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Profissionais de saúde realizam testes de COVID-19 em Zhengzhou, centro da China. Foto de Ma Jian / VCG via Getty.

Como a China evitou o colapso neoliberal com a ciência

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Conversamos com o professor Elias Jabbour para entender como a China conseguiu crescer quarenta anos consecutivos, amalgamar o marxismo ao confucionismo e ao taoísmo e, ainda, aplicar uma política de Covid zero, com menos de 6 mil mortes num país 7 vezes maior que o Brasil.

UMA ENTREVISTA DE

Hugo Albuquerque

Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e geógrafo de formação, Elias Jabbour é presença cada vez mais constante nas redes e na mídia por sua pesquisa sobre a China e seu modelo econômico. Desde o ano passado, com novo livro, China: o socialismo do século XXI, publicado pela editora Botempo, escrito em companhia do economista italiano Alberto Gabriele, tem chamado atenção tanto pelo conteúdo do livro quanto pelo sucesso editorial da obra. 

Após o lançamento do livro, que contou com as presenças da ex-presidenta Dilma Rousseff e do jurista Silvio de Almeida, Jabbour tem atraído multidões aos seus lançamentos, mas também a fúria de neoliberais. Nessa entrevista à Jacobin Brasil, ele fala sobre marxismo, socialismo, o modelo chinês, mas também o estado da arte do neoliberalismo ocidental, que, sem muita cerimônia ou pudor, normaliza a morte de milhões de pessoas ao redor do mundo pela Covid-19.


HA 

Como começou seu interesse por marxismo e como isso conduziu sua pesquisa para a China? Conte também sobre seu livro mais recente, China: o socialismo do século XXI, que tomou o noticiário e despertou ódio na mídia neoliberal.

EJ 

Meu interesse pelo marxismo começou quando eu era muito jovem, com quinze anos. Eu era muito curioso e passava pelas bancas de jornal e via aquela série Os Pensadores, que tinha uma edição sobre Karl Marx e vários outros autores. Aí, comecei a ler e me interessar. Com dezesseis anos me filiei ao PCdoB e com dezessete entrei na universidade. Desde então, o meu interesse por estudar essas questões que envolvem socialismo, e porque deu errado na União Soviética, só aumentou. Se para a nossa cabeça aquela experiência era algo superior ao capitalismo, por que então deu errado? Então fui atrás de buscar respostas para várias questões, sendo que a principal delas é se socialismo seria algo plausível do ponto de vista científico e econômico, e isso me levou à questão da China, que foi a única experiência grande que sobreviveu.

Meu livro mais recente, China: o socialismo do século XXI é, na verdade, o sexto livro que eu escrevo, este em companhia do Alberto Gabriele, e se trata de uma condensação desses 25 anos de pesquisa ininterrupta sobre a China e o socialismo. E foi muito duro esse processo, porque a gente teve que reconstruir alguns conceitos do marxismo, porque os conceitos são historicamente construídos. Então, tínhamos que reconstruir o conceito de modo de produção, formação econômico-social, Lei do Valor, e a partir disso compreender e tentar buscar as chamadas leis de tendência desse socialismo de mercado que emerge na China com a reforma de 1978, e concluímos que ali emerge uma nova formação econômica e social e tal, e acho que o ódio que desperta — aliás, não só na mídia ocidental, mas também, em parcelas da esquerda, porque é um livro que coloca China e socialismo na capa.

“A lição que a China deixa para o mundo é de que a sociedade tem que ser entregue a governos comprometidos com a ciência.”

Colocamos uma cunha no debate sobre a China: acabou noção de que a China é um país capitalista. No lado só de marxistas neoclássicos, todos pensam assim, e conosco não. Agora esse livro meio que desobstrui o debate sobre a natureza da formação social chinesa, que para nós é uma formação orientada ao socialismo, e como é uma experiência que não é feita sob circunstâncias históricas escolhidas por nós, comunistas, muito menos pelos chineses, está sujeita a várias restrições ao seu desenvolvimento. Então tudo isso é contado no livro. É uma saga intelectual, vamos dizer assim.

HA

Qual a grande lição que a China atual já ensinou para o mundo e qual deveríamos ter aprendido com ela?

EJ 

Eu acho que a lição que a China deixa para o mundo é de que a sociedade tem que ser entregue a governos comprometidos com a ciência. A grande questão é que nós deveríamos estar hoje estudando, aqui no Ocidente, como é que os chineses conseguiram não somente crescer quarenta anos consecutivos fora de estereótipos, mas como eles conseguiram enfrentar essa Covid-19 do jeito que enfrentaram. Deveríamos ter ramos inteiros das ciências sociais completamente voltados a isso. Ou seja, o grande aprendizado de um governo que é amplamente baseado na ciência, coisa que o capitalismo já deixou de ser.

