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Em parceria com Lula, Haddad promete fazer em SP "a revolução que esse país precisa". Foto Rede Brasil Atual

Combinar reflexão teórica com ação coletiva

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Conversamos com Fernando Haddad sobre seu novo livro e os desafios de uma política emancipatória renovada que esmague a máquina alienizante do neofascismo - e arrebente com todas as formas de domesticação.

UMA ENTREVISTA DE

Victor Marques

Fernando Haddad é certamente um político singular. Bem sucedido ministro da educação no governo Lula, prefeito da mais populosa capital do país e agora candidato a governador do estado de São Paulo, nunca deixou de se considerar antes de tudo um professor. Mais que isso: Haddad é um verdadeiro nerd de teoria. Só assim para explicar porque em pleno ano eleitoral de uma das conjunturas políticas mais dramáticas da história do Brasil tenha se dedicado a publicar um denso tomo com reflexões em alto nível de abstração sobre antropologia, biologia, linguística e economia.

O livro editado pela Companhia das Letras se chama O terceiro excluído: contribuição para uma antropologia dialética, e se propõe, nas palavras do próprio autor, a dialetizar a antropologia e antropologizar o materialismo. Em síntese, trata-se de um esforço intelectual ousado de reconstruir o materialismo histórico à luz de resultados antropológicos. No fundo, constitui uma tentativa de oferecer uma base teórica, ou ao menos um esboço dela, para renovar o projeto de emancipação humana universal. Não é pouca coisa.

O trabalho teórico aqui não se reduz, portanto, a um exercício gratuito e sem consequências. Haddad faz parte de uma venerável linhagem, e se orgulha disso, de ativistas políticos engajados na reflexão crítica rigorosa, que buscam formular uma base teórica para guiar a ação política consciente. E entende muito bem a necessidade de não ficar encastelado nos espaços estritamente acadêmicos, mas levar o debate para ambientes políticos coletivos, onde as ideias podem ser testadas e experimentadas. O que se trata aqui, ao final, é de um pensamento militante engajado, que busca “articular estrategicamente teoria com prática”.

Professor Haddad generosamente cedeu seu tempo em meio a uma frenética e decisiva campanha eleitoral para conversar com a Jacobin Brasil sobre Marx, capitalismo, crise ecológica, neofascismo e o futuro do movimento socialista.


VM

Seu novo livro chama a atenção por se tratar de uma obra densa, acadêmica. Não é um livro que trata da conjuntura, ou que aborde a situação política brasileira atual, como talvez alguns estivessem esperando, em se tratando do autor. É um livro de teoria. Por que escrever um livro como esse, nesse momento? 

FH

Minha presença na vida pública não faria o menor sentido se eu também não dedicasse um tempo da minha vida à academia. 

Em particular, no intervalo que tive após 2016, quando saí da prefeitura, voltei a refletir não só sobre a minha experiência na vida pública por 16 anos, mas também busquei reelaborar minhas visões de juventude e me debruçar sobre disciplinas que não tinha até então no horizonte. 

Sempre namorei a antropologia, e nutria um desejo de enfrentar o debate antropológico, onde me parece residir um potencial crítico e transformador muito efetivo. Acredito que o pensamento revolucionário tende a migrar para a antropologia, penso que vamos discutir muito mais antropologia daqui pra frente. Acredito ser aí onde o pensamento crítico irá finalmente se instalar, em virtude até do tema da atualidade: a relação do ser humano com a natureza, a relação dos seres humanos entre si e a crise medonha que estamos por enfrentar, em especial no que se refere à emergência climática e ambiental. Penso que a antropologia será o locus privilegiado de uma discussão mais profunda sobre o que está acontecendo e sobre os riscos que estamos correndo, muitas vezes sem nos dar conta.

Pretendia inicialmente, como digo na introdução, escrever um livro sobre desenvolvimento, mas, diante o quadro colocado, até a questão do desenvolvimento está problematizada, inclusive por parte dos antropólogos e cientistas sociais, que questionam: de que desenvolvimento estamos falando a luz da crise ecológica e do potencial destrutivo que a própria palavra desenvolvimento pode ensejar? Como venho de uma tradição de pensamento crítico e revolucionário, imaginei que pudesse, em meio a pandemia, ter uma oportunidade de pensar um pouco mais longe. 

VM

Você se reivindica como parte de uma tradição de militantes e dirigentes políticos que são também, ao mesmo tempo, teóricos e elaboradores. Na história da esquerda organizada não é incomum essa figura do ativista que simultaneamente está engajado na reflexão crítica, e até formula uma base teórica que serve de guia para a ação política.  Lendo seu livro, minha impressão é que ele busca oferecer uma base antropológica para a inventividade da política, o que às vezes você chama de “novas bases teóricas da emancipação humana”. É justa essa avaliação de que o livro busca ensaiar uma base antropológica para criatividade instituinte do ser humano enquanto ser político? 

