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Go, o milenar jogo de tabuleiro de estratégia chinês, o mais antigo ainda praticado. (Foto: Wikimedia/Creative Commons)

O cálculo econômico socialista e a luta de classes na ciência

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O famoso e centenário debate mostra que enquanto a luta entre a classe capitalista e a classe trabalhadora continuar existindo, haverá uma disputa suja pelo controle daquilo que é considerado ciência econômica oficial.

O cálculo econômico socialista é uma controvérsia acadêmica centenária. Apesar de aparentar ser uma querela puramente teórica, sua contrapartida no plano da realidade política é evidente. Trata-se do processo de transformação de uma ordem econômica capitalista, baseada na propriedade privada e no mercado, em um sistema de produção e distribuição socialista, baseado na propriedade comum e no planejamento da economia. Do mesmo modo que a luta de classes em defesa de cada um desses sistemas é acirrada, o debate sobre o cálculo econômico socialista é um conflito agudo que registra numa linguagem relativamente hermética a batalha entre economistas que se alinham a um dos dois lados em combate.

No debate sobre o cálculo econômico socialista não há espaço para o meio. A solução da economia mista, uma combinação entre socialismo e capitalismo, está excluída. Isso assegura que a realidade concreta da contradição entre os interesses materiais das duas grandes classes sociais de nossa era, a de capitalistas e a de trabalhadores, não seja pulverizada no desenrolar da discussão e implementação de diversas políticas econômicas que reformam constantemente o sistema econômico em vigor.

O keynesianismo, expressão maior dessa posição ambígua, só é possível à medida que as crises são contidas por meio da manutenção de tensões que se tornam invariavelmente mais fortes com o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista. Esperava-se um retorno triunfante das ideias de Keynes com a crise de 2007-2008. O fato disso não ter ocorrido e a insistência moribunda do neoliberalismo no decadente Ocidente atestam que não há terceira via.  Sintetizando a crítica certeira ao Keynesianismo feita por Amir Hernandez, o longo prazo chegou. A polarização política, a emergência de uma nova Guerra Fria e a frenética divulgação paga de ideias econômicas alinhadas com o negacionismo científico ilustram que estamos diante da mesma bifurcação de cem anos atrás: socialismo ou barbárie?

Arte da guerra e a disputa pelo campo da oficialidade científica

O antagonismo entre duas forças que não admitem conciliação enseja analisar a questão com referência à prática da guerra. Considerando o processo dialético da relação com o oponente, percebe-se que a singularidade do problema consiste em, ao mesmo tempo, enfraquecê-lo e fortalecer a si mesmo. Isso inclui extrair informação correta do inimigo e lhe transmitir desinformação. “Toda guerra é baseada em dissimulação”, disse o famoso estrategista militar chinês Sun Tzu.

Ocorre que, no âmbito de um tratamento científico sobre posições discordantes, é incontornável que a dissimulação seja desmascarada e que as partes consigam enxergar suas respectivas situações reais. Quando nos vemos diante de uma controvérsia “altamente técnica”, cheia de jargões e conceitos complexos, fica difícil sabermos quem está do nosso lado. Sabemos intuitivamente que a questão não é meramente técnica, mas que tem muito a ver com interesses divergentes, só que ainda assim é muito complicado saber se posicionar porque os dois lados se apresentam como “defensores do povo” ou do “bem de todos” (pensemos, por exemplo, na bifurcação entre esquerda e direita que assusta muita gente).

A ciência e a educação são as gêmeas aliadas do povo. A pedagogia libertadora, ao somar nesse caldo a especificidade cultural em questão, faz a verdade aparecer, e assim, cada um/a pode se posicionar de acordo com sua própria consciência na tal polarização. Num primeiro momento, o que importa não é “vencer o debate”, mas sim descobrir ao lado de quem lutamos. Quem quer ir para a guerra sem saber de que lado está?

Por isso é tão importante que o debate sobre o cálculo econômico (assim como outras controvérsias politicamente polarizantes) não seja travado apenas no campo de batalha aberto que é a internet, por meio de blogs, vídeos, posts, memes, etc, onde as pessoas são pressionadas de modo muito súbito a tomarem posição. Essa trincheira certamente é importante, principalmente pelo alcance e pelo efeito popularizador do tema, e os socialistas brasileiros têm feito aqui um excelente trabalho, com um nível de rigor acadêmico elevadíssimo (ver por exemplo Humberto Mattos, Gustavo Machado, Everton Lourenço).

