Conservadores estão tentando derrubar a legalização do aborto nos Estados Unidos há mais de quatro décadas. Já no Brasil é ilegal e, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, acontecem 1.550 abortos ilegais por dia. Três em cada dez mulheres norte-americanas já fizeram um aborto (aqui são duas), e cerca de seis a cada dez mulheres que fazem abortos já são mães (por aqui são oito). Enquanto as razões que levaram à legalização se tornam mais distantes no tempo – como as mortes e lesões sofridas por mulheres que usavam métodos rudimentares e perigosos, o que ainda é uma realidade para as mulheres brasileiras –, campanhas baseadas em distorções, falsas bases científicas, contraditórias alegações de princípio ou, simplesmente, fake news, ganham espaço e criam grandes obstáculos para as mulheres decidirem sobre seus corpos e suas vidas. Os defensores do óvulo fecundado procuram transformá-lo em um supersujeito, com direitos que se sobrepõem à vida e às liberdades individuais da mulher. Em nenhum outro caso se propõe que o Estado invada de tal forma a vida privada de seus cidadãos como quando o assunto é aborto.
Com um texto dialógico e bem fundamentado, o livro da ativista e escritora Katha Pollitt, Pró: reivindicando os direitos ao aborto, discute detalhadamente cada um dos argumentos contrários e favoráveis ao direito de decidir sobre o aborto, desde questões científicas até os aspectos legais, filosóficos e religiosos. E mostra que por trás das estratégias dos opositores ao aborto está o combate à liberdade sexual das mulheres e, na maioria das vezes, o desejo de retroceder a um estilo de vida incompatível com a vida contemporânea.
O texto abaixo foi extraído do livro da Katha Pollitt publicado pela Autonomia Literária.
A Bíblia proíbe o aborto
O que a Bíblia diz sobre o aborto não deveria fazer diferença – ou qualquer coisa que ela diz, sinceramente. Os Estados Unidos não são uma teocracia. Mesmo assim, dada a certeza dos opositores de que o aborto desonra a Palavra de Deus, pode até chegar como uma surpresa que nem o Antigo nem o Novo Testamento mencionem o aborto – nem uma única palavra. Os opositores ao aborto precisam extrapolar passagens que falam sobre outras coisas: profecias de mulheres comendo seus filhos, ou massacres em que mulheres grávidas são dilaceradas, ou os desejos de alguém que queria ter morrido no útero da mãe. Deus diz a Jeremias, “Antes de tê-lo formado no útero, eu já o conhecia” (então Jeremias já existia antes de ter sido concebido?). O salmista diz a Deus, “Você me tricotou no útero de minha mãe” (então em algum momento no útero ele ainda não tinha sido totalmente costurado e era mais como um emaranhado de fios?). Em Lucas 1:41, a Virgem Maria grávida visita sua prima grávida Isabel, cujo “bebê” – o futuro João Batista – “se revirou em seu útero”. Passagens como estas só são relevantes para o aborto se você já acredita previamente que o sejam. O mesmo é verdade, claro, no mandamento “Não matarás”, que seria mais bem traduzido como “Não cometerás homicídio”, e que, aplicado ao aborto, traz o debate sobre o óvulo fertilizado/embrião/feto ser ou não ser uma pessoa e, sendo este o caso, porque este mandamento se aplica a isso uma vez que muitos outros tipos de assassinatos – guerras, legítima defesa, pena de morte – parece que não contam?
O Antigo Testamento é um livro muito longo, cheio de proibições, pronunciamentos e instruções detalhadas sobre a vida cotidiana – o que vestir, o que não comer, como fazer colheitas. Ele condena muitas atividades: responder aos pais, bruxaria, blasfêmia – tudo passível de punição com morte. Existem diversos personagens bíblicos cujos pecados, inclusive os sexuais, são retratados vividamente, além do linchamento de meninas que andam por aí desfilando em finas vestes provocando a luxúria nos homens. Mas não existe nenhuma menção ao aborto.
