Existe algo que as discussões em torno das identidades, sejam elas atravessadas por uma crítica ao identitarismo ou em uma defesa da identidade como categoria política, revelam: que há divisões dentro do capitalismo que não se restringem à divisão de classes. Esse é um ponto interessante, uma vez que as pessoas nem sempre se sentem identificadas a partir de sua classe, ou reconhecem a opressão à qual estão submetidas por este paradigma.
As divisões no interior da sociedade não são espontâneas ou necessárias: elas obedecem a uma lógica interior que serve ao capitalismo. Para este, concerne que sejam geradas diferenças para a exploração concomitantemente à justificativa da exploração segundo a constatação da diferença.
Se Frederich Engels se esforçou em construir sua tese de que a divisão sexual do trabalho precede a divisão de classes, a família e o Estado, é importante interrogar com qual propósito essas divisões e produções da diferença se dão. Este é um ponto de convergência entre as discussões sobre reconhecimento e sobre exploração, posto que aqueles que não gozam do status de humano sequer têm sua condição enquanto explorados reconhecida.
No princípio, era a divisão sexual
Segundo consta no primeiro volume da História da Sexualidade de Michel Foucault, o século XVI foi marcado por uma ciência da sexualidade em que a vontade de saber se debruçou sobre as práticas sexuais de modo a demarcar e distinguir o que seria do campo do normal ou de seu exterior constitutivo, o patológico. Nesta operação, o casal heterossexual assumiu posição central como ideal regulatório e no qual deveriam se inspirar todos os demais sujeitos.
Não cabe aqui discutir os limites dessa acepção, tampouco a leviandade em que se forma o argumento de como este modo de relacionalidade galgou tal lugar, alijado de uma crítica e reconhecimento do capitalismo enquanto relação social. Como bem lembra Silvia Federici, há um projeto de manutenção da família mononuclear heterossexual para o acirramento da exploração do trabalho feminino alicerçado na divisão sexual do trabalho.
“Vladimir Lenin advoga que só haverá democracia plena quando a mulher se ver liberta da exploração sexual e econômica.”
Contudo, há algo que os autores da filosofia francesa contemporânea indicam em seu desejo pela reflexão sobre o sujeito: que a diferença sexual se tornou baliza central para as normas de reconhecimento, pois atestam os processos de constituição do sujeito, ao mesmo tempo em que o sexual concedeu linhas de fuga para o sujeito aprisionado nos confins da personalidade passível de ser reconhecida. Além do que, tomar o sexual – e a diferença sexual – enquanto objeto filosófico renovou toda uma tradição de pensamento.
Na Revolução Francesa, houve uma construção e projeto de sujeito, uma deliberada perspectiva sobre o sujeito que justificasse e se apoderasse da diferença para atender os anseios burgueses. Desde então, uma série de elaborações teóricas e de lutas organizadas denunciaram a impostura dos ideais burgueses de igualdade, liberdade e fraternidade, às custas de procedimentos de subjugação, colonização, punitivismo e etc..
“Um projeto democrático não pode se ver dissociado de uma perspectiva de sujeito. É indispensável tanto o colapso do sujeito quanto a radicalização da política para a democracia plena.”
Para além de apresentar uma contradição interna irreconciliável entre estes ideais e o regime de exploração no quais se apoiam, existiu a tentativa de quebrar a pretensa universalidade desses sujeitos abstratos através dos particulares mulher, negro e colonizados. Valeram-se também dos particulares as abordagens históricas, sociológicas e antropológicas. Porém, a aposta aqui é que o advento da psicanálise, e sua retomada pelas teorias crítica, feminista e francesa contemporânea, oferece algo da lógica do singular que é capaz de originar tanto fissuras quanto a ruptura com a visada de sujeito dominante que é útil ao capitalismo.
Sigmund Freud pensa tanto os processos de constituição do Ego, quanto aqueles aptos a propiciar uma descontinuidade no sujeito. Sua psicanálise, retomada e vivificada por Jacques Lacan, investe sobre o modo como os corpos se tornam viáveis para a cultura, inteligíveis e, dentro de um sistema predatório, úteis – e, em contrapartida, sobre aquilo que os deforma: as experiências que atestam contra a unidade egóica, a autonomia e a autenticidade.
Se por um lado a diferença sexual e a família no modelo patriarcal autoritário produzem os corpos sexuados que necessitam para a sua manutenção na forma de indivíduos egóicos, por outro, há algo de insubmisso no sexual, na experiência erótica, no excesso libidinal e no (des)encontro com o outro, que foge a qualquer prescrição normativa. A descoberta do inconsciente golpeia justamente o sujeito em sua forma racional, volitiva e contratual, tal qual anseia e demanda a democracia liberal.
