stalinistas que são considerados prejudiciais à própria sociedade socialista.

Se a rebelião estudantil não é uma revolução, como deve ser categorizada?

O que você chama, muito corretamente, de caráter pragmático do movimento é, penso eu, um aspecto de uma suspeita profunda contra todas as ideologias tradicionais, que se revelaram falsas. Um personagem decisivamente pragmático. Eu não queria e não chamei o movimento revolucionário, porque acredito que nem na França nem certamente aqui nos Estados Unidos estamos em uma situação revolucionária ou mesmo pré-revolucionária. Acho que temos que operar com esse pressuposto, se entendermos o que está acontecendo, e é irresponsável lançar sobre o movimento de protesto que temos hoje o conceito de revolução ou revolucionário.

Certamente os estudantes na França não fazem isso, e não acho que tenhamos que fazer também. Eles não consideram seu próprio movimento como uma revolução. Pode muito bem ser um elo em uma cadeia de acontecimentos, internos e externos, que pode mudar a situação como um todo, creio eu, e acho que a experiência dos últimos meses fortaleceu minha fé nisso.

Acho que há uma coisa que podemos dizer com segurança: que a ideia tradicional de revolução e a estratégia tradicional da revolução estão fora de questão. Estão desatualizadas, simplesmente superadas pelo desenvolvimento da nossa sociedade. Eu disse isso antes e gostaria de repeti-lo – porque acho que nesta situação nada é mais seriamente necessário do que uma cabeça sóbria: a ideia de que um dia ou uma noite, uma organização de massas ou partido de massas ou massas de quaisquer tipos marchem sobre Washington e ocupem o Pentágono e a Casa Branca para estabelecer um governo é, imagino, totalmente fantástica, e simplesmente não corresponde de forma alguma à realidade das coisas.

Se alguma vez houvesse uma massa capaz e isso acontecesse, dentro de 24 horas, outra Casa Branca seria instalada no Texas ou em Dakota do Norte, e a coisa toda terminaria rapidamente. Temos que esquecer essa ideia de revolução, e é por isso que acredito que o que está acontecendo na França hoje é tão significativo e pode muito bem ser decisivo, e é exatamente por isso que enfatizo o caráter espontâneo desse movimento e a forma espontânea que se espalhou.

Eu digo espontâneo, e mantenho esse conceito, mas suponho que não exista uma espontaneidade que não precise de um pouco de ajuda para se tornar realmente espontânea. Esse foi exatamente o caso na França, e foi por isso que mencionei o trabalho preparatório dos alunos nas fábricas ao discutir com os trabalhadores e assim por diante. Mas, no entanto, em comparação com a organização tradicional de oposição, este tem sido um movimento espontâneo que, enquanto pode, não deu a mínima para as organizações existentes, tanto partidárias quanto sindicais, e simplesmente foi em frente.

Em outras palavras, por uma razão ou outra, havia chegado o tempo em que centenas de milhares e, como veremos agora, milhões de pessoas não queriam mais fazer isso. Eles não queriam mais se levantar pela manhã e ir para o trabalho e seguir a mesma rotina e ouvir as mesmas ordens e cumprir as mesmas condições de trabalho ou realizar as mesmas performances. Eles simplesmente aguentavam até aqui, então, se não ficassem em casa ou não dessem um passeio, tentavam outra coisa.

Eles ocuparam as fábricas e as lojas, e lá permaneceram, de forma alguma como anarquistas selvagens – por exemplo, ontem mesmo veio um relatório de que eles cuidaram meticulosamente das máquinas e providenciaram para que nada fosse destruído. Eles não permitiram a entrada de estranhos e assim por diante. Nesta ação, eles demonstraram que consideram estes espaços de uma forma ou outra como seus e vão demonstrar que sabem o que é seu e o que deveria ser seu e por isso estão ali ocupando.

Acho que é uma das expressões do caráter do protesto total, porque, como você sabe, a estratégia tradicional da classe trabalhadora de não endossar oficialmente a ocupação de fábricas, e nesta tradição, também, a propriedade privada mantém uma certa santidade. Quando isso acontecia, geralmente era contra a política sindical e, em grande parte, espontâneo. Esse caráter espontâneo pelo qual a mudança se anuncia, é, penso eu, o novo elemento que ultrapassa toda organização tradicional e atinge a população direta e imediatamente.

Se você assumir que a paralisia na França continua, e se espalha, que o governo não tem sucesso – eu repito, esta é uma suposição irrealista, pois terá sucesso, mas apenas faça para experimentar esta suposição – então você realmente tem uma visão de como tal sistema pode entrar em colapso, porque nenhuma sociedade poderia, por qualquer período de tempo, tolerar tal paralisia.

O protesto contra os valores da sociedade burguesa surge não apenas na atitude um tanto desrespeitosa em relação à propriedade privada, mas também na rejeição de outros valores, por exemplo – e esta é uma das coisas em que você pode concordar ou não concordar – a repulsa contra a forma tradicional de ensino e a cultura burguesa tradicional. Vou dar um exemplo muito concreto para mostrar o que quero dizer – e quero acrescentar que, neste caso, não estive do lado dos alunos.