FH

Desde minha juventude, quando tomei contato com o pensamento crítico, sobretudo marxista, sempre me incomodou a tese corrente de que o desenvolvimento das forças produtivas tem uma força libertária em si mesmo. Considerava essa tese incompatível com o conceito de sujeito automático, que o próprio Marx elaborou como ninguém. 

A grande novidade do marxismo foi compreender a inversão na relação sujeito-objeto que representou a emergência do capital: o capital como um sujeito automatizado, que ganha autonomia em relação à própria consciência humana, transformando tanto capitalistas quanto operários em suporte de uma lógica de acumulação irrefreável. Aquilo me parecia incompatível, ou no mínimo paradoxal, com a ideia de que se esse “sujeito automático” se desenvolvesse até os limites do paroxismo engendraria necessariamente novas relações sociais de produção superiores. Isso me parecia o grande paradoxo do marxismo. 

Minha impressão era que o Marx estava prisioneiro, por um lado, de seus primeiros pensamentos de juventude, nos quais postula uma certa inadequação do homem com a natureza, e, por outro, da leitura de um passado pré-capitalista mais próximo, em que efetivamente o desenvolvimento da produção resultou em uma uma ruptura institucional. Isso faz parte da história de consolidação do próprio capitalismo: sobretudo com a Revolução Industrial, de fato as instituições pré-capitalistas não tinham capacidade de acomodar o desenvolvimento tecnológico. Mas houve uma incompreensão no próprio marxismo, que não se deu conta de que essas racionalidades são elas próprias históricas. 

Voltemos ao tema antropológico. Sociedades sem Estado funcionam de uma maneira na qual a relação sujeito-objeto enquanto tal não está constituída, portanto não há propriamente uma distinção entre natureza e cultura. Esses polos estão, de certa forma, indissociados. É sobretudo a partir da escravidão que esses polos se constituiem dicotomicamente, no sentido moderno que lhes atribuímos. E depois, no capitalismo, temos uma inversão dessa relação, onde nos tornamos escravos de um sujeito que não controlamos — o senhor passa a ser o capital, e nós, os seres humanos, somos apenas os suportes, os servidores, desse processo de acumulação.

Então me parecia que precisávamos dialetizar a própria dialética. O que devemos nos perguntar é: se formos substituir essa relação — que nós criamos, mas que não controlamos — por uma outra, qual seria essa outra? Do que estamos falando quando pensamos em utopia hoje? Parece-me que a noção de desenvolvimento, tal como é dominante hoje, seja, na verdade, incompatível com pretensões emancipatórias que busquem harmonizar as relações entre os seres humanos, e entre os seres humanos e o planeta. 

O que busquei demonstrar neste livro é que a nossa relação com a natureza, imediatamente, é ecológica — não econômica. A economia nasce de um estranhamento entre nós seres humanos, não de um estranhamento entre nós e a natureza. E aí se encontra uma mudança de paradigma grande no seio do materialismo.

A economia começa pela dominação, que é onde se estabelece a relação sujeito-objeto, sendo o objeto primordial não um “objeto da natureza”, mas um outro ser humano, um sujeito tornado objeto, escravizado. O ponto de partida da relação sujeito-objeto não é a domesticação de plantas e animais: é quando um ser humano tenta domesticar outro, impõe uma relação de domesticação sobre o outro. Essa domesticação é o que me interessa, e deveria interessar a todos os teóricos críticos, porque ela que é fundante da relação sujeito-objeto.

Nossa relação “natural” com a natureza não é de dominação. As coisas não funcionam assim nas sociedades anteriores à divisão de classes: isso é algo instaurado pelo processo histórico, é o processo de estranhamento, que chamo de “alienização”, entre seres humanos. 

VM

Você usou agora dois termos –  domesticação e alienização – que são centrais para a argumentação antropológica do livro. O segundo, inclusive, um neologismo seu. Você poderia explicar melhor a relação entre domesticação e alienização?

FH

A “alienização” é um pressuposto da domesticação. A domesticação é justamente o ato de domesticar o alien. A simbiose entre espécies — assim como diferentes relações ecológicas inter-espécies, do parasitismo ao mutualismo — existe na natureza, antes de existirem seres humanos. Há também o fenômeno que, biologicamente, é chamado de “domesticação”, como o caso das formigas domesticando pulgões; coisas desse tipo são práticas naturais, as populações biológicas constroem seus nichos. Mas não é isso que caracteriza essa dimensão da dinâmica cultural. O que caracteriza essa dinâmica, só possível pela dimensão simbólica propriamente humana, é justamente a ocorrência de um processo de alienização, no qual se domestica subjugando. Esse é o começo da dominação social, e isso não é uma característica biológica da espécie humana, mas um desenvolvimento histórico específico, e relativamente recente — dado o tempo de existência da nossa espécie. 

