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Foto de Pedro Ladeira / Folhapress

Por um pensamento do fora

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Tornou-se rotineiro ouvir que imaginamos cotidianamente o fim do mundo, mas temos dificuldades para imaginar o fim do capitalismo. Se elaborar um mundo fora do capitalismo é tarefa urgente, quais táticas e estratégias subsidiariam, efetivamente, uma saída coletiva?

Em 1960, o Conselho para Relações Exteriores (Council on Foreign Relations) dos EUA, que então tinha como vice-presidente David Rockefeller, publicou Social Change in Latin America Today: its implications for United States Policy. Trata-se da reunião de seis artigos de antropólogos que, por meio de suas pesquisas, segundo a introdução de Lyman Bryson, “não oferecem sugestões definitivas quanto ao que a nossa [dos EUA] política para a América Latina deveria ser. Eles arriscam, em alguns casos, apontar para o que acreditam que são erros evidentes”.

Talvez seja interessante notar a relevância que a publicação atribuía à abordagem científica do antropólogo. Altamente especializada, sua prática em campo poderia trazer vantagens para uma estratégia política de aproximação ao espaço latino-americano. “O antropólogo tem uma abordagem diferente”, lemos na introdução. “Ele é treinado para se colocar na pele de outros povos [to get into the skins of strange peoples], até onde isso pode ser feito, e para libertar-se dos pressupostos que fazem dele um membro da sua própria tribo em casa”.

Além disso, o antropólogo mostra-se como alguém atento e ponderado, sujeito de destacada capacidade de escuta. Dessa maneira, em um contexto de discursos polarizados, diz Bryson, suas habilidades não poderiam ser desdenhadas:

“O camponês ou mineiro latino-americano pode procurar um vilão para culpar por seus problemas e encontrá-lo no capitalista norte-americano. Pode até procurar um amigo e encontrá-lo no comunista inspirado no Kremlin. Ele pode achar a palavra que ambos usam, ‘democracia’, muito vazia de conteúdo para ser reconfortante. O antropólogo estuda as mudanças de significados e exigências que passam pela mente destas pessoas. Ele é politicamente consciente assim como cientificamente observador. Ele dominou e avaliou grandes quantidades de material, em que baseia suas conclusões cautelosas”.

São óbvias as razões do empenho dos EUA no sentido de conhecer seus vizinhos do sul do continente como que “por dentro”, “na pele” (into the skins), e de a partir disso construir relações com eles. Para exercer domínio, as práticas coloniais e imperialistas sempre dependeram não apenas da exploração de bases econômicas, mas igualmente da produção de sujeitos e de objetos de conhecimento.

É essa articulação tensa e microfísica que logo seria esmiuçada nas pesquisas de Michel Foucault. Entre o conhecimento e as coisas a conhecer, apontava Foucault em uma de suas conferências na PUC-Rio em 1973, não há uma continuidade natural, garantida pela percepção, pelo reconhecimento ou pela identificação. Ao contrário, diz Foucault, só pode haver aí uma relação “de força, de violação”. Ou seja, “por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber”.

“Ao longo da década, a política norte-americana para a América Latina logo passaria a dar suporte aos golpes de Estado que afinal conduziram diversos países a ditaduras militares.”

No início da década de 1960, no distante Sudeste Asiático, a Guerra Fria já se desdobrava naquele que seria o conflito mais traumático para o imaginário norte-americano, e bem ali, sob o nariz do império, Cuba já havia realizado a sua revolução vitoriosa. Em crise, portanto, o american way of life era confrontado por um chamamento libertário que, da Argélia ao Vietnã, e apesar das diferenças dos processos, espalhava-se pelo mundo, fortalecido pela emergência de novos movimentos sociais.

Ao longo da década, a política norte-americana para a América Latina – fazendo uso de significantes “vazios” como democracia, liberdade ou modernização – logo passaria a dar suporte aos golpes de Estado que afinal conduziram diversos países a ditaduras militares. 

Como nos lembra Andrea Giunta em Vanguarda, internacionalismo e política, em 1964, ano do golpe no Brasil, vemos claramente essa “retificação” estratégica, por meio da orientação de Thomas Mann, secretário adjunto de assuntos latino-americanos dos EUA: nesse momento, “mais importante do que estabelecer a democracia representativa na região era contar com aliados seguros”. Por isso, escreve Giunta, “os exércitos foram vistos como instrumentos políticos e, inclusive, modernizadores, e os golpes militares como uma ferramenta mais eficaz na contenção do avanço comunista no continente”.

Um novo fora do capitalismo?

A simplificação é arriscada, mas poderíamos dizer que o efeito dessas manobras, na verdade conduzidas em larga escala, foi a implantação global do neoliberalismo, começando pela experiência modelo no Chile de Pinochet. Ou seja, o efeito foi a penetração violenta e duradoura do capitalismo – no mundo, na pele, na mente das pessoas. Foi o estabelecimento da dominação, agora por novas formas de colonização, ao ponto, parece, de o maior desafio que enfrentamos hoje ser o de imaginar coletivamente o fora.

