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A imagem da indústria legal da maconha pintada por investidores otimistas e consumidores satisfeitos não reflete a realidade completa do negócio em um país onde a maioria da maconha consumida ainda é vendida ilegalmente. (Meus 420 Tours / Wikimedia Commons)

Capitalistas estão legalizando a maconha do jeito errado

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Tradução
Felipe Kusnitzki

A sociedade capitalista só pode legalizar a cannabis de uma maneira que beneficie os ricos. Por que não colocar a nova indústria legal de maconha nas mãos do público, trabalhadores e longe do lucro?

Uma coisa engraçada aconteceu na minha viagem por Michigan recentemente: não consegui escapar das lojas de maconha em todos os lugares – nada menos do que cinco deles a dez minutos de carro de Paw Paw, uma vila com menos de quatro mil pessoas. Há toda uma indústria dedicada ao marketing e publicidade de maconha, que se tornou uma indústria de bilhões de dólares no Estado do Wolverine. As lojas estão particularmente agrupados ao longo da fronteira a oeste com Indiana, onde a posse de cannabis ainda é proibida, mesmo quando folhas e comestíveis fluem pelas fronteiras de Michigan e Illinois, onde é legal para uso recreativo. Todos os que quiserem consumir podem fazê-lo sem restrições, mesmo que um quarto de milhão de pessoas no Estado ainda carregue o ônus das condenações por drogas perpetradas antes da legalização em 2018.

Situações semelhantes podem ser encontradas em outros Estados, pois as economias locais, sofrendo com a indústria perdida, a falta de investimento em infraestrutura e a perda de empregos relacionada à COVID, procuram algum jeito – de qualquer maneira – de gerar receita. O loja de maconha de hoje é a loja de vapes de 2016 que era a cervejaria artesanal de 2012.

Nevada já teve uma das políticas antidrogas mais rígidas dos EUA; um outdoor fora da cidade, imortalizado no notório Medo e Delírio em Las Vegas, de Hunter S. Thompson, em Las Vegas, exortava os motoristas a não “jogarem” drogados e alertava para sentenças de prisão de 20 anos até a prisão perpétua. Agora, com Nevada abrigando uma das maiores e mais lucrativas indústrias legais de cannabis do país, você pode comprar chaveiros replicando esse outdoor nos mesmos lugares em que compra a própria maconha.

“Uma sociedade capitalista só pode legalizar a cannabis de uma maneira que beneficie aqueles que já estão bem posicionados em sua hierarquia de poder.”

Cultura e política muitas vezes vão contra a necessidade econômica: em Oklahoma, um Estado geralmente conservador que acaba de aprovar a proibição mais restritiva ao aborto do país, a maconha recreativa ainda não é legal, mas existem milhares de lojas “médicas” – um para cada dois mil habitantes.

Para aqueles com idade suficiente para lembrar quando não havia maconha legalizada, o mundo de 2022 pode parecer um paraíso para os usuários. Não há nenhum lugar na terra, nem mesmo os lendários cafés de Amsterdã, onde a maconha é tão amplamente disponível, facilmente comprada e usada, e de alta qualidade como em um Estado nos EUA que liberou uso recreativo. Mas a implementação da legalização, tanto médica quanto recreativa, tem sido atormentada por problemas: regulamentação mal pensada, leis federais que causam inúmeras dores de cabeça, o racismo mantendo pessoas negras fora da indústria, os registros criminais ainda não expurgados daqueles que foram presos antes da legalização e o agrupamento de proprietários nesta indústria em torno do tipo de investidores que podiam se dar ao luxo de entrar – muitos deles já ricos e com acesso a capital de risco e com aversão a tributação, regulação e direitos trabalhistas (aspectos tão comuns à classe dominante).

Robin Goldstein e Daniel Sumner, dois economistas da Universidade da Califórnia, abordam essas questões no livro Can Legal Weed Win? The Blunt Realities of Cannabis Economics [Pode a maconha legalizada vencer? As realidades paralelas da economia da cannabis]. O livro é escrito de forma envolvente, embora ocasionalmente brega, e traz uma perspectiva profundamente pesquisada sobre os aspectos práticos da indústria da cannabis. Os autores desferem alguns bons socos na direção do “estado do comércio” ao discuti-lo: o quadro cor-de-rosa pintado por investidores otimistas e consumidores satisfeitos, em sua narrativa, não reflete a realidade completa do negócio em um país onde a maioria da maconha consumida ainda é vendida ilegalmente.

