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Gustavo Petro em Cúcuta com colete à prova de balas e escudo blindado. Foto EFE.

A esperança sob ameaça na Colômbia

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Conversamos com o analista político colombiano Sebastián Ronderos sobre os detalhes da eleição presidencial que acontece este mês. Entre sabotagens, risco de fraude eleitoral e até ameaças das Forças Armadas e a narcoburguesia, o candidato da esquerda Gustavo Petro lidera com folga a disputa - um feito inédito para o campo progressista no segundo maior país da América do Sul.

UMA ENTREVISTA DE

Hugo Albuquerque

No próximo dia 29 de maio, os colombianos irão às urnas para o primeiro turno das eleições presidenciais. Gustavo Petro, o candidato de esquerda, lidera as pesquisas de opinião de forma incontestável. É uma prova de que as coisas mudaram, e podem mudar ainda mais, na Colômbia. 

A Colômbia passou décadas por uma guerra civil que gerou milhões de refugiados e, ainda, servia como base de perseguições que impediam a esquerda de disputar eleições. No entanto, o Processo de Paz de 2016 mudou permanentemente o equilíbrio de forças do segundo maior país sul-americano, ampliando os horizontes da esquerda e dos movimentos sociais. 

Em 2018, o mundo testemunhou a surpreendente chegada ao segundo turno de Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro ligado à ala progressista da Igreja Católica. Agora, em 2022, falamos de uma chance real de vitória, novamente com Petro, que pode encerrar a mais bem-sucedida hegemonia oligárquica pura da América Latina, cuja duração remonta à fundação do país.

A esquerda vem mais forte do que nunca para a disputa, em um cenário ainda muito difícil, marcado pelas constantes intervenções do presidente ultraconservador Iván Duque em favor de seu candidato, Federico “Fico” Gutiérrez. Além disso, testemunhamos intervenções ilegais de procuradores, ameaças do comandante das Forças Armadas e, até mesmo, a revelação de planos de paramilitares para matar Gustavo Petro.

No fim, a conjuntura colombiana confirma o realismo mágico de Gabriel García Márquez, o seu maior escritor, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1982. Por isso, entrevistamos o analista político colombiano Sebastián Ronderos, doutor pela Essex University, especialista na obra de Ernesto Laclau – e no conceito de populismo – para entendermos os enigmas desse país-irmão tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante e singular.


HA

Gustavo Petro lidera as pesquisas para eleições presidenciais colombianas, com chances reais de vencer no primeiro turno – e certamente favorito, caso a disputa vá para o segundo turno. Qual sua análise de Petro e de seu movimento político?

SR

Gustavo Petro é um intelectual, ex-membro da guerrilha M-19, ex-parlamentar de oposição ao ex-presidente, e líder da direita, Álvaro Uribe, e ex-prefeito de Bogotá com amplo apoio popular. É justamente a partir dessas experiências que Petro se cultivou como a maior figura em oposição ao uribismo, construindo as bases para consolidar um projeto político de nível nacional. Dinâmicas da história colombiana podem nos ajudar a compreender a natureza do petrismo como fenômeno político.

Entre alguns dos elementos centrais da política colombiana, temos a questão da terra, o grande motor das muitas guerras civis colombianas desde o século XIX. As elites latifundiárias se tornam predominantes num processo de deslocamento, expropriação e acumulação de terras produtivas. Isso é fundamental para a intermediação, quase como uma simbiose, entre narcotraficantes, generais e políticos no final do século XX, constituindo um dispositivo de manutenção e restruturação dos interesses das classes dominantes colombianas.

O segundo elemento que eu destaco é a questão do liberalismo colombiano, um espaço político extremamente ambíguo, embora seja o ambiente por onde passaram, institucionalmente, as demandas populares. Podemos destacar, por exemplo, a primeira tentativa de impor tributos a grandes latifundiários de terras produtivas na Revolução em Marcha de Alfonso López Pumarejo – presidente entre 1934 e 1938 –, depois a tentativa de reforma agrária por Alberto Lleras Camargo – presidente por duas vezes, entre 1945 e 1946 e depois entre 1958 e 1962 – ou o discurso anti-elitista e popular do líder político Jorge Eliécer Gaitán, que, vale ressaltar, teve grande influência para figuras que expandiram os horizontes do socialismo na América Latina, como Fidel Castro. 

