No dia 17 de novembro de 1889, no meio da madrugada, ia embora do Brasil a família real, às pressas e fora da vista da população. É que acharam por bem evitar possíveis agitações das massas em favor da monarquia, justamente no momento em que sua popularidade era alta. Quem achou não foi a família real, mas os novos dirigentes da República, recém proclamada, apesar dos apesares.
Se a República nasceu de um mal entendido, como disse Sérgio Buarque de Holanda, ou de um pecado original que excluiu o povo, como pensou José Murilo de Carvalho, não é o que nos interessa aqui. Nosso foco é a realidade que gerou essas percepções, e como ela é resgatada no presente.
Mudando a fachada para manter a estrutura
A República Brasileira foi o caminho escolhido pelas oligarquias paulistas e por um punhado de oficiais do Exército como a melhor forma de evitar rupturas profundas na lógica de distribuição do poder e dos privilégios sociais, uma repetição compulsiva que atravessa nossa história. E a República já nasceu assim, velha: o discurso liberal era adaptado às formas de exercício do poder autoritário consolidadas desde a colônia e se limitava à soberania nacional e ao constitucionalismo. A parte da cidadania ficava de fora.
Afinal, o perfil oligárquico do Estado brasileiro mesclava uma exagerada concentração de poderes nas mãos de latifundiários – até pouco tempo, proprietários de escravos – uma demografia predominantemente rural e uma população majoritariamente pobre e marcada pela herança escravista. A relação entre democracia e república que se construiu sempre foi, desde então, atravessada por interesses próprios das elites econômicas que conduzem – até hoje – a política do país.
A República vinha “pra ficar” e foi necessário criar novos símbolos, ressignificar os antigos e resgatar o passado para legitimar o presente. Tiradentes, a bandeira nacional e, posteriormente, a semana de arte moderna, o samba carioca, a obra Casa Grande & Senzala, os bandeirantes; novas formas de interpretar o Brasil e novas identidades nacionais. Era o Brasil moderno, civilizado, republicano.
Os bandeirantes tiveram um papel importante nessa construção. São Paulo havia recentemente se elevado no cenário nacional a uma posição de dominância econômica e, sobretudo com a chegada da República, também política. O passado paulista resgatado para atestar o poder do presente foi o passado bandeirantista. Os bandeirantes, antes interpretados no imaginário da elite proprietária também como bárbaros à margem da civilização, nesse sentido diferenciando-se dos indígenas apenas por se dizerem cristãos, passaram a ser retratados como nobres heróis, aventureiros desbravadores que, com a força e a coragem, foram pioneiros em levar a colonização para as entranhas do país – uma força progressista na construção nacional.
Essa imagem, claro, é inteiramente ficcional. O caminho dos criadores de gado já havia adentrado no sertão pernambucano e baiano antes, assim como outros grupos exploradores em busca do tão cobiçado “eldorado tropical”, ou, mais prosaicamente, de mão de obra indígena a ser escravizada. De todo modo, o mito do bandeirantismo servia às pretensões nacionais de poder da classe dominante paulista. E, pelo menos em São Paulo, vingou. Há continue dizendo, mesmo hoje, que teríamos sido um país costeiro, não fosse a coragem dos “heróis nacionais”, e a disposição para assumir riscos de um espírito audacioso de quem não é conduzido, mas conduz. No novo vocabulário coaching dos ideólogos neoliberais, não falta quem identifique nos bandeirantes sujeitos que anteciparam um “espírito empreendedor”, ao qual o próprio Brasil deve sua grandeza.
Não é, entretanto, surpreendente que esse tipo de retórica ganhasse força em um momento como aquele: momentos de ruptura, quando se estabelecem novos poderes, costumam envolver a construção de narrativas que legitimam a ideia de um destino de glória, já identificado em tempos remotos. São reafirmados, assim, os novos poderes e as hierarquias vigentes no presente, como se elas sempre estivessem estado ali, naturalmente, impostas pelo curso inevitável da história ou pelas mãos da providência divina.