Aliás, na minha visão, o socialismo tem como forma histórica atual a transformação de ciência em uma instituição de governo, ou seja, a ciência como instrumento de governo. Essa é a forma histórica que o socialismo apresenta hoje. Acho que é isso que a China ensina pro mundo, mas eu acredito que as ciências sociais ocidentais não estão preparadas para entender o que está acontecendo com a China.

HA

Qual foi o erro soviético que os chineses não repetiram?

EJ

Acho que Deng Xiaoping resolve muito bem a questão do processo sucessório na China, ou seja, estabelece as regras para a sucessão, criando a noção de “gerações de dirigentes”, as regras e os critérios para a sucessão, coisa que não existia na União Soviética. Acho que na política é isso, tanto é que a China passa por grandes inovações político-institucionais, durante os últimos quarenta anos, muito grandes. As pessoas falam que na China a economia cresce, mas a política não muda. Muito pelo contrário, a política chinesa mudou muito! Acho que esse é um erro.

“A China começa a introduzir mecanismos, de, por exemplo, destruição criativa dentro de uma economia planificada, o que a União Soviética nunca conseguiu.”

Um outro erro que eles não cometeram foi o de não transformar o marxismo em um dogma oficial. Eles amalgamaram o marxismo ao seu pensamento nacional, confuciano e taoísta. Lá, o marxismo é parte do pensamento nacional e vai se adaptando à medida que os chineses têm que buscar soluções práticas para problemas concretos. É assim que surgem as teorias, a partir da busca por soluções, por questões práticas. E a União Soviética passou por um processo em que a teoria estagnou o desenvolvimento dela. 

Há, também, os saltos tecnológicos que a China conseguiu introduzir, na medida em que ela entra no mundo capitalista, adaptando toda a sua estrutura econômica. Então ela começa a introduzir mecanismos, de, por exemplo, destruição criativa dentro de uma economia planificada, o que a União Soviética nunca conseguiu. Isso evitou, por exemplo, que China entrasse em um looping como os soviéticos entraram onde, em um mesmo setor, havia diversos níveis de produtividade diferente, levando a produtividade média a ser muito menor que nos países capitalistas. Enquanto na União Soviética tinha setores com altíssima produtividade em algumas unidades de produção, ela era muito baixa em outros, porque o velho e o novo conviviam, sem que o velho fosse substituído por conta dos custos sociais. Eu creio que esse é um debate ainda a ser feito e aprofundado sob o meu ponto de vista, mas aqui vão algumas indicações minhas para o debate.

HA 

O Brasil perdeu mais de 660 mil pessoas com a pandemia da Covid-19. Por outro lado, a China, com sete vezes mais habitantes, não teve 6 mil mortos até agora. Só que a política de Covid zero que ela implementada é mundialmente atacada, enquanto a política do governo Bolsonaro, em certa medida, é normalizada pela comunidade internacional. Como você vê isso?

EJ 

Jair Bolsonaro foi normalizado pela comunidade internacional porque, antes, a morte foi normalizada juntamente com o ethos do liberalismo. Ou seja, o ethos do indivíduo e da liberdade individual acima de qualquer coisa, inclusive acima do Estado democrático de Direito – porque no Estado democrático de Direito uma pessoa é obrigada a ser testada, porque se ela não for testada, ela pode até matar outras pessoas.

O Ocidente naturalizou Bolsonaro e sua gestão da pandemia porque a morte é naturalizada pelo seu sistema – no qual o darwinismo social também é naturalizado. Isso vai demonstrando uma decadência do pensamento ocidental, decadência do ser humano ocidental semelhante ao que já aconteceu na Grécia antiga como, vejam bem, Sócrates percebeu: e ele concluiu que a decadência do homem grego é a decadência da democracia grega, uma democracia que, realmente, nunca existiu. E nós temos isso hoje no Ocidente, ou seja, a decadência do capitalismo, o ser humano ocidental como uma expressão da decadência da democracia burguesa, uma democracia que, realmente, também nunca existiu. Então a China nunca vai ser vista de forma positiva, mesmo diante de vitórias como essa. E o Ocidente ainda encontrou uma dicotomia fácil para explicar tudo, que é parte do pressuposto kantiano da separação da liberdade formal da liberdade individual. Então, a China teria conseguido salvar essas vidas apenas porque é uma “ditadura”, o que invalidaria centenas de milhares ou milhões de vidas salvas. Então tudo, absolutamente tudo, se justifica a partir da separação entre liberdade real e liberdade formal.

“Precisamos fazer muita coisa no Brasil, como aproveitar essa crise para repensar as nossas certezas econômicas neoliberais.”