“Fidel participou da resistência popular posterior ao assassinato de Gaitán, permanecendo na Colômbia um tempo, resistindo de forma armada à expansão da agenda conservadora, como relatado pelo García Márquez.”

Fidel, na época um estudante de 21 anos, se reuniria com o Gaitán, na mesma tarde do seu assassinato em 1948, em Bogotá. O futuro líder cubano tinha vindo à Colômbia para um encontro estudantil que se opunha à IX Conferência Pan-Americana, realizada em Bogotá, onde foram estabelecidas as bases para a futura Organização dos Estados Americanos (OEA). Fidel participou da resistência popular posterior ao assassinato de Gaitán, permanecendo na Colômbia um tempo, resistindo de forma armada à expansão da agenda conservadora, como relatado pelo García Márquez. O liberalismo popular colombiano constitui uma peça-chave na história do socialismo regional.

Mas a fração elitista do liberalismo é central também para entender as rearticulações da agenda da elite. Primeiro na assimilação da agenda neoliberal, expandida a partir do governo de César Gaviria após a desmobilização do M-19 (guerrilha do qual Petro fazia parte), nos anos 1990, até o governo Uribe, que é o primeiro governo colombiano impulsionado pelo Partido Liberal, mas ao mesmo tempo apoiado quase que de forma absoluta pelo Partido Conservador. 

O petrismo aparece como um resgate do clamor do liberalismo popular e plebeu: da reforma agrária, de uma revolução produtiva, de uma mitigação da desigualdade não só na posição da propriedade rural, mas também na posição da terra urbana – que foi marcante na passagem de Petro pela prefeitura de Bogotá – se volta à modernização democrática e produtiva da Colômbia em oposição do grande latifúndio improdutivo alinhado com o narcotráfico hoje visivelmente representado no uribismo. 

“O petrismo interconecta a relação entre terra e trabalho com uma consciência ecológica, trazendo a mudança climática ao centro da sua agenda de desenvolvimento produtivo.”

Em interconexão com os insumos históricos do liberalismo popular e agrário, Petro afirma seu movimento político articulando novos sentimentos e demandas que começaram a surgir ao redor dos acordos de paz: a agenda LGBTQIA+, o movimento feminista, os camponeses, os indígenas, os jovens precarizados que trabalham como entregadores de Rappi, os mesmos atores que, na sua maioria, foram os que saíram para as ruas com suas determinadas famílias nas mobilizações dos últimos anos contra Iván Duque, e que hoje se afirmam como sujeitos políticos centrais nas dinâmicas sócio-políticas colombianas. 

O petrismo interconecta a relação entre terra e trabalho com uma consciência ecológica, trazendo a mudança climática ao centro da sua agenda de desenvolvimento produtivo, se distanciando da exploração de recursos fósseis. Considera, assim, que o projeto de modernização é incontornável, mas ele já não pode ser atravessado por uma dependência de exportações de matérias-primas e destruição ambiental causada pelo grande latifúndio improdutivo e extrativista. 

HA

Como você avalia a suspensão de um compromisso de campanha de Petro pela revelação de um plano de assassiná-lo no eixo cafeicultor?

SR

O assassinato de lideranças políticas no Brasil é um motivo de comoção social e, também, de ampla surpresa. Já na Colômbia, isso é uma prática cruel que faz parte da normalidade do funcionamento da democracia formal. Isso se sustenta, justamente, pelos mecanismos violentos estruturais da política da Colômbia. O cancelamento, por parte de Gustavo Petro, da sua visita ao denominado eixo do café, que faz parte da região de Antioquia, se explica pela forte presença do uribismo – e junto dele a articulação sanguinária de setores da polícia, do Exército e grandes latifundiários vinculados com o paramilitarismo. 

“Poucas vezes, na história recente colombiana, se viu uma intervenção tão direta dos militares e da burocracia nas eleições como a atual.”