Mas esse “alien domesticado” não é de uma outra espécie: ele é e não é um humano. Não é um “totalmente outro”, na medida é que é um alguém da mesma espécie biológica, nesse sentido é um “você”. Mas é um “você” alienígena, um “você” estranho, que se domestica. O Émile Benveniste tem passagens incríveis mostrando etimologicamente como palavras em sumério e indu arcaicos servem para designar simultaneamente o animal doméstico e o escravo, e o animal castrado e escravo castrado.

O que produz o primeiro “modo de produção”, por assim dizer, o modo escravista de produção, é o fato de que uma tribo domina a outra, subjuga, e transforma a outra em uma espécie de elemento inorgânico de sua própria produção. Então, a escravidão não é qualquer coisa: não se encontra na natureza nada parecido. Por isso que não adianta querer migrar uma lógica biológica para entender esses fenômenos especificamente sociais: porque na natureza não há contradição nesse sentido, de algo ser e não ser simultaneamente. Essa é a loucura da nossa espécie, e só é assim porque somos uma espécie simbólica, que se projeta no tempo. E essa projeção no tempo introduz um elemento disruptivo nas relações humanas.

VM

Seu livro está em continuidade com o que poderíamos chamar de projeto político da “emancipação universal” a superação histórica da dominação social. O que está em questão é pensar para além desse estado de coisas, reinventar os rumos da humanidade para além da dominação seja a dominação de um grupo sobre outro, seja a dominação impessoal do que você chama, remetendo a Marx, de “sujeito automático”. Mas qual é a atualidade, hoje, do projeto de emancipação universal?

FH

Sua pergunta me remete a outro aspecto das minhas considerações teóricas: o fato de que quando se estabelece a relação de dominação, isto é, quando a relação sujeito-objeto se firma historicamente, não é uma relação diádica que se estabelece. Há sempre um terceiro, que não fará parte dessa relação, mas que ao tempo é condição de possibilidade que a estrutura. Sem um “terceiro excluído” (que é justamente o que dá nome ao livro) que a estrutura, essa relação não se sustenta no tempo. 

Por exemplo, religião e nação, no meu arcabouço teórico, não são meros epifenômenos, ou elementos superestruturais. Ao contrário, têm uma dimensão estrutural. Algo muito presente no pensamento marxista do século XX é uma suposta etapa nacional do projeto de emancipação. Mas quando começa por aí, já começa mal. Porque a nação também estrutura essa relação de dominação, é necessária para essa relação se estruturar e se manter no tempo. Se não fosse a pluralidade das nações, a relação capital-trabalho não se manteria da forma como se manteve historicamente. 

Tomemos o caso da religião. Toda religião tem a pretensão de, ao se universalizar, resolver os problemas do mundo. Mas como isso não se dá, elas estruturam relações de dominação por fora. O próprio [Ludwig] Feuerbach, pensador alemão que influenciou profundamente o jovem Marx, ao escrever sua obra afirmava que o cristianismo dará conta do problema nacional — “ afinal de contas, somos todos cristãos”, como se não houvesse um mundo não-cristão que lhe servisse de contraponto, usado assim para justificar e legitimar relações de dominação entre cristãos.

Um cristão domina o outro (paradoxalmente, afinal deveriam se tratar de “irmãos”) porque há um terceiro não-cristão, que serve de ameaça e assim justifica tal dominação. Sempre há algo “por fora”, algo estranho ou assombroso, que justifica as piores atrocidades contra populações inteiras. O conceito de “unheimlich” — infamiliar, incômodo, inquietante — do Freud, que só encontrei tardiamente, me ajudou a pensar essas situações. É talvez o mais dialético dos conceitos freudianos, e a dificuldade mesma de traduzi-lo expressa essa complexidade. É um conceito que encapsula a contradição em si, algo que simultaneamente é e não é: o estrangeiro que é você, aquilo que é “estranhamente familiar”. 