Só que para combater a caríssima máquina de fake news dos think tanks que se somam à guerra híbrida contra a classe trabalhadora no país, como bem documentado pelo trabalho de Camila Rocha, é necessário também ocupar os “espaços oficiais”, como o da grande imprensa, mas principalmente o da intercomunicação acadêmica, onde a interação com o diferente segue um padrão tortuoso de educação recíproca, orientada pela ciência, em que todos os envolvidos ganham uma percepção mais acurada sobre suas respectivas posições na sociedade. 

Travar o combate na trincheira da “oficialidade científica” é uma atividade de enorme efeito multiplicador. A classe que domina esse campo, domina tudo. Nesse sentido, o debate sobre o cálculo econômico socialista que se dá nos periódicos especializados tem uma importância crucial. Obviamente, nenhuma das plataformas de publicação científica é neutra. Contudo, o processo de ocupação do território informacional que parte da base segura de ambos os lados – ou seja, da bolha onde cada lado se sente plenamente confortável para falar livremente no idioma de sua tribo, e onde é possível propalar a panfletagem mais rasa – culmina na disputa por aquele espaço estreito de choque que simboliza a oficialidade do conhecimento.

A formação de sínteses em direção à consolidação do mainstream, da corrente principal, portanto, não significa simplesmente um acordo entre diferentes. Ela é algo inevitável conforme cada um dos lados se expande e vai empurrando o inimigo de volta para a sua base. Vence o lado que souber usar o resultado dessa mistura que acomoda contradições dos mais elevados níveis em seu próprio benefício.

Mises avança para o centro do tabuleiro

Em 1920 o debate sobre o cálculo econômico socialista se tornou uma controvérsia mundialmente conhecida devido à reação de Ludwig von Mises, um filho de magnata das ferrovias e membro de família nobre do Império-Austro Húngaro, à ideia da contabilidade econômica em espécie de Otto Neurath, um filósofo também nascido na Áustria e militante socialista que integrou o curto governo da República Soviética da Baviera no contexto da Revolução Alemã. Naquele momento de barbárie imperialista expressa na Primeira Guerra Mundial, em contraste com a força e esperança da Revolução Russa por paz, pão e terra, os inimigos do proletariado precisavam renovar a defesa ideológica do capitalismo.

Mises assumiu essa tarefa criando um raciocínio direto sobre a impossibilidade do cálculo econômico racional sob o socialismo.

Segundo ele, numa economia muito simples, como por exemplo, uma família camponesa produzindo no campo poucas (mas suficientes) variedades de produtos para sua subsistência, e com uma estrutura bem definida de divisão de trabalho entre seus membros, seria possível realizar o cálculo econômico em espécie. Quer dizer, seria possível calcular a riqueza da família contando a produção nas unidades de conta própria de cada um dos respectivos produtos (toneladas de trigo, unidades de porcos, quilos de tomate, etc), e assim proceder para a tomada de decisões corretas sobre como alocar o trabalho total da família nas diversas tarefas, a fim de atender e elevar o nível de satisfação de suas necessidades.

No caso de um sistema econômico complexo, no entanto, onde interagem milhões de indivíduos e unidades produtivas por meio do mercado, produzindo e trocando uma longa lista de bens distintos que se entrelaçam no emaranhado intrincado do circuito produtivo industrial de insumos e produtos, indo de bens de ordem inferior (bens de consumo) até bens de ordem elevada (meios de produção sofisticados), não seria possível calcular em espécie. O uso do dinheiro seria incontornável para viabilizar o cálculo econômico racional devido ao alto grau de complexidade de um sistema econômico desse tipo.

Considerando que o projeto socialista visa instituir uma ordem social e econômica de propriedade comum, ou seja, sem propriedade privada e, portanto, sem dinheiro, mantendo os ganhos de produtividade oriundos da complexidade industrial criada pelo capitalismo, Mises concluiu que o esforço de se erguer o socialismo resultará na impossibilidade de se efetuar a contabilidade econômica racional, o que levaria eventualmente à escassez e à miséria.

O efeito desse lance de Mises foi elevar o status científico do debate público a respeito da viabilidade de se construir o socialismo. Se os socialistas quisessem continuar defendendo publicamente a ordem social e econômica da propriedade comum, então eles deveriam demonstrar, com base no que se considerava ser ciência econômica à época, como a contabilidade econômica racional poderia ser feita na ausência de propriedade privada dos meios de produção.

A manobra de Mises foi um lance forte no debate justamente porque avançou para aquele espaço da oficialidade do conhecimento, ocupando um território em formação a ser classificado como “ciência econômica”. Segundo seu argumento, o socialismo não deveria ser repelido por ser autocrático, ditatorial ou repulsivo. Para ele, o problema com o socialismo não é que ele não seja politicamente desejável, mas sim que ele seria tecnicamente impossível.

