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Em março de 2023, Lisboa, Portugal, classificou a terceira cidade menos viável do mundo para se viver com base nos salários e aluguéis locais. (Pedro Szekely / Flickr)

A especulação imobiliária fez de Lisboa uma das cidades mais inabitáveis do mundo

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Tradução
Tamina B.R. Lima

Os custos da habitação em Lisboa estão tão altos que se tornaram tão (ou mais) inviáveis para os inquilinos quanto Nova Iorque - e, as tentativas de resolver o problema via “a eficiência do mercado”, só agravam ainda mais a questão.

É terça-feira pela manhã, e Manuela, estudante do segundo ano na Universidade de Lisboa, acorda na casa de uma amiga no centro da cidade, prepara-se e sai, caminhando a pé até chegar à sala de aulas. Mas ela não dormiu mal após uma noite de festa: a estudante relata que passou a pernoitar na casa de amigos de segunda a sexta, de favor, após dois meses em busca por um quarto.

A história de Manuela não é rara. Leston, um residente de nacionalidade portuguesa e angolana, conta que um primo seu “lutou muito, antes de conseguir deixar a África do Sul rumo à Lisboa, o que só conseguiu após pagar a quantia de três meses de aluguel adiantados.”

Para alugar um apartamento, o geógrafo ‘lisboeta’ Agustín Cocola-Gant, “teria de destinar entre 50 % e 60 % de seu salário para o aluguel, caso ele tivesse um salário bem remunerado. Se você recebe um salário mínimo, pode esquecer esse tema.”

Em março de 2022, Lisboa estava posicionada no ranking mundial como a terceira cidade menos viável para viver, considerando os salários locais e os aluguéis. Seu mercado imobiliário parece mais tensionado do que o de grandes cidades, como Paris e Nova Iorque. Enquanto os preços sobem, a população tem diminuído. Nos anos oitenta, o bairro de Alfama tinha 20 mil residentes. Hoje, abriga apenas mil.

Moradores idosos foram forçados a sair de distritos onde passaram a vida toda. Esse êxodo “impede-nos de usufruir uma vida comunitária de bairro”, afirma Ana Gago, professora na ULisboa, que conduziu uma pesquisa qualitativa em Alfama. “E isto, penso eu, é violência.”

Há menos de cinquenta anos atrás, Lisboa insurgiu-se contra a ditadura de direita e escolheu o poder popular, em sua Revolução dos Cravos. Naquela época, a direita e o conservadorismo eram tão intragáveis que os novos grandes partidos se intitulavam de social-democratas (mas eram de centro-direita) e socialistas (de centro à centro-esquerda). Assim, como Lisboa não foi capaz de impedir a volta deste cenário, que esmaga seus cidadãos tão mais crua e cruelmente?

Expansão e retração

Segundo Luís Mendes, geógrafo da ULisboa e consultor no Conselho de Habitação local, os lisboetas foram atingidos por uma verdadeira tempestade de políticas de precarização.

Após o processo de democratização e ter sido decretado o fim do regime colonialista, (apenas no quarto final do séc. 20) Portugal adentra os meados dos anos 70 com uma “ fraca base de desenvolvimento”, explica Simone Tulumello, também geógrafo na ULisboa. Ele afirma que os governos subsequentes focaram por desenvolver “atividades de baixo valor agregado, entre elas o turismo, que seria seu ovo de ouro.”

O turismo português explodiu mesmo com a Grande Recessão, quando o Banco da Europa Central e o FMI, Fundo Monetário Internacional, resgataram Portugal da sua dívida com a condição de implementar medidas de austeridade e desregulamentar investimentos.

Portugal agilizou a elaboração destas propostas, desenvolvendo o Visto Gold, que concedia residência na União Europeia a investidores via pagamento de quantias, como a compra de propriedades no valor mínimo de €500.000, e um programa de residência não permanente, incentivando investidores imobiliários europeus. Ambos mostraram-se populares.