Também não parece que o Antigo Testamento seja reticente sobre os corpos das mulheres. A menstruação recebe bastante atenção, assim como o parto, a infertilidade, o desejo sexual, a prostituição (pena de morte), a infidelidade (mais pena de morte), e o estupro (se a mulher estiver suficientemente perto de alguém ou não gritar… pena de morte). Como é possível que os autores (ou Autor) tenham definido o que aconteceria com uma mulher que tenta ajudar seu marido em uma briga agarrando os testículos do outro homem (neste caso sua mão deveria ser cortada), mas não tenham sentido que o aborto merecesse uma palavra sequer? Tendo em conta as penalidades para sexo fora do casamento ou ser uma vítima de estupro, é difícil acreditar que as mulheres nunca tenham precisado desesperadamente interromper a gravidez, e que não havia nenhum tipo de conhecimento popular sobre como fazê-lo, como havia em outras culturas ancestrais. Parteiras deviam saber como induzir um aborto espontâneo; estas “bruxas” deviam conhecer ervas e poções.
Uma passagem frequentemente citada pelos opositores ao aborto é o Êxodo 21:22-23:
Se houver uma briga e uma mulher grávida for atingida, e isso provocar o nascimento prematuro do bebê porém sem ferimentos graves, o transgressor deverá ser multado no valor que o marido da mulher exigir e os juízes permitirem. Mas se houver ferimento grave, então deve-se pagar a vida com a vida…
Os opositores ao aborto interpretam essa passagem como uma distinção entre provocar um parto prematuro (correto) versus provocar um aborto espontâneo (pena de morte), o que realmente é o que as traduções modernas sugerem. (Curiosamente, a versão da Bíblia do Rei Jaime traduz alternativamente como “para que seu fruto dela se separe”, o que é mais ambíguo e mais próximo do original em hebraico). Infelizmente para os opositores ao aborto, pelo menos mil anos de conhecimento rabínico dizem que a multa é por provocar um aborto espontâneo, e a pena de morte é por provocar a morte da mulher grávida. Se os exegetas antiaborto estão descobrindo as provas para uma proibição absoluta da Bíblia em relação ao aborto somente agora nesta obscura passagem, é o caso de se perguntar por que é que ninguém nunca leu esse trecho dessa forma antes. O Talmude permite o aborto sob determinadas circunstâncias, aliás, ele exige o aborto caso a vida da mulher esteja em risco.
O Novo Testamento foi uma segunda chance para Deus esclarecer sua posição sobre o aborto. Jesus tinha algumas posições firmes sobre o casamento e o sexo – ele considerava as leis judaicas para o divórcio muito lenientes, desaprovava o apedrejamento de adúlteras e não hesitava em curar uma mulher que tivesse “um problema” (algum tipo de sangramento vaginal) que durasse 12 anos e poderia tê-la transformado em uma pária entre os Judeus. Mas ele não disse nada sobre o aborto. Nem São Paulo nem os demais autores do Novo Testamento, ou qualquer um dos outros autores posteriores cujas palavras foram inseridas entre os textos originais.
As mulheres são forçadas a fazer abortos
Os opositores ao aborto alegam que meninas e mulheres são frequentemente forçadas ou constrangidas a interromper gestações desejadas. Uma das alegações frequentes na literatura antiaborto é a de que 64% das mulheres se sentem “pressionadas a abortar”. No estado de Dakota do Sul, a necessidade de prevenir essa suposta epidemia de coerções foi citada como fundamento de uma lei de 2011 que exigia um período de espera de 72 horas e aconselhamento em um centro de crise gestacional antiaborto. A jornalista Robin Marty foi a primeira a reportar que a estatística de 64% vem de um artigo publicado em 2004 na Medical Science Monitor, Induced Abortion and Traumatic Stress: A Preliminary Comparison of American and Russian Women (Aborto induzido e estresse traumático: comparação preliminar de mulheres norte-americanas e russas”), por Vincent M. Rue, Priscilla K. Coleman, James J. Rue and David Reardon. Tem toda cara de algo científico, mas não tenha tanta certeza. David Reardon é um grande ativista antiaborto, fomentador incansável da “síndrome pós-aborto”, uma enfermidade rejeitada pela Associação Americana de Psicologia, e pelo diretor da instituição antiaborto Elliot Institute. (De acordo com o site da instituição, o nome foi escolhido “em um livro de nomes para bebês” porque soa simpático e acadêmico.) Seu PhD em ética biomédica é da Pacific Western University, uma escola por correspondência sem credenciais. A Medical Science Monitor, uma revista online, publicou outras pesquisas falaciosas, por exemplo, artigos defendendo a conexão não reconhecida entre vacinas e autismo. Em 2012, ela foi exposta como parte de um conjunto de publicações que decidiu inflacionar suas classificações de citações citando umas às outras. E o fato de que o site é atulhado de erros de digitação e de gramática é algo que não inspira confiança.