Lange move as peças socialistas e domina o jogo

Após diversas tentativas frustradas de rebater a posição de Mises, foi elaborado um modelo teórico com base em todos os pressupostos sagrados do cânone que havia substituído o framework holístico, histórico e não-vulgar da Economia Política Clássica do século 19. Tal modelo foi elaborado em paralelo por diferentes autores, entre eles Frederic Taylor, Frank Knight, Henry Douglas Dickinson e Abba Lerner. Considerando o potencial de tal abordagem e aproveitando uma brecha aberta por Friedrich Hayek, que admitiu a viabilidade teórico-formal da planificação, Oskar Lange amarra as contribuições desse grupo, fundamentado-as nos trabalhos pioneiros de Léon Walras, Vilfredo Pareto e Enrico Barone, publicando um artigo em duas partes que vira o jogo para o lado dos socialistas.

A essência do contra-ataque de Lange é que ele reconhece e respeita o inimigo ao se esforçar para operar dentro dos limites de seu arcabouço metodológico. Por não violar esse arcabouço, a intervenção de Lange rapidamente conquistou status máximo no universo acadêmico Ocidental. Operando no mesmo nível conceitual do inimigo, Lange estabelece uma relação genuína de luta contra o oponente, disputando o controle do mesmo objeto: a ciência econômica tal como ela se expressa na sociedade burguesa.

Obviamente, isso não teria sido possível sem a realidade histórica da impressionante força do planejamento econômico, que se consolidava de forma específica nos três grandes sistemas que triangulavam a continuidade da Guerra Mundial (URSS, Nazi-fascismo e Ocidente liberal), e que seguiu como padrão do pensamento econômico mundial até a ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 e a queda do muro de Berlim em 1989. Em resumo, durante boa parte do século 20, a posição socialista no debate sobre o cálculo econômico manteve-se vitoriosa, tanto no plano concreto-histórico quanto no âmbito ideológico-teórico.

Os austríacos ensaiam uma virada, mas batem cabeça entre si e o socialismo segue em campo

Com o triunfo tardio do Hayekianismo, simbolizado na realização do sonho gestado na sociedade Mont Pèlerin, a situação mudou de figura. Junto com a enxurrada de propaganda pró-capitalista que declarava a vitória histórica definitiva do sistema de mercado sobre o planejamento, resgataram o argumento original de Mises. A dupla Mises e Hayek ganhou popularidade e a posição anti-socialista passou a ser vista como a vencedora do debate.

Essa situação não era, a bem da verdade, estável. Apesar da União Soviética ter realmente terminado, outras experiências reais de construção socialista continuavam vivas. A China era apenas mais uma delas que, como se constatou mais tarde, se desenvolveria e cresceria ao ponto de recolocar a questão geopolítica sobre planejamento econômico e luta de classes mundial. Além disso, havia uma tensão profunda entre as maneiras como Mises e Hayek repeliam o socialismo no plano do combate de ideias.

Para Mises a única forma de gerar as informações que permitem decisões econômicas racionais numa sociedade grande e complexa é garantir a propriedade privada dos meios de produção. Hayek, em contraste, reconhece que a informação necessária para realizar o cálculo econômico racional pode existir numa economia sem mercados, mesmo que seja extremamente difícil obtê-la (e no caso improvável de alguém conseguir obtê-las, o seu uso seria necessariamente autoritário, argumento esse que é a bala de prata desesperada de Hayek para manter sua posição contra o socialismo). Em outras palavras: o problema do cálculo econômico para Mises é um problema de propriedade, enquanto para Hayek é um problema de conhecimento.

Essa divisão interna à Escola Austríaca, em conjunto com o desenrolar da história no século 21, que vem demonstrado o contraste inegável entre o crescente obscurantismo na civilização do Ocidente e o esforço genuíno do hemisfério Oriental em levar adiante a tocha da razão (carregando com isso contradições e limites facilmente apontados por aqueles que colocam uma exigência elevadíssima sobre  a China hoje), tem viabilizado outra reviravolta no debate sobre o cálculo econômico socialista. A diferença é que agora, o que se considera ciência econômica oficial tem mudado paulatina e profundamente.