Isso também intensificou o foco do país no turismo, enfatizando possibilidades de investimentos e expansão de empregos. Por mais que isso correspondesse a baixos custos fixos, os empregos gerados eram em sua maioria mal remunerados.

No âmbito local, a Câmara Municipal tentou renovar as construções decadentes de Lisboa, promovendo novos investimentos e introduzindo a cidade no mercado imobiliário global. O imposto sobre as vendas foi reajustado nas reformas, rebaixado de 21% a 5%. “Isso”, explica Mendes, “ocorreu quando a virada neoliberal começou a florescer”.

Lisboa alardeou suas muitas qualidades, estampando as capas de diversas revistas e ocupando o topo de importantes rankings. Tornou-se a cidade perfeita para nômades digitais e start-ups. Até Madonna e Michael Fassbender mudaram-se para lá. Os proprietários locais e investidores estrangeiros atentaram-se à situação e começaram a fazer seus cálculos.

“Com toda esta reverberação de Lisboa, e a mudança em sua auto-apreciação,” narra, “as pessoas se deram conta que: ‘ok, agora alugar é sinônimo de fazer rios de dinheiro.’”

Diversos locadores basearam-se na lei nacional de aluguéis, o que facilitou os despejos e converteu suas propriedades em lucrativos locais para estâncias de férias a serem alugados, principalmente através do Airbnb.

À medida que Lisboa tornou-se mais desejável, a cidade passa a ter um aumento de preços, e atrai mais especuladores. Apesar da intensa demanda, de todo o processo de reestruturação e da empreitada de novas construções, os números revelam que Lisboa perdeu seis mil moradias numa década. O censo mostra que a maioria tornou-se alojamento turístico.

“A justificativa neoliberal para a lei de locação é que se for dada maior flexibilidade para os proprietários, eles irão por mais casas no mercado,” comenta Cocola-Gant, quando lhe menciono tal proposta, “e agora, nós temos menos residências.” A situação hoje, diz ele, é uma, na qual “os preços correspondem ao poder de consumo global, e não local.”

Nem todos concordam que o fenômeno da especulação turística está ferindo os moradores. Se tantas propriedades estão escoando para o turismo, Lisboa estaria sofrendo por carência na locação, opina Filipa Roseta, Conselheira de Habitação pelo Partido Social Democrata (centro- direita). “Se você realmente olhar para os números, o grande destaque é o de 48 mil casas vazias [excluindo aluguéis turísticos]. Então, esse é o número com o qual estamos preocupados no momento.”

Considerando que 14% do estoque de habitações é um dado escandalosamente alto, Gago acredita que o conselho o usa para evitar questões legítimas sobre aluguéis de férias. “É central ter em vista que ambos são um problema. O problema do Airbnb é enorme.”

Ninguém, incluindo o conselheiro, sabe a razão para tantas casas estarem vazias. Algumas necessitam de reforma, mas a maioria possa ter sido abandonadas por especuladores e “moradores” que vem atrás do Visto Gold.

Das 320 mil habitações de Lisboa, 48 mil estão vazias, 20 mil são unidades Airbnb e, com uma procura incessante, não é de se surpreender que os preços tenham disparado quando entregues ao mercado. E isto, ao ser combinado com a ausência em Portugal de um programa de políticas de moradia, na escala do Reino Unido ou mesmo dos Estados Unidos, empurra as massas para um estado que beira a precariedade.

Há agora seis mil famílias na lista de espera da cidade. É por isso que tantos despejos foram forçados a ocorrer, com alguns bairros encolhendo um quarto desde 2011. “[O município], ao mesmo tempo que se renova, perde pessoas”, argumenta Tulumello. “Está fracassando totalmente.”

O capital captura a capital

Essa situação criou tanto ganhadores quanto perdedores. Enquanto alguns foram despejados, outros lucraram com aluguéis. Entretanto, todos sabem quem é que foi severamente afetado por essa transformação. Então, por que os políticos eleitos não tomaram medidas para acabar com isso?