Há vários problemas com o artigo em questão, que não era sobre coerção, mas sim uma comparação do trauma pós-aborto em mulheres norte-americanas e russas. Sua amostragem era minúscula (217 norte-americanas), escolhidas por autosseleção, muito mais brancas e de classe média do que a população geral de mulheres que já fizeram abortos, além do fato de que as mulheres reportam abortos feitos há pelo menos uma década. Metade acreditava que o aborto era errado; somente 40% pensavam que a mulher devia ter direito ao aborto. Outras 30% disseram que tiveram “complicações de saúde” depois do aborto, o que pode significar qualquer coisa (De acordo com o Instituto Guttmacher, somente 0,5% dos abortos de primeiro trimestre têm complicações “que podem requerer cuidados hospitalares”). Curiosamente, as mulheres norte-americanas, não as russas, reportaram quantidades assustadoras de violência e trauma em suas vidas antes do aborto.
Uma mulher que ache que o aborto é algo errado e acredite ter sofrido emocional e fisicamente por ter feito um aborto, se questionada sobre isso dez anos depois, é bem capaz de ter uma maior probabilidade de culpar outras pessoas pelo seu aborto. Mas o que significa ser pressionada ou coagida a abortar? Os opositores ao aborto citam histórias sensacionalistas da mídia sobre mulheres ameaçadas com armas ou até mesmo assassinadas por rejeitar um aborto. Isso é coerção. Mas um pai ou uma mãe que detalha a vida difícil de uma mãe solo não está forçando uma filha a interromper sua gravidez, nem um namorado que diz que não quer se casar ou que não está pronto para ser pai, ou uma irmã que diz que não há espaço para mais um bebê em um apartamento compartilhado. Todos nós já nos sentimos pressionados por outras pessoas a escolher um rumo ou outro, mas isso não significa que a decisão, ao fim e ao cabo, não seja nossa.
Qual a probabilidade de uma mulher ser levada a fazer um aborto que ela não quer? Em outra pesquisa do Instituto Guttmacher de 2005, 1.209 mulheres foram questionadas sobre seus motivos para escolher o aborto. Dessas mulheres, 14% disseram “meu marido ou parceiro quer que eu faça o aborto” e 6% disseram “meus pais querem que eu faça o aborto”. (Curiosamente, ambas respostas apresentaram porcentagens mais baixas do que uma pesquisa similar de 1987, quando 24% das mulheres mencionaram os desejos de seus maridos/parceiros e 8% mencionaram os pais). Não é de se surpreender que, naquele momento, as mulheres não decidiam pelo aborto isoladas: suas relações influenciavam suas decisões, provavelmente nem sempre de maneiras que as fizessem felizes. Mas ao serem questionadas sobre o principal motivo, menos de 0,5% citou os desejos dos maridos/parceiros ou pais. E isso vai fortemente contra a alegação de que como regra as mulheres que fazem abortos querem continuar com a gravidez, mas são pressionadas a interrompê-la por outras pessoas, de quem a lei precisa protegê-las.
O aborto é perigoso
A literatura antiaborto é cheia de histórias de mulheres gravemente feridas ou mesmo mortas em clínicas, que são invariavelmente descritas como lugares imundos repletos de “abortistas” incompetentes e péssimos funcionários. Tais lugares existem: uma mulher morreu na clínica de Kermit Gosnell, na cidade da Filadélfia, algumas ficaram feridas, muitas outras receberam cuidados insuficientes. Steven Brigham, outro trapaceiro, operou em diferentes locais por anos e, de alguma maneira, conseguia burlar a lei. Estes homens mantiveram-se ativos porque cobravam barato, eram do bairro, realizavam abortos em períodos da gravidez mais tardios do que o permitido por lei, e se especializaram em pacientes de baixa renda que, infelizmente, estavam acostumadas a serem maltratadas por pessoas em posição de autoridade.