A disputa pelo controle de uma nova ciência econômica

Ainda que os departamentos de economia continuem insistindo em doutrinar seus alunos com os modelos neoclássicos simplistas de equilíbrio, olhando para o passado áureo da Física clássica, o fato é que hoje a ciência econômica já se vê sob forte influência da perspectiva do futuro, do aberto, da complexidade. Há um esforço grande em localizar esta área do conhecimento dentro das ciências em geral e de reconhecer a economia como um subsistema contido em sistemas mais gerais, que organizam conceitualmente as relações sociais estabelecidas entre seres humanos para se reproduzirem materialmente dentro da hierarquia dos conjuntos que descrevem o processo formativo do universo. Mesmo que isso ainda não represente de forma alguma a fronteira do tratamento científico das formações socioeconômicas humanas, essa nova situação descreve um novo ringue no embate entre capitalismo e socialismo.

A princípio, o declínio do poder da abordagem matematizadamente fria da economia neoclássica tem sido vibrantemente celebrado pelos adeptos da Escola Austríaca. Afinal, ao longo de todo o período anterior do debate sobre o cálculo, eles se esforçaram para se afastar do padrão de modelagem do equilíbrio walrasiano, uma vez que este fora usado para demonstrar a viabilidade do socialismo por meio da tese de similitude formal. Contudo, conforme as metodologias investigativas da ciência econômica oficial se tornam mais plurais e mais voltadas ao seu verdadeiro objeto de investigação científica (as relações sociais estabelecidas entre humanos para organizarem sua reprodução material), mais espaço se abre dentro da ciência econômica para a história, para a política, para a geografia, para a biologia, para a filosofia, para a… Totalidade. Em suma, para uma forma de investigação cada vez mais alinhada à classe trabalhadora, e portanto ao sistema de Marx. Os economistas Marxistas, portanto, também comemoram a perda de prestígio da Escola Neoclássica que remonta à síntese de Alfred Marshall.

A relação conflituosa entre a Escola Marxista e a Escola Austríaca no debate sobre o cálculo, que antes era mediada por uma terceira escola, a Escola Neoclássica mainstream, ocorre nessa nova etapa de modo direto. E, agora, não se trata mais de discutir o problema do cálculo sem encarar de frente a questão das relações de poder entre humanos que se estruturam a partir da existência de certa base tecnológica. No modelo Neoclássico mainstream, a tecnologia não é pensada em toda sua complexidade como uma relação interativa entre seres humanos no processo de criação de novas ferramentas. Assim, dentro da visão Neoclássica mainstream, a tecnologia é inteiramente observada como um problema puro de engenharia no sentido tradicional das ciências naturais, o que é inadequado para a perspectiva da ciência econômica, uma ciência social. O objeto da ciência econômica não é apenas a relação humano-natureza (o que poderia ser investigado pela perspectiva da engenharia nesse sentido tradicional), mas as relações estabelecidas entre seres humanos para se reproduzirem materialmente numa sociedade, dada uma coleção de ferramentas que expressa seu nível tecnológico.

Essa é uma definição abrangente do objeto da ciência econômica, que aproxima as Escolas de pensamento econômico Marxista e Austríaca em suas críticas ao paradigma neoclássico mainstream. Tendo essa definição como ponto de referência, a grande questão atual no debate sobre o cálculo econômico se torna a seguinte: quem está no controle da organização econômica?

Quando se observa a coisa do ponto de vista da contradição dialética, nota-se que os lados opostos no debate convergem ao apontarem que o desenvolvimento da tecnologia pode levar a sociedade a uma situação trágica onde os seres humanos são divididos em dois grupos diferentes: um que fica no controle e outro que fica controlado. A diferença é que, enquanto os Austríacos chamam o grupo controlador de “planejadores centrais”, os Marxistas os chamam de “proprietários privados dos meios de produção”. Analiticamente, entretanto, a capacidade desses seres humanos “diferenciados” de explorar os seres humanos “comuns” é exatamente a mesma. Por isso, é incontornável constatar explicitamente (deixando de lado a  etiqueta do humanismo burguês) que essa divisão se trata da divisão entre classes sociais: uma exploradora e outra explorada.

Socialismo: classe trabalhadora no controle sobre a economia e a tecnologia

A relação entre humanos, tecnologia e controle como eixo estruturador do debate sobre o cálculo começou nos anos 1960, sendo o texto de Oskar Lange chamado O computador e o mercado (Lange, 1967) um marco representativo. O economista polonês argumenta aqui que o problema da viabilidade prática do cálculo econômico sob o socialismo poderia ser resolvido com o avanço tecnológico. Naquela época os computadores realmente estavam mudando tudo, e eles continuam a fazê-lo.

A quantidade de informação e a velocidade com a qual ela é transmitida já é tão grande que o que parecia ser um problema trivial há sessenta anos atrás não deveria ser problema algum hoje. Contudo, a dificuldade do planejamento socialista não está relacionada com meros aspectos da engenharia de levantamento e transmissão de informação, como apontado corretamente (aqui o paradoxo do aprendizado recíproco entre os oponentes!) pela Escola Austríaca. A base tecnológica apenas cria a oportunidade para um sistema econômico mais humanitário. Ela não providencia automaticamente tal sistema.