Eu queria pensar a contradição, mas não nos termos “hegelo-marxistas” mais clássicos, da contradição entre criador e criatura. Minha perspectiva era outra: nós seres humanos somos criaturas sui generis, produzidas pela evolução, mas que transcendem o mundo biológico em virtude do significado que a linguagem simbólica adquire na sua relação com o tempo, na medida em que nos projeta no tempo. Nenhum outro organismo é capaz de navegar no tempo como o ser humano, que habita uma temporalidade própria. É essa transcendência da linguagem simbólica (em relação a natureza) que estabelece a possibilidade da contradição dialética se efetivar. E aí o conceito freudiano caiu como uma luva, porque é exatamente essa relação do ego, não com o alter, mas com o alien, que eu procurava explicar.

Com isso em mente, podemos voltar ao problema da emancipação universal. Segundo esse paradigma que estou sugerindo, então, não podemos trabalhar isoladamente os problemas internos e externos. Não é possível trabalhar primeiro a questão nacional, ou primeiro a questão religiosa. Precisamos trabalhar em duas frentes simultaneamente. Estamos obrigados a desassombrar o mundo, de certa maneira, simultaneamente, já que o mundo da dominação se sustenta com base nesse tipo de lógica. 

E talvez o fascismo não possa ser caracterizado como outra coisa que não um motor promotor de estranhamento. Pouco importa o conteúdo específico do projeto, se é religioso ou nacional, etc. — o que importa no fascismo é que ele instaura uma máquina de produção de estranhamento. O fascismo é muito interessante porque pode ser tratado como um caso limite do que estou querendo explicar. Sugiro que essa dinâmica está acontecendo cotidianamente, o que o fascismo faz é acelerar, catalisar, esse processo: é uma máquina de alienização. O fascismo não é outra coisa. É o gay, é o judeu, é o comunista, é o preto…

E isso nos diz respeito de maneira aguda, porque hoje o fascismo volta à carga, em virtude da crise global, tal como aconteceu cem anos atrás. Estamos vivendo exatamente a mesma coisa: novos meios de comunicação que ninguém controla, desregulados, e uma crise financeira medonha. 

Existem fundamentalmente duas formas de intermediação na sociedade contemporânea: a comunicativa e a financeira. Quando há uma dupla crise, sobreposta, financeira e comunicacional — com novos meios de comunicação de massa desregulados e desregulação financeira — forma-se o pano de fundo ideal para a entrada em marcha da máquina de alienização. Aí se produz o caos, o desastre, o genocídio. E agora estamos vivendo a mesma coisa. O interessante dessa etapa é que já vimos como essa dinâmica funciona, já vimos historicamente o funcionamento pleno da máquina de alienização. Imaginávamos que havíamos nos livrado disso.

Achávamos, doce ilusão, que o keynesianismo havia dado conta de tais problemas. Mas então, com a globalização financeira, o capital se torna maior que o Estado nacional, escapa de seu controle. As instâncias políticas perdem seu poder de regulação do capital. O resultado é a crise, e com ela esse motor alienizante volta com força total. Mais uma razão para não nos deixarmos enganar por parâmetros que já se mostraram insuficientes para pensar um salto de qualidade na sociabilidade humana.

VM

Um problema específico do nosso tempo, em que isso que você chama de “máquina de alienização” volta à carga, é que dessa vez não parece haver uma alternativa em termos de um projeto coletivo, de massas, emancipatório e universalista que possa se contrapor no terreno da política majoritária (mas também do imaginário popular) aos fenômenos proto ou neofascistas…

FH

É isso. Primeiro porque não temos base teórica consensuada para isso, a altura desse desafio. Nós, no pensamento de esquerda, estamos tateando. Há uma rica produção, não faltam pessoas pensando, mas falta consenso na agenda. Há muita coisa acontecendo, mas não temos ainda um novo cânone, como o marxismo, que parecia ser uma resposta bastante consistente, representou no começo do século passado. 

Para além do marxismo tradicional, considero que o materialismo, como uma tradição de pensamento a qual o Marx tem uma contribuição fundamental e decisiva, ainda tem uma vida longa pela frente. O que tento fazer neste livro é uma atualização do materialismo, com conhecimentos etnográficos que os pais do materialismo, Marx entre eles, não tinham. É uma tarefa intelectual do materialismo apropriar do conhecimento que veio depois, tanto na linguística, quanto na biologia e na antropologia. 

O marxismo, tal como se vulgarizou, hoje é insuficiente. E não é fácil superar um pensamento que foi tão forte, durante tanto tempo, e provocou tanta transformação, sobretudo no continente asiático. Não é fácil fazer com que socialistas libertários reconfigurem suas cabeças em torno de uma nova forma de abordar os mesmos temas. Mas, não vamos sair do lugar se não fizermos isso.

VM

De fato, o livro se apresenta como um esforço de reconstrução do materialismo histórico a partir do diálogo com a antropologia. O que você consideraria como o “cerne racional” do materialismo histórico que merece ser salvo, e como esse movimento pode ser efetivado na prática?