Não há dúvidas de que há outras clínicas de péssima qualidade por aí. Cuidados precários, preços inflacionados e funcionários grosseiros podem ser encontrados em todas as áreas da medicina. Mas você não vai encontrar pessoas usando esses exemplos para atacar toda uma especialidade médica – por exemplo, reclamando da ganância dos cirurgiões ortopédicos (média de salário anual em 2012 nos Estados Unidos: 315 mil dólares) ou convocando inspeções surpresa em consultórios de dentistas porque algumas pessoas morrem todos os anos em erros evitáveis durante procedimentos odontológicos. É somente na assistência ao aborto que alguns maus profissionais contaminam todos os demais – e os contaminam tão profundamente que os opositores ao aborto conseguem aprovar leis que podem praticamente fechar todo um campo de atividade em nome da segurança dos pacientes.
Nenhum procedimento médico é livre de riscos. Tendo em conta que mais de um milhão de abortos são realizados todos os anos, há muitas chances de algo dar errado. Ainda assim, em contraste com as afirmações desonestas dos ativistas antiaborto, o aborto é consideravelmente seguro. Relatórios do CDC mostram que de 2003 a 2009, período ao qual se referem os dados mais recentes, a taxa de mortalidade nacional nos Estados Unidos era de 0,67 por 100 mil abortos. Em 2009, um total de oito mulheres morreram por causa de abortos. Por mais trágico que possa ser, compare com as reações fatais à amoxicilina, que por sua vez ocorrem em 1 caso por 50-100 mil aplicações. E o Viagra? De acordo com a Association of Reproductive Health Professionals (Associação dos Profissionais de Saúde Reprodutiva), o medicamento tem uma taxa de mortalidade de 5 por 100 mil prescrições. Mas dificilmente encontramos legisladores solicitando proibições ao Viagra, ou sugerindo que homens são muito emotivos, palermas ou vítimas de lavagens cerebrais pela “cultura do sexo”, e por isso não conseguem avaliar os riscos e os benefícios por conta própria.
No entanto, há somente uma comparação direta relevante sobre o risco em relação ao aborto, que é a gravidez e o parto. A taxa de mortalidade é de 8,8 mulheres por 100 mil. Como mencionei anteriormente, a continuação da gravidez é 12 a 14 vezes potencialmente mais fatal do que sua interrupção. Isso significa que o aborto é sempre potencialmente um fator que pode salvar a vida de uma mulher grávida. (E essa probabilidade está aumentando, porque a taxa de mortalidade materna está crescendo nos Estados Unidos, embora esteja caindo ao redor do mundo). E não é só a questão da taxa de mortalidade. De acordo com a Anistia Internacional, em 2004 e 2005, mais de 68 mil mulheres quase morreram ao dar à luz nos Estados Unidos. Os riscos de se gerar um bebê incluem gravidez ectópica, diabetes gestacional, vaginose bacteriana, pré-eclâmpsia, anemia, infecções do trato urinário, erupção da placenta, hiperêmese gravídica (a náusea constante e grave que causou a morte de Charlotte Brontë), depressão e psicose pós-parto e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Isso para não falar em enjoos matinais, azia, dor nas costas, estrias, episiotomia ou cicatrizes de cesárea, queda da felicidade matrimonial e redução de rendimentos.
Curiosamente, ninguém sugere que obstetras sejam obrigados a ler textos para mulheres grávidas sobre os perigos que elas têm pela frente e depois enviá-las para casa para pensar por 24 horas antes de decidirem se querem prosseguir com a gravidez.
Acontecem abortos demais
Fala-se frequentemente que acontecem abortos demais, mas como elas sabem qual é a quantidade certa? Isso não depende de quais são os motivos das mulheres? Se as mulheres estão interrompendo gestações porque elas não têm conhecimento suficiente sobre sexo ou poder em seus relacionamentos, ou sobre bons métodos contraceptivos e engravidam sem querer, certamente estão acontecendo abortos demais. E se há mulheres que abortam gestações desejadas porque são pobres demais para criar aquele filho, ou sentem medo de serem humilhadas, ou não têm apoio de suas famílias ou parceiro, isso também representa um número excessivo. O mesmo vale para o caso de uma mulher que fez um aborto que não queria porque alguém a constrangeu a isso, embora este exemplo funcione para ambos os lados: mulheres também são constrangidas a terem os filhos.