Esses setores estruturam organizações como La Cordillera, apontada pela campanha de Petro como autora do plano do assassinato contra ele. Essa organização seria também responsável pelo assassinato do jovem, liderança estudantil, Lucas Villa, morto na cidade de Pereira, em 5 de maio de 2021, em um protesto pacífico. Isso mostra que as estruturas criminosas que sustentaram o uribismo estão atentas, alertas e ativadas para o caso de falharem em uma fraude eleitoral: o assassinato do candidato da esquerda colombiana está posto sobre a mesa.

HA

O comandante das Forças Armadas colombianas escreveu um fio no Twitter no qual atacava Petro. Fatos semelhantes têm acontecido no Brasil. No entanto, embora a Colômbia tenha vivido décadas de guerra civil, ela nunca teve uma ditadura como o Brasil. Como avaliar o impacto disso?

SR

O golpe de Estado na Colômbia sempre foi comandado pelas elites, utilizando elementos militares, mas mantendo as aparências democráticas e eleitorais.

Há alguns eventos golpistas, que são movimentos de isolamento ou assassinato das figuras centrais ou de boicote, por parte de setores estratégicos, para desestabilizar economicamente ou causar impactos sociais para sabotar lideranças e governos progressistas, ou nacional-desenvolvimentistas, inclusive. 

No entanto, poucas vezes, na história recente colombiana, se viu uma intervenção tão direta dos militares e da burocracia nas eleições como a atual. O atual presidente da República, Iván Duque, já soma três denúncias formais por intervenção ilegal no processo eleitoral, tudo para favorecer seu candidato à presidência, Federico “Fico” Gutiérrez, um ex-prefeito de Medellín. 

De forma semelhante, o ministro da Defesa e o procurador-geral da República também interferiram nas eleições, atacando Petro. É nesse contexto que veio o ataque, via Twitter, do comandante do Exército, Eduardo Henrique Zapatero, contra Gustavo Petro. Zapatero respondeu a um discurso em público de Petro, em que ele denunciava a relação evidente, notória e comprovada entre generais do Exército e o narcotráfico. 

Esse tipo de intervenção tão direta pode ser considerado sintoma de um momento especial da política colombiana – e é o produto da relação simbiótica de longa data entre narcotraficantes, generais e políticos. Essa simbiose é central para compreender a manutenção de relações de domínio territorial por elites nacionais e máfias regionais, e se liga à expansão do narcotráfico na Colômbia nos anos 1980-1990.

Vale ressaltar que os paramilitares na Colômbia não são necessariamente milicianos como vemos no Brasil. Eles são ou se articulam como estruturas para-estatais, exércitos mercenários em tempo integral. Enquanto isso, os milicianos são, na sua grande maioria, membros oficiais do corpo de segurança do Estado, que durante o dia operam como oficiais e durante a noite operam como milícia. 

Com a ascensão do narcotráfico, surgem burguesias regionais alinhadas com esse fenômeno, que se fortalecem, conjuntamente, com essas elites latifundiárias, estruturando exércitos mercenários que se consolidam com o chamado paramilitarismo – e é aqui que a figura dos generais se tornou uma intermediação central entre essas estruturas e os partidos políticos sob controle das elites. 

“Mais de 6 mil representantes foram assassinados, entre eles Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa, candidatos presidenciais pela União Patriótica.”

Como efeito, aquelas tentativas que pareciam consolidar uma força eleitoral que conseguisse vencer o dinheiro do narcotráfico e a fraude foram, na sua grande maioria, dissipadas por assassinatos realizados pelas grandes estruturas criminosas.

Nos 1980, testemunhamos o extermínio da União Patriótica (UP), partido político de setores da esquerda que tentavam disputar eleitoralmente contra as elites. Mais de 6 mil representantes foram assassinados, entre eles Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa, candidatos presidenciais pela UP. Também foram assassinados o ex-comandante do M-19, Carlos Pizarro Leongómez, e o líder liberal Luis Carlos Galán – ambos se dispunham a disputar o pleito eleitoral de 1990.