FH

A grande sacada do Marx, não tenho dúvidas, é o conceito de sujeito automático. O Marx é um teórico das revoluções modernas, e desse ponto de vista é insuperável. Ninguém entendeu melhor o processo das revoluções modernas do que ele. Ao desenvolver o conceito de “sujeito automático” para compreender a acumulação capitalista, deu um passo incontornável para a compreensão da modernidade. Ninguém alcança o Marx no que diz respeito a esse diagnóstico. Nem seus contemporâneos, nem mesmo quem veio depois, compreenderam com tanta profundidade o significado da inversão da relação sujeito-objeto — isto é, que os seres humanos estão agora a mercê de uma dinâmica que se autonomiza, que é criação humana mas que escapa inteiramente ao controle humano. Ninguém foi tão longe. E mesmo depois do Marx, pouca gente entendeu, infelizmente. 

O que então, na minha opinião, fica do materialismo? Primeiro, o diagnóstico da modernidade, a partir da análise da emergência de um sujeito automático que domina as relações sociais, que se torna o verdadeiro protagonista das sociedades capitalistas, tornando os seres humanos suportes objetificados de um processo com uma lógica própria, fora do nosso controle. Segundo, a dimensão contraditória dos processos históricos. Marx traz a dialética para as ciências humanas. No enterro do Marx, Engels faz um discurso no qual afirma que o Marx é uma espécie de Darwin das humanidades.

O que na minha opinião se torna ainda mais verdadeiro quando se percebe que ao trazer a dialética para as humanidades, isto é, quando Marx intui que o processo histórico é contraditório, há simultaneamente uma aproximação, mas também um afastamento de Darwin. Porque a história não evolui, mas “revolui”, tal como explico no livro. Esse “r” adicional é para incorporar a dimensão contraditória do processo histórico. Ao perceber que o processo histórico é contraditório, Marx trouxe uma contribuição da qual as humanidades não podem dispensar. Porque toda vez que as humanidades dispensam a contradição elas se deixam biologizar: naturalmente o darwinismo ocupa o espaço, porque aproxima por analogia os processos naturais e históricos. Mas isso é falso. A dimensão dialética das humanidades é, portanto, uma vacina contra o reducionismo. 

O livro preserva essas duas contribuições, seminais e incontornáveis, do materialismo histórico.

E da mesma maneira que para compreender o passado pré-escravista a antropologia é essencial para o materialismo — daí a necessidade de atualizar o materialismo por meio da antropologia —, para a antropologia é essencial absorver essas duas contribuições de Marx. Sobretudo no que se trata da antropologia dos modernos, que necessita dessas contribuições para avançar, compreendendo Marx como o grande antropólogo da revolução industrial. O que o livro sugere, então, é: dialetizar a antropologia e antropologizar o materialismo.

VM

Você nos falou muito bem o que vale preservar do pensamento de Marx. O que permanece vivo. Por outro lado, na sua opinião, o que estaria “morto” no marxismo tradicional?

FH

O que está morto é fundamentalmente a ideia da contradição original entre ser humano e natureza. Essa tese é em parte tributária do romantismo alemão, mas a evidência etnográfica a desmente: temos no mínimo cem mil anos de história humana onde as coisas simplesmente não funcionavam assim. Do ponto de vista da espécie biológica, essa suposta inadequação originária, ou cisão entre ser humano e natureza, é recente, começa a aparecer há dez mil anos, junto com a sociedade de classes. 

Tenho certeza de que se Marx tivesse tido oportunidade de ler as obras de Marcel Mauss, Marshall Sahlins, David Graeber ou do próprio Karl Polanyi (um herdeiro da escola histórica alemã), teria se debruçado seriamente sobre essa literatura, curioso como era de tudo. E reconheceria a grandeza desses autores e de suas contribuições.

Mas qual a consequência de identificar a contradição originária como sendo entre ser humano e natureza? Um certo otimismo ingênuo em relação ao desenvolvimento das forças produtivas, como se isso fosse resolver o problema, na medida em que elimina uma situação de escassez absoluta. Logo, a solução seria industrializar a todo custo nossos países. Não estou tirando o mérito do desejo das nações atrasadas de buscarem um caminho para alcançar, em termos de capacidade técnica, produtiva, o patamar das nações avançadas. Mas isso era visto como uma redenção, como se pelo desenvolvimento nacional se pudesse cumprir o destino da história universal e realizar a emancipação humana. O que se provou é que, por si só, não há nada redentor disso, simplesmente se altera a hierarquia do sistema-mundo entre as nações. 