Por isso, um entusiasmo irrefletido sobre as possibilidades positivas da tecnologia para o socialismo pode ser perigoso. A planificação fundamentada numa técnica ambígua sobre a dimensão da luta de classes pode facilmente ser domesticada pela força totalizante do capital, gerando uma variedade assombrosa de sustentação permanente da alienação no que chamo de “planejamento econômico de natureza capitalista”. Trata-se de uma situação em que a função-objetivo do capital – qual seja, a de performar o movimento infinito de expansão quantitativa do valor – subordina todo o aparato do planejamento para que esse próprio movimento se realize de modo organizado. O resultado é a racionalização da barbárie.

Morozov (2019) também problematiza, à sua maneira, a postura entusiasta e de certa maneira ingênua dos adeptos do que ele chama de “socialismo digital”, que têm cantado vitória no debate do cálculo nesta era de Big Data. Pegando como ponto de partida uma crítica ao sonho da salvação do capitalismo por meio dos dados, ele indica que uma estratégia socialista tradicional, tecnicista e centrista ao problema do cálculo como uma questão de dados e gestão da informação está fadada ao fracasso. A crença na digitalização para controlar toda a economia (seja socialista ou capitalista) iria reduzir todas as complexidades da coordenação social ao sistema de preços, deixando de lado maneiras alternativas de ordenar a coordenação social.

Em outras palavras: do mesmo modo que a tecnologia pode facilitar o processo de construção de uma sociedade mais humana, em harmonia com o meio natural, ela também alarga as possibilidades do fortalecimento do capital e portanto da opressão e exploração da classe trabalhadora. É essa duplicidade contraditória que deve estar no foco da análise do problema da planificação e do cálculo socialista hoje. Planificação não é sinônimo de socialismo, embora ela seja um componente importante na construção da economia socialista.

O avanço tecnológico simplesmente agudiza a contradição entre as forças produtivas do futuro e as relações sociais de produção do passado. Não é porque a tecnologia está tornando uma sociedade desejada mais fácil de construir do ponto de vista da engenharia que ela será necessariamente construída. Não há processo automático levando a um desfecho glorioso. A classe trabalhadora precisa se organizar se quiser transformar esse potencial naquilo com que sonha. Se isso falhar, nenhuma tecnologia, não importa quão avançada, vai ter a capacidade de nos salvar.

Neste ponto, o contra-argumento austríaco em relação ao otimismo socialista sobre a tecnologia como salvadora de sua causa política precisa ser levado bastante a sério. É nessa atenção e apropriação da produção científica genuína pelo inimigo, que vem a público escondida em meio a uma forte vulgarização ideológica em favor da propriedade privada, que reside a movimentação militar mais sofisticada no embate do cálculo. Separar aquilo que é vulgar do que é ciência no discurso do oponente, educá-lo, exercer o poder.

O grande ensinamento que Oskar Lange legou não foi a elaboração de modelos matemáticos de equilíbrio sem propósito político, como destacou o professor Toporowski. Não se trata de venerar o estranho, o invasor, o agressor, nem de desdenhá-lo ou ofendê-lo. A maior lição de Lange para os militantes comunistas foi sobre como se relacionar com o inimigo: identificá-lo, respeitá-lo, reconhecer suas forças, capturá-las e usá-las em benefício próprio, de modo similar ao que se dá no ritual de antropofagia (Camarinha Lopes e Marin (2023). A gênese da Antropofagia Langena. No prelo). 

Mesmo que hoje a posição socialista esteja ganhando força no debate sobre o cálculo, a História segue aberta e ainda há muito o que ser feito em termos da ampliação do controle da classe trabalhadora sobre a ciência econômica em geral. Enquanto a luta entre a classe capitalista e a classe trabalhadora continuar existindo, haverá uma disputa suja pelo controle daquilo que é considerado ciência econômica oficial. Refletir militarmente, portanto, sobre tal luta, promovendo a conscientização de classe no âmbito do pensamento econômico, é uma tarefa coletiva que deve se inspirar na paz Freiriana em contraste com a guerra Olavista.

Sobre os autores

Tiago Camarinha Lopes

é professor de economia na Universidade Federal de Goiás. Seus trabalhos incluem Technical or Political? The socialist economic calculation debate e Rejoinder: Mises's attempt to scientifically reject socialism failed (acesso ao texto completo no link contido na página)

Cierre

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Published in Análise, Economia, Política and Tecnologia

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