Eu vivia recebendo esses boletos de cobrança. Um deles era de um hospital e o outro de um laboratório, somados eles dizem que devo 700 dólares por um check up e um teste diagnóstico. Eu tinha acabado de começar em um novo emprego – meu primeiro como recém formada – e ainda nem havia recebido meu primeiro pagamento. Estava exausta atendendo meus novos pacientes, conhecendo meus novos colegas de trabalho e entendendo como lidar com minhas novas obrigações. Desnecessário dizer que os boletos surpresa não chegaram num bom momento.
Sabia que minha seguradora cobria tanto o check up quanto o teste. Então, fiz o que tinha que fazer: liguei ao hospital para tentar entender o que estava acontecendo. Depois de uma espera na linha, fui atendida, mas me disseram que o problema era com o pagamento e não com o provedor. Então, liguei para minha seguradora. Mas eles me disseram justamente o oposto: eu precisaria ligar ao provedor. Então, liguei de volta ao hospital. Mas eles me disseram novamente que o problema era com a seguradora. E assim por diante. Foram longas esperas no telefone. Fui jogada pra lá e pra cá, de um departamento a outro.
Foi por volta dessa época que comecei a perder minhas chaves – o que pra mim, hoje em dia, não é algo que aconteça com frequência. Eu saía para trabalhar sem meu celular e tinha que dirigir de volta para casa para pegá-lo. Eu estacionava na rua errada e em horário proibido e recebia uma multa de 32 dólares, embora conhecesse a região. Em um certo ponto, perdi o cartão do meu plano de saúde e tive que solicitar outro – algo nada fácil diante das constantes esperas e transferências de departamentos. Cumulativamente, minha vida começava a ficar mais e mais estressante, numa espiral descendente.
Por fim – após semanas – resolvi o problema. Pouco tempo depois, comecei a me sentir bem novamente. Em outras palavras, parei de perder minhas chaves.
Conto essa história não para discutir as políticas de saúde dos Estados Unidos (embora sejam terríveis), tampouco para ilustrar a armadilha da pobreza (um problema temporário de liquidez é diferente de pobreza) ou os problemas com a arrecadação regressiva de receitas municipais baseada em multas e taxas. Trago essa anedota pessoal para explicar, de modo concreto, a forma pela qual o estresse prejudica o funcionamento cognitivo no curto prazo.
De acordo com a American Psychological Association, podemos definir função cognitiva como “a performance dos processos mentais como percepção, aprendizagem, memória, compreensão, consciência, raciocínio, julgamento, intuição e linguagem”.
“Estresse psicológico pode afetar funções cognitivas no curto prazo (e.x., como quando os pensamentos de uma pessoa são tomados por uma discussão que ocorreu mais cedo num dia e resultam em habilidade reduzida de prestar atenção, acompanhar ou lembrar de passos a serem tomados numa tarefa a ser cumprida)”, conforme um artigo publicado em 2015 pelo periódico BMC Psychiatry. “No curto prazo, pequenos estressores diários podem produzir efeitos passageiros na cognição ao reduzir a quantidade de recursos atencionais disponíveis para o processamento de informação.”
Porém, uma vida toda de estresse acumulado pode também promover efeitos deletérios de longo termo – particularmente quando se trata de envelhecimento. “Aqueles que experimentam estresse crônico mostram declínio cognitivo acelerado se comparados aos pares menos estressados de sua mesma idade”, afirma o artigo.
Esse e outros estudos têm sugerido um link entre aumento de estresse e a doença de Alzheimer. “O manejo do estresse pode reduzir problemas de saúde relacionados ao estresse, os quais incluem problemas cognitivos e um maior risco de doença de Alzheimer e demência”, afirma artigo publicado no blog da Harvard Health.
O artigo sugere que você “proteja seu cérebro” desses problemas reduzindo o estresse: tendo uma boa noite de sono, fazendo uma lista de seus afazeres, e pedindo ajuda e suporte a outras pessoas. Essas são todas ótimas ideias, as implemento em minha própria vida e sugiro aos meus pacientes que se sentem sobrecarregados pelas batalhas do dia a dia façam o mesmo.
Mas essas ideias de manejo de estresse sempre vão nos fazer sentir como se estivéssemos nadando contra a corrente em uma sociedade que está engajada – nas palavras de Mark Fisher – na “ampla privatização do estresse”. Afinal de contas, porque exatamente o manejo de estresse causado por serviços públicos confusos e degradados pela austeridade, por condições opressivas de trabalho e por racismo, sexismo e outros preconceitos recaem sobre o indivíduo?
Costumo explicar a privatização do estresse para pacientes logo após falarmos sobre o sono, sobre listas de afazeres, e sobre pedir ajuda. Digo a eles para não acabarem consigo mesmos, especialmente porque o problema é sistêmico. Mas mesmo isso é insuficiente. Em terapia, trabalhamos para identificar as soluções reais para os problemas dos pacientes. Portanto, falamos sobre como as coisas poderiam ser diferentes.
E se manejar o estresse diz respeito, de fato, a organizar a sociedade de uma forma que seja menos estressante para todas as pessoas? Poderíamos reduzir o fardo administrativo jogado sobre indivíduos contratando mais pessoas e tornando os serviços mais simples de se utilizar (é o caso tanto do serviço público quanto do privado). O governo poderia financiar plenamente um transporte eficiente. O governo poderia determinar maiores salários, maior segurança no trabalho e mais tempo de folga remunerada, de modo que as pessoas pudessem cuidar de si mesmas e relaxar.
A redução do estresse deveria ser tratada como um sério problema de saúde pública. É também um assunto de equidade. Como no caso de qualquer doença social, as pessoas pobres são as mais expostas e desenvolvem os piores efeitos. Se realmente queremos reduzir o estresse, a única solução está num sistema construído para servir às pessoas – e não o contrário.
Sobre os autores
é uma escritora e psicoterapeuta em Baltimore.