O sexual, o colapso do sujeito e a democracia plena
Um projeto democrático não pode se ver dissociado de uma perspectiva de sujeito. É indispensável tanto o colapso do sujeito quanto a radicalização da política para a democracia plena. Se por um lado a psicanálise é ambígua e limitada em sua compreensão dos processos históricos e das condições materiais necessárias para a revolta, por outro, ela oferece formas contra-hegemônicas de entendimento sobre o sujeito e as formas de relacionalidade.
Não se trata aqui de atribuir a Freud qualquer intencionalidade ou presunção política. Diferentemente de seu ex “discípulo”, o psicanalista anarquista Otto Gross, o “pai” da psicanálise se restringia a um pretenso ceticismo liberal. Gross, por sua vez, ciente de que o mal estar da época estava ligado à moral sexual, o modo como esta sobrepujava as mulheres, incitando um adoecimento psíquico específico sobre estas, propunha o rompimento das relações familiares patriarcais, monogâmicas e educacionais perpassadas pela figura de autoridade, como forma de se cortar o mal pela raiz e pensar uma psicanálise emancipatória.
Alexandra Kollontai, atenta à maneira como a moral sexual vigora no capitalismo, propunha novas formas de relacionalidade entre homens e mulheres não passíveis de expropriação. O capital produz e se serve das relações de parentesco, de parcerias amorosas e de fetiches, os cooptando e esvaziando de conteúdo político. No entanto, há também aquilo que é gerado no seu interior que é capaz de desestabilizá-lo ou que está fora de seu domínio.
Até mesmo nos debates progressistas da experiência socialista sobre a questão feminina, fica evidente a dificuldade de superação da dicotomia masculino vs feminino, atrelado à distinção público vs privado. Em entrevista a Clara Zetkin, Vladimir Lenin advoga que só haverá democracia plena quando a mulher se ver liberta da exploração sexual e econômica. Para tanto, propôs a criação de creches, restaurantes e lavanderias populares, além do direito ao voto, aborto e divórcio. Entusiasta de um movimento internacional de mulheres, igualdade jurídica e representatividade na política, considerava inoportunas as discussões sobre casamento, sexo e sexualidade à luta de classes. Essa contradição moralista encerra o argumento de tomar por liberal – ou moderno – tudo aquilo que diverge minimamente de um suposto projeto universal, posto que algo do tipo poderia obstaculizar ou secundarizar a luta de classes, ao mesmo tempo em que reconhece o potencial desagregador do sexual.
Wendy Goldman, no percurso histórico que traça sobre a situação da mulher na experiência soviética, aponta como o argumento em defesa de que, para criar as condições materiais para a libertação feminina, era primeiro necessário a superação da luta de classes, revela o modo como a exploração sobre os corpos femininos foi tomada como um sacrifício prestado pelas mulheres à luta maior.
“O fazer político fica então reduzido a um jogo de cartas marcadas conforme um telos masculinista que é solidário aos ideais da Revolução Francesa.”
Apesar dos inegáveis avanços, houve uma série de contratempos em que, reconhecendo o quão dispendioso era ao Estado custear os cuidados das crianças e relativos à alimentação, uma valorização da família e da maternidade serviu de política exploratória sob o trabalho feminino não remunerado. Ou seja, como se fosse imprescindível também ao socialismo, ou a tentativa de sua efetiva implementação, este excedente de acumulação a partir do trabalho não remunerado generificado: ancorado na diferença sexual e exploração da mesma.
A apressada crítica aos movimentos sociais como identitários falha em reconhecer os modos em que outrora se legitimou processos de dominação daqueles excomungados da posição de sujeitos. A crítica acertada é ao identitarismo, à redução da política à mera gestão de corpos e de conflitos, e ao imediatismo dos movimentos sociais em limitar o seu fazer político aos modos desde já dispostos pela democracia liberal.
Não se intenciona desvalorizar as conquistas da esquerda nas tão ameaçadas democracias liberais. Contudo, pouco vale a defesa da democracia em termos técnicos e constitucionais como oposição ao neoliberalismo. O engodo reside em forçar aos movimentos sociais uma determinada gramática que não só calcifica as potencialidades políticas, como também a abrangência das mesmas. Aquilo que é passível de ser incorporado pela democracia liberal não a fere e pode ser convertido em mercadoria.
Restringir o fazer político à identidade, unidade e universalidade, às formas institucionalizadas de se fazer política, inclusive a política partidária, sindicalista e de órgãos dirigentes filiados a projetos partidários de conciliação de classes, responde a um modo masculino de se fazer política.
Política do feminino
No livro O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade, propõe-se que há modalidades lógicas por detrás do fazer político atrelados à diferença sexual. Um modo masculino de se fazer política é aquele que se orienta em torno do mito do patriarcado, da ordenação generificada dos corpos, de onde se extrai uma figura identitária a partir da qual os sujeitos se alienam e que é tanto exceção, quanto excluída deste universal que funda por sua extração.