Foi há um ano, mas a mesma situação se repetiu este ano, meu amigo Theodor Adorno foi convidado para ir a Berlim dar uma palestra sobre a peça Ifigênia de Goethe, uma peça com o tema clássico da Ifigênia em Tauris. Ele foi convidado pelo seminário alemão. O auditório estava lotado de alunos que simplesmente não o deixavam falar, porque consideravam ultrajante que, em uma situação que prevaleceu após o assassinato de um aluno na manifestação contra o Xá da Pérsia, e no clima político acalorado de Berlim, há uma palestra sobre um drama humanístico clássico. Eles simplesmente não podiam suportar isso, e realmente houve uma revolta na sala de aula, e demorou muito para acalmá-los a ponto que a palestra pudesse ser dada.

Uma reação semelhante à que experimentei esse ano em Berlim. Por exemplo, houve várias interrupções em minha palestra com gritos: “Não é hora de se preocupar com conceitos, não é hora de se preocupar com teoria. Em vez de discutir aqui, vamos sair imediatamente para a rua e protestar na frente da Maison Française.” Digo isso apenas como uma atitude, como um exemplo até onde se pode ir essa oposição, e como ela afeta, de fato, toda a cultura vigente, mesmo em suas manifestações mais sublimes.

Não faz mais sentido para eles. Pode ser lindo, pode ser muito profundo, muito edificante, mas de alguma forma não se encaixa. Não há nenhuma conexão entre o que realmente está acontecendo lá no Vietnã ou nas barricadas, ou nos guetos, e esses belos versos e essas grandes ideias, então vamos esquecer isso e ver o que podemos fazer com nossas mãos e também com nossas mentes para mudar a realidade imediatamente. Ora, é – não preciso acrescentar isso – uma atitude perigosa, mas uma atitude que me parece muito difícil de refutar.

Sempre defendi a posição de que as universidades nos Estados Unidos ainda fossem enclaves de relativa liberdade de pensamento e expressão. Ainda existem muitas oportunidades e espaços para aprender coisas que são relevantes para o que está acontecendo hoje. A universidade certamente precisa de uma reforma radical, mas essa reforma radical deve ser realizada na própria universidade e não deve tomar a forma de destruição da universidade. Destruir a universidade, eu acho, significaria de fato reduzir ou eliminar totalmente – deixe-me colocar de uma forma extrema e provocativa – um dos galhos que estamos sentados.

Afinal, é na universidade que a oposição cresceu, que a oposição se formou e está se educando. Destruir a universidade pode muito bem nos causar maiores danos do que a eles. Afinal, nós – e eu, como você sabe, me incluo na oposição – acho que somos um exemplo vivo de que a universidade não pode ser assim tão ruim.

No final de sua palestra, Marcuse foi convidado a comentar sobre seu pensamento e atual crise na Europa Ocidental:

Se você quiser reduzir essa questão pessoal a proporções administrativas, o único fato que posso mencionar é que, por exemplo, nas declarações de Cohn-Bendit e em outras declarações, os ecos do meu ensaio sobre “Tolerância repressiva” são óbvios, então nenhuma outra evidência é necessária. Além disso, muitos dos próprios alunos afirmam isso. Por que isso é uma questão que eu não devo responder, mas [sim] os próprios alunos.

Eu, como filósofo e teórico, tentei apontar e oferecer uma crítica à sociedade existente que se mantém livre tanto quanto possível de toda a ideologia tradicional, seja ela marxista ou socialista. Ao fazê-lo, penso ter assinalado alguns aspectos que, nas ideologias tradicionais, simplesmente não foram tratados de forma adequada.

Acho que outra coisa que apontei é que não importa o quão radicais possam ser as novas instituições que supostamente são características de uma sociedade socialista, a menos que essas instituições sejam controladas por um novo tipo de homem, com valores realmente novos e sem a moral hipócrita e os valores repressivos e competitivos da sociedade vigente, nenhuma mudança real terá ocorrido e tudo o que teremos feito é substituir uma forma de dominação por outra.

O que é realmente, em minha opinião, essencial para uma mudança real e qualitativa é uma ruptura no continuum de dominação e repressão. Só depois disso – mesmo em uma sociedade socialista – será possível falar de uma sociedade real e qualitativamente diferente das existentes. Essa é a única resposta que posso lhe oferecer.

Sobre os autores

é um filósofo alemão que migrou para os Estados Unidos como refugiado do nazismo em 1934. Ele se tornou uma fonte de inspiração para a Nova Esquerda na Europa e nos Estados Unidos na década de 1960. Seus trabalhos incluem "Eros e a Civilização" e "O Homem Unidimensional".

Cierre

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Published in Análise, Antifascismo, Educação, Europa and Sociologia

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