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Uma mulher caminha em uma rua em meio a prédios destruídos em 17 de fevereiro de 2023 em Hatay, Turquia. (Chris McGrath/Getty)

O desastre na Turquia é mais uma história sobre a ganância corporativa

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Tradução
Sofia Schurig

O terremoto que atingiu a Turquia no mês passado foi um desastre natural, mas o número catastrófico de mortos é resultado de decisões políticas que permitiram que as empreiteiras evitassem os regulamentos de segurança dos edifícios em busca de lucro.

Perseguições selvagens nas quais os criminosos tentam escapar em iates de luxo e detidos no último segundo pela polícia são geralmente cenas limitadas aos filmes. Na Turquia, porém, estas cenas aconteceram na realidade, logo após dois terremotos com 7,7 e 7,6 graus de magnitude abalaram o sudeste do país, assim como o norte da Síria.

Em fuga estavam empreiteiros como Mesut Başkır, contra os quais foi emitido um mandado de prisão por homicídio negligente. Edifícios construídos sob sua supervisão na província de Kahramanmaraş desmoronaram durante o terremoto, soterrando seus moradores.

Em 26 de fevereiro, o número oficial de mortos pelo terremoto era maior que 44 mil. Nas duas primeiras semanas após o desastre, 182 empreiteiros de construção haviam sido presos, segundo o jornal Diken. O setor de construção turco é conhecido por seu estreito envolvimento nos círculos políticos mais altos, mesmo além do regime AKP — mas até agora, nenhum político está disposto a admitir responsabilidade.

Afrouxamento na regulação

Após um terremoto em 1999, com seu epicentro em İzmit, a leste de Istambul, os regulamentos de construção foram fortificados em todo o país. Em 2018, os padrões de construção nas zonas sísmicas foram novamente ajustados. Em teoria, então, a segurança da construção é regulamentada.

Mas o número total de edifícios desmoronados, e o fato de novos edifícios, em particular, terem desmoronado como casas de cartões, sugere que a conformidade com as normas não foi verificada ou aplicada.

O poder de vistoria havia sido transferido das câmaras públicas para empresas privadas, e as chamadas “anistias de construção” foram emitidas — de acordo com Pelin Pınar Giritlioğlu, chefe da União das Câmaras de Engenheiros e Arquitetos Turcos da Câmara de Urbanistas da cidade de Istambul, para até 75 mil edifícios na zona afetada pelo terremoto no sul da Turquia.

Ao invés de sancionar edifícios defeituosos, isso isentou os responsáveis de multas. Celal Şengör, Professor de Geologia da Universidade Técnica de Istambul, chamou essas anistias de ‘assassinato‘. Na semana anterior aos terremotos, uma nova anistia estava sendo discutida no parlamento turco, e o governo esperava aumentar seu apoio ao projeto nas próximas eleições.

A combinação de um Estado de Direito erodido e a forte influência da indústria da construção civil sobre os tomadores de decisões políticas colocou em perigo vidas humanas. No caso do Farklı Yaşam Rende housing estate em Antakya, a luta legal dos moradores pela segurança na construção foi voluntariamente obstruída pelo judiciário.

O jornal local Cumhuriyet relata que as paredes portantes foram removidas dos andares inferiores de dois dos quatro blocos de construção, com a área ampliada destinada ao uso como jardim de infância.

Em maio de 2016, o advogado Coşkun apresentou uma queixa contra o construtor e o proprietário da residência, após falar com 144 famílias nos blocos. Ele solicitou ao município de Antakya a negação de permissão para os prédios.

O prefeito de Antakya na época era Ismail Kimyeci, ele próprio um arquiteto de profissão. Entretanto, nem a administração municipal, nem o gabinete do governador, nem o gabinete do Ministério Público tomaram medidas. A diretoria de educação nacional em Hatay também rejeitou o pedido da Atılğan de não aprovar o jardim de infância planejado.