Quando Hegel e Marx superam essa dicotomia, a chamada filosofia ocidental, a filosofia que a burguesia já começa a elaborar nos primórdios do liberalismo conceitual e depois com a Revolução Francesa, converte-se em variadas formas de positivismo — e isso acaba se materializando em grandes dicotomias implícitas que acabam por tentar explicar tudo. Acho que é certamente isso. Eu costumo dizer que o Hegel é negado no Ocidente, inclusive o marxismo ocidental é muito refratário da negação de Hegel e de sua dialética.

HA 

O mundo está conflagrado. Agora, temos o conflito russo-ucraniano e uma escalada militar de proporções gigantescas. O que isso diz para o futuro da China e do Brasil?

EJ 

É uma pergunta difícil essa questão que envolve a escalada militar de proporções gigantescas, o futuro da China e do Brasil, porque quem fala que tem a resposta está mentindo. Acredito que por conta do conflito russo-ucraniano, e seus efeitos, a China avança sobre a Rússia, incorporando-a ao seu território econômico. Isso significa a fusão do projeto eurasiático dos russos com a nova rota da seda dos chineses. E aí pode emergir um sistema financeiro internacional alternativo, mas ainda é muito embrionário. E ao Brasil se estabelece uma alternativa de tomarmos uma posição ao lado da China, na construção disso. Aliás, ou nós, brasileiros, prepararmos nosso território econômico, como tenho dito, para receber bilhões de dólares em investimentos chineses em bens públicos, ou o Brasil também vai ficar perdido no mundo.

Então acho que o Brasil tem que aproveitar a oportunidade em que a China se coloca como exportador de bens públicos para aproveitar isso daí. Precisamos fazer muita coisa no Brasil, como aproveitar essa crise para repensar as nossas certezas econômicas neoliberais. Acho que as eleições vão colocar um pouco disso à prova, mas a China acho que tem que ser observada como um parceiro fundamental para a reconfiguração do próprio território brasileiro e sul-americano. Como vai se construir essa estratégia, é algo sobre o qual eu tenho me debruçado ultimamente, em opiniões, lives, artigos e etc..

HA 

Você é militante e dirigente do PCdoB. Qual a sua visão sobre o futuro do socialismo no Brasil?

EJ

O conceito se manifesta no movimento real. Sobre o futuro do socialismo no Brasil, a gente tem que olhar para a própria história brasileira e observar como são as nossas transições anteriores – e não há receita de bolo. Acredito que o socialismo no Brasil poderá, como em outros momentos de fronteira da nossa história, se formar de maiorias sociais heterogêneas nucleadas por uma força mais consequente.  Isso pode inclusive ser observado como uma lei de tendência da política brasileira. E, dito isso, acho que o futuro do socialismo do Brasil, hoje, primeiro depende da derrota do Bolsonaro, depois do estabelecimento de uma outra maioria política e a formação de convicções em torno de um projeto nacional de desenvolvimento que, assim, nos leve a tensionar com o imperialismo, só que num outro patamar de força política para o nosso lado. Não é uma resposta fácil essa, mas eu dou essa opinião e acho que ela é a mais próxima da realidade a partir do que nós vimos na nossa história. 

HA

De um ponto de vista marxista, analisando as transformações do capitalismo brasileiro de 2016 para cá, você acredita que Bolsonaro seja derrotado nas urnas? E que, além disso, esse projeto seja derrotado por um novo governo progressista?

EJ 

Acho que Bolsonaro pode ser derrotado, mas o bolsonarismo imediatamente não. Por que estou dizendo isso? Porque a Europa, por exemplo, para completar a desnazificação da sociedade no pós-guerra, teve que criar condições como o surgimento do Estado do bem-estar social, crescimento econômico por trinta anos seguidos e etc., tudo isso gerando mobilidade social positiva. Foi isso que, naquele momento, minorou as tensões sociais, implodindo as condições objetivas para que o fascismo floresça. O fascismo floresce onde as pessoas não têm mobilidade social, em sociedades altamente machucadas por ajustes fiscais que atingem o povo.

O problema é que nossos marcos institucionais econômicos são todos fiscalistas e, em alta medida, negam a possibilidade de desenvolvimento econômico de longo prazo. Então a superação do bolsonarismo e do fascismo no Brasil passam por uma reconfiguração desses marcos institucionais. Acho que aqui no Brasil a nossa tarefa não é uma eleição, ela é geracional – e o povo brasileiro vai ter que escolher seus melhores filhos para enfrentar essa batalha geracional que, em último caso, é a reconstrução do Brasil.

Sobre os autores

é professor na UERJ e autor do livro "China: o socialismo do século XXI" (Boitempo, 2021).

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in Ásia, Economia, Entrevista, Livros and Saúde

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