Ao passo que, um modo feminino de se fazer política é aquele que parte da inexistência da mulher, da ausência do matriarcado enquanto mitologia estruturante, e da indeterminação no campo do sexual que movimenta os corpos para além das identidades individualizantes ou coletizáveis que cobra o preço da burocratização da vida e das relações.
Masculino e feminino correspondem a modalidades de gozo e competem a todos os corpos, independente das hetero ou auto designações. Estes, referem-se tanto aos processos de constituição egóica e de reconhecimento pautados na diferença sexual, quanto às linhas de fuga e descontinuidades generativas do campo sexual, respectivamente. Há práticas de relacionalidade que são profundamente improdutivas e insubmissas ao capitalismo e que interferem nos modos como os sujeitos se apresentam e agem politicamente.
“É preciso propor novas balizas de reconhecimento não atrelados à diferença sexual, e em que diferença não corresponda à exclusão, exploração e violência, tal como se dá invariavelmente nas sociedades capitalistas.”
Existe uma afinidade entre o mito do patriarcado e o capitalismo manifesta nos ideais da revolução burguesa. Segundo Joan Scott, há um paradoxo da igualdade que garante não só a produção da diferença, mas a institucionalização da exclusão – que serve à mesma lógica da proliferação das diferenças. Iguais são os membros de uma fraternidade que se unem sobre o patriarcado e que têm por liberdade o comércio.
A identidade suportada pela diferença sexual conta não só aos lugares generificados na divisão sexual do trabalho, como também à sociedade. É valioso ao Estado que os sujeitos se reconheçam e se organizem como identidades, que reclamem o acesso que lhes foi negado de forma protocolar e que se produzam novas e infindáveis diferenças. As muitas particularidades e os agrupamentos que se formam pouco importam ao Estado: na medida que a exceção faz a regra, muitas exceções também o fazem. O fazer político fica então reduzido a um jogo de cartas marcadas conforme um telos masculinista que é solidário aos ideais da Revolução Francesa.
É claro que para se pensar uma programática política em direção a uma democracia plena há um campo de normatividades a ser percorrido e fundamentado nas experiências concretas, estratégias e táticas traçadas por toda uma tradição militante. Há, sim, um momento de transição para o alcance de uma democracia plena em que, superada a luta de classes, supera-se também a necessidade do aparelho estatal. Contudo, há algo precioso para refletir sobre os levantes, insurgências, revoltas e a própria revolução em termos de imaginação política referidas a um modo feminino de se fazer política.
Pouco interessa, também, reduzir a política à ação política e ao levante, ou jogá-los por terra por não atingirem efeitos duradouros. Muitas vezes, estes tipos de análise falham em reconhecer que há prenúncios históricos e a acumulação de saber a datar destes eventos. Ou ainda, ao dizer de uma política sexual anticapitalista, da restrição da política aos atos de fala, como se a reforma linguística pronominal conseguisse, por mágica nominalista, superar a arbitrariedade dos regimes contemporâneos de reconhecimento em que, como bem lembra Louis Althusser, “é evidente, é ele ou ela”.
Faz-se mister uma política sexual anticapitalista, em que os sujeitos não tenham uma relação corpórea consigo mesmos e com terceiros em decorrência de seus predicados, atributos e marcadores sociais. Despojados de uma relação em que presumem ser e ter um corpo, despossuídos do princípio identitário do qual são acusados, outro fazer político para além da receita de bolo identidade, unidade e universalidade é possível.
Para tanto é preciso propor novas balizas de reconhecimento não atrelados à diferença sexual, e em que diferença não corresponda à exclusão, exploração e violência, tal como se dá invariavelmente nas sociedades capitalistas. É um contrassenso resumir a imaginação política sob o argumento do tangível.
A política a partir da descontinuidade introduzida pelo sexual, ou seja, a política de acordo com a lógica feminina, não é a política da multiplicação de nomes na esfera pública, mas a do uso contingente e provisório de identidades conforme as demandas em curso, servindo-se das fissuras capazes de subverter a norma – ou seja, não é sobre ocupar o poder, mas de sua deposição. E a que tem como objetivo específico a ruptura, o fim de toda e qualquer identidade segundo o modelo de reconhecimento imposto pela República aliado ao desmonte do projeto liberal para o alcance de uma democracia plena.
Sobre os autores
é psicanalista, feminista e doutora em Processos Psicossociais pela PUC Minas, com período sanduíche no departamento de filosofia da New School for Social Research. Autora do livro "O feminismo é feminino? A inexistência da Mulher e a subversão da identidade", (Scriptum, 2021) e "Fins do Sexo: como fazer política sem identidade" (Autonomia Literária, 2022).