Essas evidências indicam que tanto as administrações de cunho socialista e social-democrata têm agido conforme os interesses do capital. A sua ideologia dominante é a de a existência do mercado com espaço para agir, garantirá o desejado equilíbrio entre oferta e demanda.

Isso significou dar ao setor privado incentivos (redução de impostos), flexibilidade (facilitando os despejos) e até terras públicas, que a nova Ministra da Habitação, Roseta, está planejando: “Projetamos políticas que parceria do setor público e privado: as cidades fornecem a terra, e nós contratamos alguém para construir. Então, por definição, isso é mais econômico do que quando uma pessoa aluga, porque o investidor não paga pela terra.”

Embora um terço dessas casas deva ter um locatário de nível “econômico”, o claro favorecido para o qual este esquema é mais “econômico” é o investidor privado. Duas coisas motivam o porquê essa ideologia se perdura no tempo.

Primeiramente, o número de eleitores que mantém seu dinheiro no mercado imobiliário é agora significativo o suficiente para o município estar desesperado em manter os preços subindo, por mais insustentável que isto possa ser. E, embora seja um absurdo para muitos, escândalos mostram o vínculo perverso entre o capital e os partidos.

Além disso, a cultura política de tratar Lisboa como um terreno fértil para estabelecer sedes de escritórios nacionais impede o fortalecimento de um municipalismo autonomista, fenômeno expoente em Barcelona (que restringiu os aluguéis de Airbnb) e Nova Iorque (que processou empresas de petróleo).

Arrumação geral

Assim, as medidas tomadas pelo Município de Lisboa não ousaram interferir na subida de preços e no poder dos proprietários.

O Programa Renda Acessível estava destinado a criar, supostamente, sete mil aluguéis acessíveis através desta parceria público-privada. Passados sete anos, o programa criou apenas mil. O setor privado, em vez disso, atuou por conta própria, construindo apartamentos de luxo para maximizar o luxo para elites internacionais, especuladores, e nômades digitais.

Em 2020, Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, lançou um plano ousado que permitiria trazer de volta o Airbnb para o mercado de aluguéis de longo prazo. O PRP — Programa Renda Segura teve repercussão internacional por sua aproximação ao processo de “airbnbzação”.

O proprietário do Airbnb, que não tivesse solicitação de turistas para os seus imóveis, poderia alugá-lo para o Município por até mil euros por mês, durante cinco anos, recebendo ainda o adiantamento de esses aluguéis. O Município alugaria essas casas em condições acessíveis para novos inquilinos, em contratos de longa duração.

A consequência disso, explica Gago, ajudou a assegurar que “durante a pandemia, o único setor que não perca dinheiro seja o da locação de imóveis.” Os proprietários contam com um piso mínimo — financiado pelo contribuinte — ao qual poderiam recorrer, caso tivessem dificuldade em encontrar inquilinos de curta estadia. Mas a maioria não precisou recorrer a tal medida.

O turismo caiu pela metade durante a pandemia, mas não evaporou. Apesar dos festejos iniciais, o Programa trouxe menos de duzentas casas para o mercado imobiliário de longa permanência.

Como esta fórmula de rendimento turístico era muito lucrativa, a grande maioria dos proprietários de Airbnb acreditavam que eles lucrariam mais esperando pela volta dos turistas do que alugando para o Município por cinco anos. E eles tinham razão: o setor do turismo já se recuperou retornando a números pré-pandêmicos, um ano antes do que previram os analistas.

Com o PRP, Lisboa “preferiu não usar a vara, e sim a cenoura”, explica Tulumello.Esta estratégia falhou, diante da experimentada perspectiva de outra cenoura, mais suculenta”.

Na realidade, novos indícios sugerem que as casas vinculadas ao programa eram, desproporcionalmente, de má qualidade. A vereadora Roseta diz que uma moradia que o Município adquiriu pelo Programa foi recusada por trinta e sete famílias.