Às vezes, o que as pessoas querem dizer quando falam que há abortos demais é que precisamos ajudar meninas e mulheres a se responsabilizarem por sua sexualidade e terem mais opções na vida. De acordo com o Guttmacher Institute, em 2011 houve uma queda de 13% nos abortos desde 2008, principalmente por causa de um melhor acesso a métodos contraceptivos e de longa duração como o DIU. Essa é uma notícia muito boa. Mas, geralmente, o que as pessoas querem dizer é que as mulheres são muito despreocupadas com sexo e contracepção. Quando Naomi Wolf escreve sobre os abortos do tipo “ai, mas era um Chardonnay tão bom” feitos por suas amigas, ela está dizendo que as mulheres engravidam acidentalmente porque são hedonistas e superficiais. É difícil ser taxativo quanto à imoralidade do aborto, insistir que o número ideal de abortos é zero, como sustenta Will Saletan da revista Slate, sem culpar individualmente a mulher que se meteu numa confusão e agora quer fazer uma coisa pior para resolver. Nessa versão, há abortos demais porque as mulheres são irresponsáveis e o que elas precisam é de um belo sermão. Porque sermões sempre ajudam.
No entanto, de outra perspectiva, há pouquíssimos abortos. O arcebispo de Nova York, Timothy Dolan, lamenta que cerca de 40% das gestações na cidade de Nova York são interrompidas. Mas e se não for por causa dos números excepcionais de gestações indesejadas nos cinco boroughs da cidade, ou porque as mulheres de Nova York são particularmente negligentes, egoístas e apreciadoras de Chardonnay? Talvez isso reflita o fato de que o aborto é mais comum nas cidades, principalmente entre mulheres pobres, negras, solteiras, presentes em grande número em Nova York, e o fato de que a cidade de Nova York tem muitos profissionais que realizam abortos, bom transporte público para acessá-los e não tem maiores restrições, além de o estado de Nova York fornecer cobertura pelo Medicaid. Os gastos extras que podem dobrar os custos – transporte, babá, salários perdidos, pernoites – raramente se aplicam. Talvez se fosse mais fácil conseguir um aborto nos estados do Missouri ou Mississippi, suas taxas fossem próximas das taxas de Nova York. Um estudo de 2007 descobriu que, em 2000, 83 mil mulheres teriam feito abortos se eles fossem cobertos pelo plano de saúde universal. Em outras palavras, a taxa de aborto seria 6% mais alta. Uma revisão de 38 estudos de 2009 descobriu que cerca de um quarto das mulheres que teriam feito abortos se este fosse coberto pelo Medicaid tiveram filhos porque esta cobertura não estava indisponível.
Se o aborto fosse gratuito e todas as mulheres tivessem fácil acesso aos profissionais, quantos abortos teriam sido feitos? Na cidade de Nova York, existem mulheres que só conseguem fazer abortos porque o Fundo de Acesso ao Aborto de Nova York (NYAAF) ajuda-as a pagar o procedimento. Elas não são pobres o bastante para receberem o Medicaid, ou são pobres, mas não se enquadram por outra razão. A NYAAF tenta ajudar todas que ligam para sua linha direta, embora geralmente não cubram todos os custos do procedimento. Mas a NYAAF é uma organização pequena formada somente por voluntários: e o que acontece às mulheres que nem sabem que ela existe? Relatos de mulheres que tomam pílulas ou ervas para provocar o aborto sugerem que mesmo na capital do aborto dos Estados Unidos há uma necessidade que não está sendo suprida.
O aborto é racistas
Em fevereiro de 2011, um outdoor com altura equivalente a um edifício de três andares apareceu no moderno bairro do Soho em Nova York. Exibindo uma garotinha negra em um simpático vestido rosa, o outdoor proclamava “O lugar mais perigoso para um afro-americano é no útero”. No ano anterior, outdoors em Atlanta mostravam um menino negro com o slogan “As crianças negras são uma espécie ameaçada”. Criações do Life Always, um grupo antiaborto do estado do Texas, estes cartazes, e outros similares espalhados pelo país comparando o aborto à escravidão, geraram tanta indignação por parte de mulheres negras que foram rapidamente retirados. Mas a acusação de que o aborto é racista é um lugar comum no movimento pró-vida, para quem o Planned Parenthood perpetua o genocídio de pessoas negras, e Margaret Sanger, sua fundadora, era uma eugenista envolvida com nazistas.