Esse tipo de resgate do passado faz um uso interessado da história, misturando fatos selecionados com retórica mítica, para dar um sentido positivo à realidade presente. Todo tempo de mudança cria seus mitos nacionais, e o Brasil é cheio deles: o mito do “encontro” pacífico entre diferentes culturas que “criou” a pátria, o mito da democracia racial, o mito da cordialidade brasileira e o mito de que os brasileiros seriam avesso às hierarquias, quase biologicamente afeitos à amizade informal.
O passado bandeirantista segue a mesma lógica, revisto e reconstruído para criar uma nova mitologia nacional – e, com ela, novas formas de rememoração coletiva. Se as memórias e os símbolos mudaram, para atender à nova distribuição de poderes vigente, a base social e política sobre a qual esses poderes se construíram, no entanto, permaneceu. Eram os mesmos de sempre: os indígenas e os negros escravizados, os trabalhadores pobres e as massas marginalizadas dos centros de decisões políticas. A esses permanecia reservado o mesmo lugar de sempre: o do esquecimento.
Afinal de contas, os poderes poderiam mudar, mas sempre internamente à mesma classe. O que implicava – e implica até hoje – a permanência de exclusões cruciais e estruturais. O esquecimento, nesse sentido, cumpre também um papel de negação. Nega-se aos excluídos o lugar da rememoração. Os símbolos como a estátua de Borba Gato, ao mesmo tempo que afirmam uma história – a sudestina, branca, escravista – negam outra – a dos negros e indígenas escravizados, a dos trabalhadores explorados até a morte.
Disputando o passado para entender o presente
O que ocorreu no passado pode ser rememorado no presente de diversas maneiras. Isso faz com que a memória, assim como a história, seja um campo de disputas retóricas. A narrativa que “vence” a disputa – o que chamamos de história oficial – o faz em detrimento de outras narrativas. É bom lembrar: o não dito tem muito a dizer. A chamada história dos vencidos, dos que foram relegados ao esquecimento e à morte (física e simbólica), guarda aquilo que a história dos vencedores não quer dizer: a corrupção, a violência da escravização, do estupro, do saqueamento.
A criação de memórias coletivas, portanto, é uma forma de resgate do passado pelo presente. Tem pontos de conexão com a história, mas não se confunde com ela. Da mesma forma, a criação de símbolos que materializam memórias coletivas, como estátuas e monumentos, também mantêm conexões com o passado, mas não se confundem com ele. Trata-se, sempre, de um uso instrumental da história.
Nesse sentido, o ato de colocar ou retirar uma estátua, de construir ou derrubar um monumento e de rememorar algumas figuras enquanto outras são esquecidas, são, primordialmente, demarcações políticas, que evocam a história para afirmar uma certa visão do passado e a mobiliza para conflitos sociais no presente. Afinal, a história não é um resgate isento do passado, mas interessado, seja em manter privilégios ou em emancipar oprimidos e explorados.
A derrubada das estátuas que contam essa história – a dos vencedores – e especialmente o incêndio da estátua de Borba Gato, aqui no Brasil, quando pensados à luz das relações que implicam memória e história, estão distantes de qualquer tentativa de anacronismo ou de apagamento do passado. Ao contrário, trata-se de recusar o esquecimento dos que foram brutalizados pelas figuras dos que estão representados nos monumentos. Assim como a construção desses monumentos, que nos impõe uma história e não outra, é um ato político, a retirada também o é.
Para os defensores da ordem, a violência da representação positiva de escravocratas e dos arquitetos das teorias raciais do século XIX são aceitáveis, justificadas pelas “mentalidades de seu tempo”, mas a violência da recusa à esses símbolos, materializada na queima de estátuas, não o é. Não é simples coincidência que os símbolos do passado escravista e colonial se confundam com os espaços urbanos, tão marcados pelo apartheid espacial da gentrificação: a disputa pela memória tem uma dimensão de disputa pela coisa pública, capitaneada o tempo todo pelos representantes contemporâneos da mesma elite colonial que se vê rememorada nas estátuas.