Ela acredita que, para evitar o vexame, (já que o programa parecia impopular), a administração anterior de Medina: “tentou adquirir tantas casas quanto possível… aceitando quase todos os candidatos. Alguns proprietários solicitaram porque não podiam deixar passar o mercado… Agora, temos casas ruins que precisam ser reformadas, e não encontramos ninguém que queira morar nelas.”

Cabo de guerra

Embora o Estado tenha aprovado algumas leis interessantes para a proteção dos direitos dos cidadãos nos contratos de aluguéis, como a de proibir despejos de pessoas idosas com mais de 65 anos, ainda seria preciso mais intervenção.

Lisboa poderia reforçar uma lei já existente, pela qual é possível expropriar diretamente residências abandonadas dos proprietários e dar-lhes nova forma enquanto habitação popular.

Segundo Cocola-Gant, embora o governo “não tenha se lembrado disso, mas sim recorrido à desculpa de que faltava dinheiro, isso é falso porque o PRS representa um corte de milhões nos impostos.” Outra solução que ele menciona para as casas abandonadas seria “obrigar os proprietários a alugarem”, a preços controlados, se quiserem manter a propriedade destas habitações.

Tulumelo questiona incentivos e intervenções: “Planejar e decidir: ‘Quantos serão os hotéis e turistas a pretendermos? ‘Quantas propriedades permanentes serão autorizadas?’ Então, o que restar deveria ser todo destinado a aluguéis residenciais, definindo regras e modulações, inclusive para contratos de longo prazo”.

“Com o fim do Visto Gold e dos programas de isenção fiscal caberiam medidas de mitigação, necessárias e de baixo custo.”

Estas são justamente as demandas de Habita!, o agrupamento de ativistas que está a desenvolver-se em Portugal. Em seu ápice, a crise catalisou o ativismo, estimulando   moradores com salários pequeníssimos a ocuparem algumas das duas mil habitações públicas abandonadas.

Isto significa que o componente básico nas mudanças, a engrenagem das prioridades, se defronta com o formidável peso do conservadorismo. Em setembro, os sociais-democratas, de centro-direita, surpreenderam até a si mesmos, conquistando a liderança do governo, encerrando 40 anos de predomínio do Partido Socialista.

Em setembro, os sociais-democratas, de centro-direita, surpreenderam até a si mesmos, conquistando a liderança do governo, encerrando 40 anos de predomínio do Partido Socialista. São inúmeras as razões, mas as pesquisas revelaram que a mudança na composição da população da cidade foi decisiva para este resultado.

Naturalmente, como há inúmeras pessoas praticamente expulsas de uma cidade apreciável, a tendência é de que permaneçam lá apenas as pessoas mais ricas. Com a perda de expressivas parcelas de sua população é muito provável que o eleitorado lisboeta venha a se reduzir mais do que no passado, assim como os mais abastados constituirão a maioria dos eleitores, mais favoráveis a medidas neoliberais.

Se as atuais políticas permanecerem como estão, este fenômeno tende a seguir ocorrendo. Isto exemplifica como a direita pode fortalecer-se na metrópole de um país.

E, apesar deste fenômeno estar a ocorrer em Lisboa, os seus mecanismos de funcionamento não são exclusivos desta cidade. A ‘airbnbzação’ de habitações atenienses e berlinenses é bem conhecida, assim como a financeirização dos imóveis de Londres e Dublin.

Emergindo agora da pandemia, Lisboa encontra-se num momento crítico. O ativismo está fermentando, mas o novo governo, distintamente dos Socialistas, “não reconhece a existência de problemas”, pontua Gago. Chegando com atraso a crise da zona do euro, além das medidas pós impacto pandêmico, é necessário encontrar outros tipos de investimentos, além dos estrangeiros. ‘Agora”, diz Gago, “voltamos para onde estávamos”.

Sobre os autores

Richard Matoušek

 é um jornalista que cobre questões sociopolíticas do Sul da Europa e da América Latina.É também pesquisador social na Kantar Public.

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Published in Análise, Capital, Cidades, Economia and Europa

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