Entre os muitos problemas estão as regulamentações confusas e caras que variam de Estado para Estado (mesmo na Califórnia, a vanguarda da legalização da cannabis no país, há uma grande quantidade de produtores de maconha no mercado paralelo, porque é mais caro cultivar legalmente); o pesadelo do financiamento em um sistema onde a proibição federal torna impossível fazer negócios com bancos interestaduais; as espinhosas diferenças entre descriminalização, legalização médica e uso recreativo; e preços inconsistentes devido à regulamentação, tributação e custos trabalhistas, levando a situações como as do meu Estado natal de Illinois, onde os preços da cannabis são os mais altos do país.

“Os Preços estão Altos” [“Prices Get High”, no original, um trocadilho entre “estão altos” e “estão chapados”], o terceiro capítulo do livro (entenderam porque disse que o livro pode ser meio cafona às vezes?) é o mais revelador, discutindo não apenas os diversos meandros da legalidade mas também como um produto que custa relativamente pouco em sua manufatura pode se tornar tão caro, para começo de conversa.

“A legalização mudou a maconha no varejo de várias maneiras fundamentais”, argumentam Goldstein e Sumner, citando a diversificação de produtos (o florescimento de uma simples flor fumável em outros vetores de entrega, como comestíveis, cartuchos, vapes, cera, fragmentos e assim por diante) e um processo de gourmetização (o crescimento de produtos de qualidade diferente para atender a diferentes faixas de preço de consumidores) como dois dos principais fatores.

Mas, embora seja verdade que isso teve um impacto incrível nos preços da cannabis, não é em função do produto ou sua legalidade – é uma função do mercado.

Mercados são criados, não descobertos

Apesar de toda a sabedoria absorvida das aulas de “Introdução à Economia” sobre os mercados serem impulsionados pela oferta e demanda, os mercados são criados, não descobertos. Ninguém pediu 20 maneiras diferentes de consumir maconha, ou 50 tipos diferentes de comestíveis com cannabis, ou uma escala graduada de qualidade; essas inovações nos foram trazidas pelo impulso do capitalismo de expandir constantemente seus mercados para maximizar o lucro.

Embora seja ótimo ter escolha, o erro é supor que isso só pode acontecer com o impulso dos grandes empresários; as pessoas podem inovar em qualquer setor sem sacrificar (e entregar) todos os seus esforços aos patrões. Se os autores estiverem certos em prever uma grande correção para a indústria de cannabis, pois os investidores, frustrados com o lento retorno do investimento, caem fora, isso resultará no desaparecimento de muitos desses produtos – não porque a demanda desapareceu, mas porque os consumidores nunca terão o dinheiro ou o desejo suficientes para comprar tudo o que os fabricantes lhes empurra.

“Seria simples e fácil para os trabalhadores controlar os meios de produção da maconha.”

Pode a maconha legalizada vencer? também postula a regulação e a tributação mais como problemas a serem superados do que necessidades a serem aceitas – uma aceitação da ganância capitalista como um bem. O livro também se concentra fortemente na questão da maconha no mercado paralelo, que pode minar a cannabis legal ao ser vendida a um valor mais barato. Mas, novamente, este é um problema de uma economia de mercado orientada para o lucro: em um sistema que removesse a motivação do lucro, nem os produtores legais nem os ilegais ganhariam ao contornar as regras, reduzindo a possibilidade de fabricantes legítimos terem o caminho cortado por um fabricante ilegal preenchendo o vazio.

Mais adiante no livro, os autores fazem o prognóstico do mundo da maconha legal em 2050, estimando quedas de até metade da receita atualmente prevista (embora admitam sensatamente que suas previsões não são mais blindadas do que as dos mais otimistas do mercado). As razões para isso, já difundidas na jovem indústria legal de cannabis, são quase universais: previsões de receita excessivamente otimistas por empresas ansiosas para atrair investidores; retornos de investimento abaixo do esperado; a super saturação de um mercado limitado como já citado anteriormente; e uma colcha de retalhos amplamente incoerente de leis e regulamentos que dificulta a vida dos capitalistas interessados ​​apenas no resultado final. Como costuma ser o caso das bolhas de investimento, uma indústria com muito dinheiro para todos rapidamente se tornou uma indústria sem dinheiro suficiente para poucos sortudos.

Eles citam quatro possibilidades principais que impactarão o setor: legalização federal da maconha, a capacidade relacionada de conduzir o comércio de cannabis entre Estados e até fronteiras internacionais, produção mais eficiente e expansão por meio de alto financiamento, especialização, eficiência de produção e gerenciamento racional. Embora eles provavelmente estejam certos de que isso resultará em ajustes de mercado amigáveis ​​ao consumidor, eles não defendem lidar com os problemas criados por essas mudanças em demais setores industriais por meios não comerciais.