Hoje, com o cenário eleitoral inusitado, após uma vitória ampla do Pacto Histórico, por primeira vez consolidando uma forca progressista majoritária no Congresso, cria-se pânico nessas grandes estruturas militares estatais e para-estatais no seu domínio regional e nas elites no seu comando nacional.

A reação do general Zapatero contra o Petro é apenas sintoma do que está se consolidando no subsolo da política colombiana. Por um lado, o dinheiro do narcotráfico é todo posto a serviço da fraude eleitoral e, se não for suficiente, teremos uma investida física contra Petro – ou, ainda, a criação de armadilhas que possam levar a um processo jurídico para impedi-lo de tomar posse. Como bem sabemos, planos para assassiná-lo estão também em curso.

Os aparelhos criminosos constituídos na aliança entre elites de nível nacional e narco-burguesias regionais têm operado como mecanismo de manutenção do poder armado criminoso, o qual pode prescindir de ditaduras militares, mantendo assim a aparência democrática. Mas essas estruturas, hoje, começam a se deslocar, e setores militaristas alinhados com o paramilitarismo tornando-se mais agressivas, pressagiando um cruento retorno da violência política contra os movimentos de esquerda presenciados nos anos 1980-1990. 

HA

Então, é possível um golpe na Colômbia antes das eleições ou depois delas?

SR 

Todas as eleições colombianas têm um maior ou menor nível de fraude eleitoral. A Colômbia hoje não tem um software que digitaliza completamente a contagem de votos. Inicialmente o voto é feito manualmente em papel e depois levado das mesas eleitorais ao software em que os votos são unificados. A fraude acontece no processo de contagem dos votos nas mesas eleitorais, por testemunhas compradas com dinheiro do narcotráfico. E tudo isso pode ser mobilizado contra Gustavo Petro, e de forma secundária a favor do candidato que o uribismo apoia, Federico Gutiérrez.

“Aparelhos criminosos constituídos na aliança entre elites de nível nacional e narco-burguesias regionais têm operado como mecanismo de manutenção do poder armado criminoso, o qual pode prescindir de ditaduras militares, mantendo assim a aparência democrática.”

O DNA institucional na Colômbia se estrutura historicamente em torno de interesses de grupos e elites crioulas beneficiadas pelas dinâmicas pós-coloniais, das disputas coloniais, como boa parte das elites a nível regional, que vários historiadores, inclusive, levam até a famosa disputa entre Bolívar e Santander. 

Um exemplo disto é a Guerra dos Mil Dias, de 1899 a 1902, em que, por denúncias sobre a forma fraudulenta em que dirigentes conservadores se sustentavam no poder político, explode uma guerra civil onde morrem mais de 100 mil pessoas, que, na densidade populacional daquele momento, se referia a mais ou menos 3,5% da população da época. 

E nesse processo de vencer, exterminar e rearticular, os Estados Unidos sempre estiveram presentes. Vale lembrar que é justamente após 1903 que se dá a independência do Panamá do território colombiano, a partir da intervenção dos Estados Unidos, no seu interesse por desenvolver o canal do Panamá.

Também, a prevalência das elites latifundiárias sobre as industriais nos anos 1970 que se opunham a um projeto de modernização nacional e popular promovido, então, pelo general Gustavo Rojas Pinilla – contra o qual se dá a fraude eleitoral de 19 de abril de 1970, de onde surge como resistência o M-19, guerrilha com tendências populares e liberais, principalmente não marxistas, da qual Gustavo Petro fez parte. 

Com a desmobilização desta guerrilha no começo dos anos 1990, se formaliza a expansão do neoliberalismo que fica incorporado no DNA institucional, na Constituição de 1991 — justamente Constituição ou constituinte que se dá justamente após a desmobilização do M-19. 

Temos alguns cases de tentativas de golpe de Estado stricto sensu, mas é a fraude eleitoral o mecanismo par excellence por meio do qual as elites conseguem frustrar ambições políticas populares. No segundo momento, o extermínio físico como limite à possibilidade de incorporar na disputa política institucional discursos e atores opostos aos seus interesses predominantes históricos de determinados setores das elites. 