A outra coisa, que inclusive me causa certo espanto, é que nos Grundrisse o Marx percebe que essa inversão em proveito do sujeito automático promoveria a substituição do trabalhador até o limite da automação, a eliminação do “trabalho vivo” pelo “trabalho morto”. Nesses rascunhos o Marx diz isso com todas as palavras: não apenas faz referência, mas descreve minuciosamente o processo de automação, uma descrição que nos seus dias pareceria a mais selvagem ficção científica, mas que se mostrou uma previsão surpreendentemente precisa. É exatamente o que você vê quando entra em uma fábrica automatizada hoje, com meia uma dúzia de pessoas supervisionando a produção por uma sistema de máquinas. E hoje há inclusive fábricas automatizadas de produção de máquinas. Enfim, chegamos ao cenário de ficção científica previsto há quase 170 anos pelo Marx. É impressionante o que ele foi capaz de antecipar a partir da aplicação de um método acertado para a análise da realidade de seu tempo, indo além do que muitos economistas, até posteriores ao Marx, foram capazes. De certa forma, curiosamente, o Marx foi além até do próprio marxismo.

VM

No livro, você expressa ceticismo na possibilidade de resolução do problema ecológico em termos do próprio capitalismo. De certa maneira, poderíamos dizer hoje que o “sujeito automático” está em guerra contra Gaia, as formas autonomizadas da produção social, que se desprendem do controle humano, estão pressionando os limites planetários com consequências potencialmente catastróficas para os humanos. Onde você vê a impossibilidade do capitalismo de dar uma solução à questão ecológica? E o que daria para fazer a respeito disso? Como podemos, enquanto esquerda organizada, enfrentar isso a partir de uma estratégia social-ecológica?

FH

Não é casual que o homem mais rico do mundo esteja querendo colonizar Marte. Se os cientistas estiverem, em sua grande maioria, certos, não iremos terminar este século como o começamos, terminaremos de outra maneira. É bom que nos preparemos para isso. 

O que acabou de sepultar o feudalismo, e acelerou o fim da servidão, foi a grande peste do século quatorze. Será que precisaremos passar por outra situação semelhante, um cataclisma de grandes proporções, para nos darmos conta de que essas relações sociais são insustentáveis? É uma possibilidade — que sejamos capazes de vislumbrar uma utopia só após uma grande catástrofe. A catástrofe primeiro, a solução depois — já que o sujeito automático não vai pedir licença para continuar se reproduzindo de forma ampliada. E se não há sujeito coletivo capaz de se contrapor a esse sujeito automático, ele vai destruir parte de Gaia até que essa devastação se faça sentir em um grau tal que se cria então uma situação disruptiva para o próprio sujeito automático. Essa é a possibilidade distópica. Seria o fim de uma era, mas não o fim da humanidade ou da Terra. E talvez essa seja até a possibilidade mais provável, caso nada seja feito. 

Essa é uma possibilidade, mas há muito o que se possa fazer antes, e o tempo é curto. Então é necessário agir agora. O livro sugere políticas desalienizantes: promover integração supranacional, romper com barreiras dos conflitos religiosos e nacionais. É preciso ter a compreensão que isso está também impedindo a solução da crise ecológica, desviando nossa atenção e energia desse desafio urgente. É crucial esclarecer as pessoas que o problema ambiental não começa na relação ser humano e natureza, mas na relação entre os seres humanos. E se algo não for feito na relação entre os seres humanos, a humanidade não conseguirá enfrentar e resolver a questão ecológica. 

Tudo começa no estranhamento entre nós, não com a natureza. Não somos naturalmente inimigos da Terra. Nós nos fazemos inimigos uns dos outros. O problema é o fascismo que subjaz às práticas alienizantes. Esse é o motor que precisamos desmontar. E temos que colocar outra coisa no lugar. 

VM

Se levarmos a análise dos Grundrisse até o final, que profetiza o fim do trabalho, como fica a base material para agência coletiva em um novo projeto de emancipação? O sujeito coletivo que se contrapôs ao sujeito automático no século XX foi, na prática, em boa medida o movimento operário. Você diria que seria possível compor outra figura coletiva da classe trabalhadora que já não é mais o operário massa da grande indústria fordista que exerceu uma função de vanguarda na organização política da classe trabalhadora? Ou já não seria mais nem a classe trabalhadora o agente da transformação histórica? 

FH

Há muitas tentativas para tentar dar conta desse problema da agência. Quem é o interessado? Quem seria capaz de agir coletivamente de modo eficaz para superar o estado de coisas? O que o livro sugere é que essa relação objetificante em relação ao outro não está restrita ao mundo do trabalho. Procuro mostrar que essa relação se repete em várias instâncias da microfísica da sociedade, passando por questões centrais como, por exemplo, a relação entre os gêneros, ou a questão racial. Todas essas relações, de certa maneira, reproduzem a objetificação constitutiva dos primórdios da relação sujeito-objeto, que se espalha por tudo. 