Controle dos meios de produção da maconha

Pode a Maconha Legalizada Vencer? é uma excelente cartilha sobre o estado da indústria de cannabis nos EUA hoje. Algumas das prescrições políticas de Goldstein e Sumner são perfeitamente sensatas e não estariam fora de lugar para qualquer socialista endossar enquanto reformas necessárias. Mas o propósito declarado do livro é criar “um mercado mais inteligente e justo” onde a maconha seja “mais barata, melhor e esteja mais disponível” legalmente em lugar de seu produto equivalente no mercado paralelo. Para eles, tudo faz parte de um sistema de troca econômica amplamente neutro em termos de valor, e a cannabis é apenas mais uma mercadoria. (A conclusão do livro, que prevê que financistas e empresários da Big Tech acabarão saindo do mercado de maconha em favor do agronegócio, não é reconfortante.)

É verdade que a legalização teve consequências imprevistas e que “leis sonhadas por ativistas e elites tecnológicas” às vezes acabam “ilegalizando mais negócios de maconha do que legalizando”. O custo de entrada no comércio legal de cannabis é tão alto, desde o licenciamento até custos crescentes de regulamentação e tributação, que muitos escolhem o negócio ilegal, encontrando muitos clientes que ficam felizes em pagar menos por uma qualidade inferior. Mas isso é uma questão de aceitar as condições atuais, com o governo atuando como um facilitador do lucro privado.

Para os socialistas, a questão deve ser mais profunda. Como seria o mundo da maconha se fosse completamente divorciado da motivação por lucro?

Podemos vislumbrar um futuro em que a dependência química grave seja tratada como um problema de saúde pública e tratada como tal sob um sistema de saúde universal, e podemos finalmente ter pesquisas sólidas, baseadas em evidências, que comprovem o valor médico não apenas da cannabis, mas de psicodélicos e outras substâncias, livres do domínio das empresas farmacêuticas com fins lucrativos.

“Ela ainda está ligada a todos os tipos de questões caras aos corações socialistas, desde a reforma agrária e justiça racial até a criação de uma sociedade menos repressiva.”

Também podemos admitir que, apesar de mais de um século de propaganda reacionária fazendo tudo o que fosse possível para criminalizá-la, a cannabis é um prazer não viciante e inofensivo que pode promover boa saúde mental, alívio do estresse e convívio camarada. Não há razão para que não possamos resolver a questão da cannabis em um contexto socialista tão definitivamente quanto Karl Kautsky resolveu a questão da abstinência entre as classes trabalhadoras alemãs, em oposição aos métodos proibicionistas como de Victor Adler. É bom que os camaradas fiquem chapados as vezes.

Goldstein e Sumner fazem um digno trabalho ao vislumbrar um futuro em que a indústria legal de cannabis opere de forma mais eficiente, acessível e equitativa. Mas nós, socialistas, podemos ir além. Podemos ver um mundo onde os produtores são regulamentados por segurança e qualidade, enquanto ainda são apoiados e protegidos por lei; onde cada elo da cadeia de produção de cannabis, desde o plantio e processamento até a distribuição e a venda, é sindicalizado, garantindo um local de trabalho democrático; onde comunidades marginalizadas de negros, pretos e pardos, não estejam sujeitas à prisão, brutalidade policial e exclusão da produção legal; e onde os usuários médicos e recreativos estão em harmonia, não em competição.

A cannabis cresce naturalmente e é fácil de cultivar, processar e embalar. Isso pode ser feito praticamente em qualquer lugar do mundo por qualquer pessoa. Seria simples e fácil para os trabalhadores controlar os meios de produção da maconha. E ela, ainda, está ligada a todos os tipos de questões caras aos corações socialistas, desde a reforma agrária e justiça racial até a criação de uma sociedade menos repressiva e a eliminação do controle privado de recursos que, por direito, pertencem ao povo.

Uma sociedade capitalista só pode legalizar a cannabis de uma maneira que beneficie aqueles que já estão bem posicionados em sua hierarquia de poder. Uma sociedade socialista tem o poder não apenas de abandonar os preconceitos nocivos do passado, mas de criar um futuro onde bons empregos, boa saúde e bom uso de recursos naturais estejam disponíveis para todos que os desejarem, tratando as dádivas da natureza como um recurso comum, não um crime ou uma piada.

Sobre os autores

é um escritor e editor de Chicago. Ele é um organizador dos Socialistas Democráticos da América (DSA) e estuda a interseção da política da classe trabalhadora e a cultura americana do século XX.

Cierre

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Published in Agricultura, América do Norte, Análise, Legislação and Saúde

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