Se o útero é o lugar mais perigoso para afro-americanos, as mulheres negras – e não aqueles que lucram com o racismo e o perpetuam – são as pessoas mais perigosas para suas comunidades, e o aborto é uma ameaça maior que a pobreza, encarceramento em massa, AIDS, moradias em ruína, escolas inferiores, parca assistência médica, discriminação no trabalho, violência, mortalidade infantil e materna, e todos os demais problemas que afetam os afro-americanos. Isso torna as mulheres negras, vítimas do racismo, as verdadeiras racistas. Dito assim não faz sentido nenhum. Mas também não faz muito sentido comparar o aborto ao racismo. Seriam as mulheres negras proprietárias de escravos que lucram com o trabalho forçado de seus embriões e fetos? Elas poderiam vender seus fetos e embriões para outras mulheres negras proprietárias de escravos para aumentarem a produção em suas monoculturas uterinas? Essa metáfora ignora a subjetividade das mulheres negras; mais uma vez, as mulheres são recipientes, um lugar – nesse caso específico, um lugar hostil.
Esse imaginário do aborto como escravidão ou genocídio permite que os opositores ao aborto banquem os antirracistas sem precisar aprender nada sobre as vidas de mulheres negras ou levantar um dedo para corrigir o gigantesco legado permanente da escravidão e da segregação. Basta humilhar mulheres negras para que elas tenham mais filhos do que elas sejam capazes de carregar ou cuidar, e tudo ficará bem.
“Eles dizem às mulheres afro-americanas que agora somos responsáveis pelo genocídio do nosso próprio povo”, escreveu Loretta Ross sobre o Genocide Awareness Project, uma campanha orientada para campi de faculdades.
Agora somos acusadas de ‘linchar’ nossos filhos em nossos úteros e praticar supremacia branca em nós mesmas. As mulheres negras estão mais uma vez sendo culpadas pelas condições sociais de nossas comunidades e demonizadas por aqueles que alegam que só querem salvar nossas almas (e as almas de nossos filhos que ainda nem nasceram). Essa é a cara que uma mentira tem.
Ross, uma importante ativista e pensadora afro-americana nos temas de justiça reprodutiva e raça, nos lembra que as mulheres negras têm uma longa tradição de ativismo em direitos reprodutivos e há muito já tomam medidas para controlar sua fertilidade: “Quando os métodos de controle de fertilidade se tornaram disponíveis e acessíveis, as mulheres afro-americanas já os defendiam e usavam essas estratégias com muito mais frequência do que as mulheres brancas”. As mulheres negras sempre fizeram mais abortos per capita do que as mulheres brancas, inclusive os ilegais, mais perigosos e fatais. Entretanto, as mulheres negras não têm uma taxa de aborto alta por estarem inclinadas ao extermínio de crianças negras, mas por terem menos acesso a bons métodos contraceptivos e assistência médica, e portanto, terem mais gestações indesejadas.
Margaret Sanger era racista? Não. Ela compartilhava as ideias eugenistas que eram normais entre os intelectuais, cientistas, políticos e pessoas comuns nas décadas de 1920 e 1930, incluindo aqueles que eram contrários ao controle de natalidade porque ele baixava a taxa de fecundidade dos brancos. Por mais repreensível que ela possa parecer nos dias de hoje, pedindo a esterilização dos “tipos disgênicos”, ela não acreditava na superioridade branca ou na inferioridade negra. Isso estava claro para seus contemporâneos, que compreenderam, além disso, que sua motivação era libertar as mulheres do fardo de suas gestações indesejadas, o que era algo que as próprias mulheres, incluindo as pobres e negras, desesperadamente buscavam. É por isso que Sanger e a organização que ela fundou, que depois se tornou a Planned Parenthood, teve o apoio de proeminentes líderes negros como W.E.B. Dubois, o fundador da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP); Mary McLeod Bethune, a fundadora do National Council of Negro Women (Conselho Nacional de Mulheres Negras); o reverendo Adam Clayton Powell, da poderosa Igreja Batista Abissínia do Harlem; Martin Luther King Jr.; e Coretta Scott King. Quando Martin Luther King aceitou o prêmio Margaret Sanger da Planned Parenthood em 1966, ele comparou a luta de Sanger para o controle de natalidade com movimento dos direitos civis: “Ela inaugurou um movimento que obedece a uma lei superior para preservar a vida humana sob condições humanas”.