Daí pode-se invocar o pensamento radical do David Harvey, para pensar nas massas urbanas, rebeldes quase que por natureza hoje, ou a multidão do Antonio Negri. Agora, prefiro pensar nisso que chamo de “matriz idiossincrática da subjugação”, em que essa realidade impõe ao agente político a consideração da particularidade da subjugação, sem perder de vista a universalidade do conceito. Tratar as questões raciais em sua particularidade; ou a questão das minorias religiosas, a questão colonial, a questão de gênero, sempre atentando e respeitando a particularidade, e ao mesmo tempo sem perder de vista a dimensão universal. Nenhum desses segmentos irá se emancipar sozinho. 

VM

Mas nesse caso não é preciso um trabalho propriamente político de articulação? A partir da circulação e da coordenação das lutas é que poderia emergir uma universalidade concreta. 

FH

Claro! Um dos méritos do PT foi precisamente conseguir ser a expressão de uma série de movimentos difusos e diversos da sociedade, que encontraram um canal de expressão política em um partido de tipo novo. 

O PT é curioso. Talvez um caso único. Quando olhamos para o movimento operário europeu, por exemplo, ele é muito marcado pela participação da classe trabalhadora e do proletariado industrial. Creio que hoje aquele padrão de partido deve dar lugar a algo mais aberto, que acolha temáticas como transição ecológica, feminismo, anti-racismo, liberdade religiosa, integração supranacional, sobretudo na luta contra o neocolonialismo. O PT é um partido que, em seu nascedouro, expressou muito esse tipo de abertura, expressou essa generosidade com outros olhares, buscando uma certa coesão, mas a partir da multiplicidade de sujeitos e lutas. E continua, em certa medida, sendo uma experiência muito rica. É difícil encontrar coisas semelhantes em outros países. 

Não estou dizendo que não existem defeitos — porque vejo muitos, e na minha militância tento os corrigir. Mas é uma experiência impressionante de um partido socialista democrático, construído com os movimentos, abraçando a diversidade das lutas, com uma viva democracia interna. Talvez seja esse o tipo de instrumento político que nosso tempo pede: partidos-movimentos que sejam capazes de agregar várias bandeiras, que possam sintetizar, a partir das particularidades, um horizonte comum emancipatório. 

Acredito que se voltarmos a governar o país, faremos valer essa experiência de êxitos e fracassos, na próxima rodada que temos pela frente. Não se pode mais perder tempo, não há espaço para gradualismo em várias frentes de luta. Questões como o racismo e o machismo não podem ser enfrentadas de forma não radical. Se a utopia se tornar algo palpável em um futuro próximo, será muito pela força do movimento de mulheres. Não há como negar a evidência de que da instauração da sociedade de classes até hoje, a dominação teve um caráter patriarcal: quem deu o tom nas relações de poder foi o homem. Até por essa razão, qualquer perspectiva emancipatória terá que contar com o protagonismo feminista. Ficar opondo a luta de classes a essas questões é um tremendo equívoco. Não se pode diminuir uma coisa em proveito da outra. Efetivamente, é preciso trabalhar essas realidades conjuntamente. O papel da atividade política é essa.

VM

Você reivindica o socialismo? O que seria o projeto socialista no nosso tempo? 

FH

Sim, me reivindico socialista. A palavra não perdeu de forma alguma seu significado mais profundo. 

O maior problema do movimento socialista hoje é de não se permitir a capacidade de superação. Sempre faço a analogia com o darwinismo, que estava morrendo no fim do século dezenove. Se não fosse a recuperação dos trabalhos desconhecidos do Mendel, não haveria o encontro da genética com a teoria da evolução, que resultou na robusta síntese moderna.

Não me conformo com a atitude dos que ferem de morte o caráter científico do materialismo histórico não permitindo que ele seja questionado. Como Marx teve uma preponderância tão grande no pensamento social, não é fácil superá-lo. Mas, curiosamente, se ele estivesse vivo, estaria tratando de se superar. Muitos auto-declarados marxistas não se dão a liberdade que o próprio Marx certamente se daria.