No final, mais de 100 pessoas morreram nos escombros destes prédios após o terremoto. Menos do que um terremoto provavelmente poderia ter tido um efeito semelhante.

Então, por que o Estado não tomou providências?

Como revelou o jornalista Metin Cihan, tanto o construtor Fevzi Yılmaz quanto o proprietário do complexo, Arif Sami Rende, tiveram contatos no AKP. Seu presidente local, assim como o deputado Sabahat Özgürsoy Çelik da AKP, visitaram o Yılmaz em seu escritório em janeiro de 2022.

O fato de a candidatura de Atılğan à autoridade local do Ministério da Educação da Turquia não ter sido bem sucedida pode ter sido porque a operadora do jardim de infância e filha do proprietário da terra, Hülya Rende, tem vínculos com o ministro da Educação, Mahmut Özer, que ela havia ensinado como professora de ensino médio nos anos 80.

As cerimônias de abertura das residências de luxo que desde então desmoronaram foram assistidas pelo deputado AKP Çelik e outros políticos, como o prefeito de Hatay Lütfü Savaş.

Até 2013, o Savaş era membro do AKP, mas depois mudou para o Kemalist CHP, atualmente o maior partido de oposição em todo o país. Ele é prefeito da cidade de Hatay desde 2014. Para ele, demitir-se após o terremoto só seria uma opção caso todos os outros prefeitos das onze regiões afetadas também dessem este passo. O jornal Gazete Duvar informa que o proprietário de terras Arif Sami Rende foi preso no final de fevereiro.

Desde que o AKP chegou ao poder, a concessão das comissões de construção pública foi monopolizada pelas cinco grandes empresas Cengiz, Limak, Kalyon, Kolin e Makyol. Em apenas dez anos, dizem ter recebido 204 bilhões de dólares por vários projetos de construção, incluindo aeroportos, estradas e pontes.

Os protestos de Gezi em 2013 começaram como protestos contra muitos desses projetos de construção e rapidamente se tornaram a maior resistência da sociedade civil contra o Erdogan e o AKP. No grupo “Taksim Solidariedade”, planejadores urbanos, arquitetos e ativistas ambientais já vinham debatendo os riscos colocados pelo boom da construção nos anos anteriores. Algumas das principais figuras do protesto, como o urbanista Tayfun Kahraman e o arquiteto Mücella Yapıcı, foram condenados à prisão no ano passado.

Os membros da oposição se referem aos monopolistas da indústria da construção como a “Gangue dos Cinco”, e os acusam de usar parte de seus lucros para comprar influência política. Alguns deputados do AKP até tentaram proibir o termo, aparentemente depreciativo por decreto parlamentar.

“O fato de empreiteiros e construtores menores e menos influentes terem sido presos rapidamente e com a atenção da mídia após o terremoto é pura fachada.”

Figuras como Mehmet Cengiz, o fundador e presidente da empresa de construção Cengiz, não só permanecem incontestadas, mas são autorizados a fazer generosas doações na televisão para as vítimas do terremoto, que a população lhes retribui de qualquer forma como subsídios e impostos estatais.

Pode-se esperar que um governo que emite anistias para edifícios ilegais, potencialmente ameaçadores de vida, aprenda com seus erros e erga edifícios seguros no futuro? Provavelmente não.

O governo atual não garante o direito básico a uma moradia segura. A estreita associação entre empreiteiros e o regime AKP teve consequências mortais para dezenas de milhares de cidadãos, com centenas de milhares a mais de feridos, desabrigados ou tendo perdido suas famílias.

A reconstrução das onze províncias afetadas e a segurança de outras áreas potencialmente sísmicas não deve ser planejada e implementada no interesse dos lucradores da indústria da construção. Ela deve servir ao bem-estar da população — sem exceções.

Sobre os autores

Svenja Huck

é jornalista freelancer e historiadora com foco na luta de classes e na oposição política na Turquia. Ela vive atualmente em Istambul.

Cierre

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Published in Austeridade, Cidades, Europa, Notícia, Oriente Médio and Política

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