Vale ressaltar que nas últimas eleições legislativas, no mês de março, curiosamente houve mais 20 mil postos de votação nos quais não se registou nenhum único voto pelo Pacto Histórico, partido de Gustavo Petro. Só depois de uma auditoria que o conseguiu-se resgatar 400 mil votos que não foram incorporados no processo eleitoral, ganhando assim três cadeiras no Senado a mais das dezesseis que já haviam sido oficialmente anunciadas. Então esse já é o prefácio da grande máquina e da quantidade de dinheiro colocado em função da fraude eleitoral como principal hipótese no roteiro para impedir um governo do Petro. 

Em segundo lugar, creio que a estratégia da destruição física viria, sem dúvida alguma, desses elementos militaristas muito mais alinhados ao uribismo e ao paramilitarismo. As estruturas denominadas como paramilitares, que hoje controlam boa parte da produção de cocaína no país – em territórios que foram abandonados pelas guerrilhas, na desmobilização delas pelo Processo de Paz, o que já tem se manifestado pelo assassinato seletivo de lideranças regionais.

Agora, com a incorporação institucional de novos atores aos setores progressistas, na plataforma do Pacto Histórico, há uma situação sem precedentes. Internamente, nas instituições há uma nova forma de compreensão do que devem ser as relações político-sociais. 

“Acho que, muito antes de um golpe de Estado, o interesse central da direita é a reativação da guerra civil. O próprio Iván Duque está sabotando os acordos de paz.”

Inclusive, dentro do Exército se expressam algumas tensões nas quais temos, de um lado, os grandes generais alinhados ao narcotráfico e, do outro, os muitos soldados que estão sendo assassinados – não já diretamente no seu conflito contra as FARC, mas pelos próprios narcotraficantes abraçados com esses generais. 

Acho que, muito antes de um golpe de Estado, o interesse central da direita é a reativação da guerra civil. O próprio Iván Duque está sabotando os acordos de paz, promovendo a expansão de dissidências das FARC. Isso serviria como um reativador dos elementos sobre os quais o uribismo se sustentou. 

HA

O que significa a possibilidade de um governo de esquerda na Colômbia para a relação com os Estados Unidos e a América do Sul?

SR 

A Colômbia tem sido um importante centro de articulação dos interesses dos Estados Unidos na América do Sul e no Caribe. Isso se deve às características geopolíticas do país, que interconecta América do Sul com a América Central e o Caribe, com saída também para o Pacífico. Trata-se de um espaço privilegiado de interconexão de toda essa grande região. 

Ser peça-chave da articulação também dos Estados Unidos no Pacífico, para o Peru e Chile, tem implicações no que diz respeito ao modelo colombiano e desses países – tanto que se escutam na Colômbia os ecos da contestação chilena ao modelo de educação, de saúde e serviços públicos em geral constituídos a partir da ditadura de Pinochet que foram, não à toa, reproduzidos pelas elites colombianas.

“Uribe, para traduzi-lo em termos brasileiros, é um tipo de Bolsonaro com as habilidades políticas do Lula.”

A Colômbia tem sido um grande desarticulador de todas as tentativas de integração regional, e não podemos deixar de ressaltar a centralidade da figura de Uribe – foi na contramão da América Latina que ele conseguiu constituir um consenso nacional interno, que se mostrou mais estável na Colômbia do que o do PT no Brasil. Isso denota a astúcia e a estatura política da figura de Álvaro Uribe Vélez. Uribe, para traduzi-lo em termos brasileiros, é um tipo de Bolsonaro com as habilidades políticas do Lula. 

A Colômbia é desde sempre uma peça fundamental, porque não tem se permitido, de jeito algum, uma abertura democrática que a permita ter governos socialistas, ou democratas sequer. Essa eleição seria a primeira vez que as elites tradicionais teriam de passar o bastão da hegemonia, embora Álvaro Uribe Vélez, pessoalmente, não tenha vindo propriamente delas.