Você acha que o Dr. King diria isso sobre alguém que queria exterminar os negros?
Os opositores ao aborto nunca puniram uma mulher
É isso que eles sempre dizem: as mulheres são “a outra vítima” do aborto. Somente os profissionais de saúde deveriam ser acusados de ter cometido um crime. Esta posição seria vista como uma novidade para os muitos países em que as mulheres estão presas por interromperem suas gravidezes. Se os opositores ao aborto de El Salvador não se incomodam com uma proibição que envia dezenas de mulheres para a prisão por até 30 anos por “homicídio qualificado”, bem como por abortos espontâneos e natimortalidade com suspeita de terem sido causadas por abortos, por que eles se oporiam a leis similares no estado de Luisiana? Se a Nicarágua pode confinar uma vítima de estupro de 12 anos de idade em um hospital “sob proteção do Estado” até que ela dê à luz, por que isso não poderia acontecer em algum momento no estado de Dakota do Sul?
No momento, nos Estados Unidos, levar mulheres às barras do tribunal por causa de um aborto parece um exagero, eu admito. Há pouco fôlego para isso no âmago do movimento pró-vida. Mas as bases estão plantadas. Mulheres foram presas por abortos autoinduzidos em diversos estados, mesmo que poucas tenham sido condenadas. Centenas foram detidas e outras presas por uso de drogas ou outro tipo de comportamento durante a gravidez, mesmo que nenhuma consequência ruim tenha acontecido, e mesmo que a lei tenha sido criada claramente com outro propósito (proteger crianças vivas de laboratórios de produção de metanfetamina, por exemplo). Por décadas, o movimento antiaborto empenhou-se em consagrar na lei a ideia de que o embrião e o feto são pessoas. Eles conseguiram a aprovação da Lei da Violência contra Vítimas Nascituras, que tornou a morte de embriões e fetos um crime específico, diferente do dano causado à mulher grávida, além de versões dessa lei em diversos estados. Na primavera de 2014, apesar das persistentes objeções de grupos de mulheres e organizações médicas, a legislatura do estado do Tennessee aprovou com apoio bipartidário, e assinatura do governador republicano moderado, uma lei que submete mulheres que usem drogas e cujas gestações tenham desfechos problemáticos a penas criminais de até 15 anos de prisão.
Em 2007, a adolescente de 16 anos Rennie Gibbs foi indiciada por homicídio por motivo torpe no estado do Mississippi, pelo fato de ter tido um natimorto com 36 semanas. Não havia provas que associassem seu uso de drogas à morte do bebê (grande pista: o cordão umbilical estava enrolado em seu pescoço), e 25 anos de pesquisas não foram suficientes para encontrar provas de que o uso de cocaína causa natimortalidade. Durante sete anos, Gibbs enfrentou a possibilidade de passar a vida na prisão e, quando o juiz finalmente abandonou as acusações, o promotor responsável pelo caso contou aos repórteres que tinha planos de tentar novamente, dessa vez com a acusação de homicídio culposo.
À medida que o aborto vai se tornando restrito e o embrião e o feto vão sendo considerados como pessoas em mais áreas da lei, torna-se exponencialmente mais difícil dizer que a conduta de uma mulher durante sua gravidez não deve estar sujeita ao escrutínio legal. Por que é admissível que uma mulher interrompa uma gravidez em uma clínica quando ela não pode fazer a mesma coisa com um autoaborto em casa, e por que é legal matar embriões e fetos no aborto se quando eles morrem em casos de violência doméstica ou em um acidente de carro envolvendo álcool trata-se de crimes graves? Um médico realiza um aborto; um namorado, a pedido da mulher, bate na barriga dela até que ela tenha um aborto espontâneo. Do ponto de vista do embrião e do feto, qual é a diferença?
Sobre os autores
é poeta, ensaísta e colunista da revista The Nation. Ela ganhou muitos prêmios por seu trabalho, como o National Book Critics Award por sua primeira coleção de poemas, Antarctic Traveler e dois National Magazine Awards por "Essays and Criticism". É autora do livro Pró: reivindicando os direitos ao aborto.