Já se tornou fórmula dizer que imaginamos cotidianamente o fim do mundo, mas encontramos dificuldades para imaginar o fim do capitalismo. Pois, de fato, como seria um mundo em comum fora do capitalismo? E quais caminhos, táticas ou estratégias subsidiariam práticas singulares, situadas e efetivas para uma saída coletiva?

Em seus escritos sobre a marronagem, Dénètem Touam Bona retoma (em diálogo com Fanon, com Glissant, com Kopenawa) modos de sublevação e resistência que seriam capazes de criar uma fuga, um fora ao capitalismo que avança sobre tudo e todos, resultando num mundo exaurido, sem exterior, fadado à extinção. Para além das fugas de escravos e do estabelecimento de comunidades avessas ao sistema de dominação colonial, também as táticas “não frontais” – ou seja, as táticas “menores”, “furtivas”, de “subtração do poder” – definiriam a marronagem e consistiriam, para o autor de Cosmopoéticas do refúgio, formas efetivas de criação de um espaço-tempo exterior. Um fora (sentido presente na etimologia de floresta) dos dispositivos de controle do mundo capitalista, cada vez mais smart; um refúgio, de fato, mantido em ligação com a terra, com as “potências do sonho e da poesia”, à escuta dos “mestres do invisível”: “pajés, ngangas, mães de santo, bruxas neopagãs”.

A questão talvez seja a seguinte: uma saída não poderá ser pensada com base em pretensões universalistas abstratas; cada fora terá de ser o resultado de um processo criado em situação. Por isso mesmo, saídas minoritárias, furtivas, esquivas podem ser sim potentes, mas não poderão servir de modelo ideal a ser replicado, com validade irrestrita. Até mesmo porque, se estivermos atentos à dinâmica neoliberal, veremos que há tempos o mercado adota, justamente, o funcionamento reivindicado por muitas guerrilhas e seus intérpretes: trata-se de um mercado nômade, desterritorializado, sem rosto, totalmente confundido com o mundo ambiente (os hábitos e o habitat), seja ele real ou virtual. Desse funcionamento, aliás, o capitalismo atual tira sua força, colocando o fora em processo de abolição.

As táticas insurgentes dos sem

Ao referir-se à “insurreição milenarista que culmina na criação de Canudos”, por exemplo, Dénètem Touam Bona afirma que “assim como os marrons, os rebeldes de Canudos se fundem com o território onde se retiram”. E se uma fronteira parece ser necessariamente criada pela secessão, ela só pode se manter “graças ao seu próprio apagamento”. Daí que haja um paradoxo na secessão marron, segundo o próprio autor: “pois, ao invés de inaugurar o nascimento de um novo Estado, ratifica o ingresso na clandestinidade de uma comunidade de seres indóceis”.

Poderíamos perguntar, quem sabe, se manter-se graças ao próprio apagamento, fundindo-se num território nômade, não seria uma boa síntese para o funcionamento acachapante das formas smart – as formas algorítmicas, ao mesmo tempo padronizadas e altamente individualizadas – do capitalismo atual. E se, na lembrança de Canudos, não seria prudente considerar, também, as consequências, para os sertanejos, desse ingresso na clandestinidade, como seres indóceis (no livro em questão, ao elogiar a tática dos insurgentes, o autor não faz referência ao extermínio promovido pelo poder militar do Estado, embora esteja amparado, é claro, no relato de Euclides da Cunha, que se encerra tristemente).

Essas mesmas questões poderiam ser feitas quando pensamos, hoje, na viabilidade de tais táticas para os diversos grupos minoritários que igualmente se alinham na dissidência do Ocidente, como os indígenas, os quilombolas, a comunidade LGBTQIA+, os sem-terra, os sem-teto, os sem reconhecimento, os sem direitos, os sem dignidade, os espoliados pela pilhagem global. Em torno da pluralidade desses sujeitos, dos seus mundos e suas situações serão desenhadas as reais possibilidades de um pensamento do fora – algo que, podemos imaginar, não ocorrerá pelas vias do consenso democrático do Ocidente, que muitas vezes mascara o avanço do capitalismo com a representação de uma suposta igualdade coletiva.

Em nosso contexto mais imediato, contudo, não há dúvida: qualquer saída que viermos a imaginar, qualquer prática deverá passar, antes de tudo, pela contenção da violência operada pelo atual governo e seus seguidores. Esse é o primeiro passo para podermos avançar – em pensamento, em ação – na direção de um mundo plural, pautado pela afirmação mais radical da igualdade.

Sobre os autores

é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Livros and Sociologia

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