Cabe lembrar que boa parte das operações de espionagem denunciadas pelo WikiLeaks contra o governo da Dilma vieram da Colômbia, dos escritórios centrais dos Estados Unidos na Colômbia – assim como operações para a desestabilização regional, como o envio de paramilitares para fazer atentados na Venezuela, a presença de ex-militares colombianos participando do assassinato de Jovenel Moïse, ex-presidente do Haiti.

“Cabe lembrar que boa parte das operações de espionagem denunciadas pelo WikiLeaks contra o governo da Dilma vieram da Colômbia, dos escritórios dos Estados Unidos no país.”

Um governo progressista na Colômbia habilitaria uma restruturação na correlação de forças da América Latina com os Estados Unidos. Isso pode dar fôlego ao realinhamento político-ideológico no Pacífico e, também, à restruturação das forças progressistas andinas e no Atlântico. 

HA

Qual a capacidade que uribismo tem de sabotar um novo governo?

SR 

O uribismo está sendo amplamente contestado. As condições que o sustentavam foram deslocadas como eu disse. Por um lado, pela pluralidade política urbana expressa desde as negociações de paz entre o governo Santos e as FARC, e outro pelo fim da bonança do carvão e do petróleo com as quais o uribismo contou durante duas décadas, a qual tem achado os seus limites. 

Agora, as bases criminosas do uribismo estão mais vivas do que nunca, na expansão dos paramilitares, de narcotraficantes que tomaram conta das regiões onde antes as FARC tinham presença, incrementando a sua capilaridade regional. Há também amplos recursos provenientes, principalmente, do narcotráfico, o qual cresce exponencialmente e se articula de forma orgânica com o a expansão dos cartéis no Mexico. 

“Agora, as bases criminosas do uribismo estão mais vivas do que nunca, na expansão dos paramilitares, de narcotraficantes que tomaram conta das regiões onde antes as FARC tinham presença.”

Esses recursos estão todos sendo postos o serviço de uma fraude eleitoral – e serão também utilizados para outros tipos de sabotagem, como operações de assassinatos e desestabilizações. As bases mais centrais disso são os representantes da narcoburguesia regional, organizadas em entidades como a Federação de Fazendeiros. Essas são as bases sociais do uribismo, que aparecem como as grandes ausentes nesta conjuntura, mas podem ressurgir para frear Petro.

HA

Sem o Processo de Paz colombiano, ainda que aplicado aos solavancos, seria possível esse cenário onde a esquerda é capaz de disputar uma eleição presidencial?

SR 

O Processo de Paz é o grande evento que desestrutura as bases ideológicas do uribismo. Antes, havia a construção de um inimigo interno, o fantasma do comunismo, renomeado nos anos 2000 como narcoterrorismo, que sustentou por muitos anos um gasto excessivo em defesa, justificando massacres e possibilitando a narrativa de uma guerra civil apresentada como necessária. 

São vários os fundamentos ideológicos e imaginários aproveitados pelo uribismo durante quase duas décadas. No entanto, eles foram contestados com a aparição de novas informações, de novas narrativas, de novos atores, inclusive daqueles atores das guerrilhas, para muitos completamente invisíveis, imaginados como os piores monstros, mas que começaram a ter voz, deixando claro que o grande inimigo do povo colombiano não são as guerrilhas, não é o comunismo, não é insurgência, mas é a grande desigualdade do país que sustenta o domínio e privilégio das classes dominantes. 

Foi no calor do conflito que o uribismo aproveitou para desenvolver uma agenda econômica profundamente regressiva em relação às grandes camadas da sociedade. E no que diz respeito ao Processo de Paz, é curiosa a centralidade de uma figura tão clássica das elites tradicionais como o ex-presidente Juan Manuel Santos, um membro da talvez mais poderosa família do país em termos políticos. Ele agiu para pôr fim à articulação das elites tradicionais com as emergentes burguesias narcocapitalistas comandadas por Uribe, o que deixa evidente o desgaste do pacto entre elites de nível nacional e narco-burguesias regionais, chave na manutenção do seu comando nacional.