Penso então que umas das principais tarefas dos socialistas no nosso tempo é 

retomar o que foi a riqueza da discussão teórica em torno do projeto político socialista no fim do século dezenove, até meados do século vinte. Éramos nós os que produziam conhecimento social mais avançado. Os maiores pensadores sociais do começo do século XX estavam ligados ao movimento socialista, e travavam um embate com à direita, com os defensores intelectuais da ordem vigente, em altíssimo nível. Nós socialistas éramos os que chamavam para a batalha das ideias, os que venciam no argumento. Porque tínhamos confiança no nosso aparato teórico, fruto de ousadas investigações sistemáticas, de um profundo e sério debate coletivo. Jamais nos recusamos a discutir na fronteira do que estava sendo produzido. Precisamos voltar a debater o conhecimento de fronteira, em todos os âmbitos — na psicologia, na antropologia, na sociologia, etc.. 

Nós que estamos comprometidos com o projeto de emancipação humana não podemos imaginar que estamos com a vida teórica resolvida, porque não estamos. Então primeiro é necessário ter uma formulação, que pode ser o resultado de um debate amplo, plural — a partir do qual o melhor argumento do nosso campo possa se firmar. Mas igualmente decisivo é levar esse debate para ambientes políticos coletivos — porque a Academia não vai dar conta. A universidade é um espaço importante para o pensamento crítico, mas não é suficiente ficar encastelado lá. É necessário construir organização, um espaço democrático onde ideias possam sofrer o papel da crítica prática e da testagem via experimentação. 

Vivemos um momento onde coisas horríveis são possíveis, e fenômenos muito reacionários se expressam, mas também é um momento estimulante para pensar o que está acontecendo. A tarefa é combinar a melhor reflexão teórica possível com instrumentos de ação coletiva. Os bons partidos, arejados, servem para isso: como lugares de síntese coletiva, de reflexão militante engajada, onde é possível articular estrategicamente teoria com prática.

VM

Na introdução do livro, você começa confessando que pretendia inicialmente escrever um livro sobre desenvolvimento brasileiro. O ensaio antropológico que precederia essa empreitada acaba se alongando e se torna um livro completo. Mas a consequência é que o Brasil sai de cena: a difícil conjuntura política brasileira não é assunto do livro. O que dá para entender do Brasil de hoje a partir das lentes teóricas preparadas neste livro? 

FH

De certa maneira, todas as mazelas abordadas no livro estão agravadas no Brasil: a condição da mulher, a condição do negro, a condição do trabalhador. Isso aqui é um laboratório negativo da emancipação. E por isso mesmo, aqui é o lugar onde práticas desalienizantes podem ter o maior potencial transformador. Por muito tempo nós fomos o laboratório de práticas alienizantes: tivemos o genocídio da população indígena, uma sociedade brutalmente patriarcal, um genocídio negro que nunca acabou. 

A tese da introdução, que quero ainda desenvolver mais pra frente, é que o Estado patrimonial brasileiro foi entregue a oligarquia como compensação pelo fim da escravidão, portanto temos um racismo estrutural pra valer no Brasil, uma vez que a abolição, longe de terminar, perpetuou a subjugação negra, pela maneira como se deu a transição à República, dando lugar ao que Machado de Assis chamou de uma “oligarquia absoluta”. 

Se tudo isso sobre o Brasil for verdade — e parece ser, à luz do nosso histórico de mal-feitos contra a população — as práticas contra a alienização podem ter um papel muito poderoso. 

O Brasil só começou efetivamente a enfrentar essa agenda após 1988, mas sobretudo com a chegada do Lula à presidência — pela natureza do PT, e a partir das pressões dos movimentos sociais, que ajudaram a construir o petismo e os governos petistas. Daí se deram condições favoráveis para a experimentação desalienizante.

Posso dizer que participei de uma das maiores transformações recentes da história brasileira, que foi a chegada dos pobres e pretos em grandes números aos níveis superiores de ensino. É uma experiência que me emociona só de falar. Uma experiência muito forte, que vou levar para vida. A universidade mudou, e isso tem efeitos sociais mais amplos. Permitiu a uma parcela da juventude trabalhadora ampliar suas expectativas. Essa juventude quer mais, e está absolutamente certa em querer.

Em grande medida, Bolsonaro e o bolsonarismo são uma reação a isso. Espero que a última, derradeira. Espero que esse suspiro reacionário seja decididamente derrotado, e o que venha pela frente seja muito mais poderoso. Ainda há muito cadeado para quebrar. E essa galera que vem por aí é incontida: não quer ser domesticada, quer expressar sua liberdade criativa. O futuro está com ela. Nossa missão é ajudar a abrir os caminhos.

Sobre os autores

é um acadêmico, advogado, professor e político brasileiro, filiado ao Partido dos Trabalhadores. Foi ministro da Educação de 2005 a 2012, nos governos Lula e Dilma Rousseff, e prefeito da cidade de São Paulo de 2013 a 2016.

é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

Cierre

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Published in América do Sul, Entrevista, Livros and Sociologia

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