Poder, violência e luta de classes
Há, porém, um certo senso comum moralista no debate público que pede moderação e faz apelo a uma abstrata não violência quando se trata da luta popular por direitos políticos, econômicos e pela memória. Esse apelo parece partir do esquecimento – consciente ou não – de que o ato da escolha do que se é rememorado e do que se é esquecido implica, em si, um ato de violência. Afinal, quem detém o poder para escrever a história oficial? Quem detém o poder de escolha para decidir o que será visto como história e o que será esquecido no tempo? Como nos diz Bertolt Brecht:
“Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?
nos livros estão nomes de reis,
os reis carregaram as pedras?”
Impor uma memória é impor um esquecimento. Temos, portanto, o direito histórico de esquecer e de refazer a história. O ato de queimar uma estátua que, infelizmente, continua lá, até reformada agora por “cidadãos de bem”, é um ato que, como diz Walter Benjamin, captura as reminiscências de um passado que se faz presente e o atualiza, dando voz aos mortos que foram silenciados e cuja história, apesar de morta, paira entre nós.
Os milhões de brasileiros descendentes de escravizados são alvos da morte, da pobreza e da criminalização, como o eram seus ancestrais caçados, mortos e estuprados pelos bandeirantes e seus mandantes das elites, que até hoje continuam no poder. Ainda hoje, populações indígenas têm suas terras roubadas, e continuam sendo assassinadas por grileiros e capangas de latifundiários, como o eram seus antepassados. E continuamos a dividir o espaço público com símbolos que exaltam positivamente o legado da escravização e da violência colonial. Não no passado, mas no presente. Incendiar a estátua de Borba Gato é recusar monumentos que impõem uma história que é uma ode ao símbolo da morte, dor e inexistência, protegidas por um Estado que se reivindica democrático.
Devemos sim, evidente, estudar e conhecer sobre os bandeirantes. Não para celebrá-los como símbolo nacional, mas para rememorá-los enquanto símbolo do que deve ser superado definitivamente, não só em seu passado, mas em nosso presente. Nossa tarefa, como diria Benjamin, é a de fazer com que os vencedores parem de vencer, pois essa vitória, brutal e continuada, significa que ainda estamos em perigo – até os nossos mortos estão. Ao contrário, precisamos recuperar a história dos vencidos, que carrega consigo um índex silencioso que respiramos no ar. Só assim podemos fazer do presente um lugar da redenção emancipatória e não da repetição da opressão e exploração do passado.
Longe de apagar o passado, batalhas como essa são elementos fundamentais para a construção de sociedades verdadeiramente democráticas. Derrubar uma estátua que nos impõe uma reatualização da vitória dos que continuam vencendo nos impõe a tarefa política de redimir os derrotados e assim aliviar a dor do anjo da história que não se cansa de olhar para trás e só ver tragédias e mortes, pois como bem disse Benjamin, “Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunimente”.
A construção da forma como o passado é contado não é neutra. Sempre atende a alguns interesses do presente e, por isso, está sempre vinculada a um projeto político, seja para reafirmar a política do presente ou para questioná-la. A construção da memória dos bandeirantes, representada por Borba Gato, cumpriu o papel de legitimar a política de São Paulo, quando as elites senhoriais paulistas assumiram uma nova posição de poder no cenário nacional.
A defesa dessa memória reproduz a mesma lógica dos mitos nacionais, que evocam a história para justificar uma escolha política. É a apresentação ideológica do Brasil como um território que precisava ser dominado pela força e autoritarismo, à maneira bandeirante. Nesse enquadramento, a natureza e as populações tradicionais, ainda não incorporadas inteiramente ao mundo da mercadoria, seriam apenas obstáculos para o “progresso”, cujo único destino possível era a submissão (ou eliminação, pura e simples), abrindo espaço para o Brasil “civilizado”. Seriam “obstáculos que precisavam ser vencidos” por homens fortes, cuja missão “heróica” era construir a nação.
Distorcer a História e apagar partes do passado é uma escolha que sempre será política. É preciso, portanto, lembrar do que se quer fazer esquecer. É preciso lembrar sempre de não esquecer. Por isso, foda-se as estátuas dos escravistas!