Santos agiu para reconstituir o controle do poder político por parte de elites mais tradicionais, que começaram a se sentir desconfortáveis por esse vínculo direto com os paramilitares – e que adiantassem uma agenda, por exemplo, de descriminalização das drogas e legalização inclusive da maconha, como vem acontencendo nos Estados Unidos. 

Então uma nova agenda que se apresentasse menos criminosa é, justamente, a que habilita a possibilidade da presidência de Gustavo Petro, na sua capacidade de negociar com determinados setores tradicionais das elites que vem, desde 2016, se distanciando do Uribe. Sem o Processo de Paz é difícil imaginar um ator como Petro disputando, com chances reais, o pleito eleitoral.

HA

Em um cenário onde o mundo está conflagrado e a economia global não anda funcionado de forma nada amigável, qual a capacidade que um eventual governo Petro teria para enfrentar os problemas sem perder apoio popular?

SR 

A situação colombiana é dramática. Nas manifestações contra o governo Duque, testemunhamos um caráter insurrecional, com a contestação ao legado histórico autoritário neoliberal bastante parecido com a situação chilena, mas em um contexto de profunda precariedade e miséria. A crise alimentar, como descrita pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), tem três lugares agudos na América Latina e no Caribe: Colômbia, Honduras e Haiti. 

Isso potencializa a crise orgânica do uribismo, mas não apenas: outros setores das elites tradicionais não conseguiram articular projetos políticos na disputa pela liderança nacional, principalmente Juan Manuel Santos, que contribuiu para a crise social que, neste momento, só fortalece o apoio popular a Gustavo Petro. 

“A Colômbia resguardou durante o conflito armado paraísos naturais, os quais não serviam ao turismo por causa da violência. A grande aposta é fazer a reabilitação de um ecoturismo.”

As grandes apostas do petrismo estão ligadas, por um lado, à reativação de ramos produtivos, uma industrialização de tudo que foi completamente desestruturado nos últimos anos, na dependência extrativa começada pelo Andrés Pastrana, seguida e expandida pelo Uribe e, depois, acelerada por parte de Juan Manuel Santos – mas também em relação ao turismo. O extrativismo está no coração da crise de soberania alimentar, não só na Colômbia, mas em toda a América Latina. 

A Colômbia resguardou durante o conflito armado paraísos naturais, os quais não serviam ao turismo por causa da violência. A grande aposta é fazer a reabilitação de um ecoturismo que permita aproveitar o que é, hoje, o segundo país com a segunda maior biodiversidade per capita do mundo depois do Brasil, numa tentativa por conjugar soberania territorial, empoderamento comunitário e desenvolvimento ecológico. 

A aposta de Petro passa pelo incremento do poder aquisitivo real do cidadão e fortalecer, assim, o apoio popular a esse projeto de transição ecológica que supõe se afastar da dependência do petróleo e do carvão.

Se o futuro desenhado nesse caminho nos apresenta horizontes socialistas, num país como a Colômbia, é difícil de afirmar. O que se pode dizer é que a capacidade de Petro enfrentar uma situação pouco amigável da economia global está muito atrelada a este momento de profunda necessidade, precariedade, em que se encontra a maioria do povo colombiano. 

As condições que permitam, no entanto, habilitar realmente um processo lúcido acordado por novas relações coletivas, na conformação de um horizonte alternativo à expansão do capital improdutivo, vai depender, profundamente, do destino dos outros países da região – e falo dos processos eleitorais que se seguem, entre os quais o mais próximo, e mais importante, sem dúvida, é o brasileiro. A Colômbia será a antessala para o que pode vir a ser conflagrado no Brasil, país com o qual, por sinal, dividimos parte importante da maior floresta do planeta – a partir da qual devemos começar a pensar na transição a um futuro irremediavelmente ambientalista e popular.

Sobre os autores

é professor de filosofia e teoria política na Fundação Getúlio Vargas. Ele também é membro pesquisador da rede DeSiRe (Democracia, Significação e Representação) e do Centre of Ideology and Discourse Analysis (cIDA) da Escola de Essex.

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in América do Sul, Entrevista, Militarismo and Política

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