A crise política boliviana aberta em 2019 com o golpe de Estado não foi superada, mas sim tem percorrido novos caminhos. As disputas internas na principal força política do país, o MAS-IPSP, que ameaça dividi-lo em dois ou mais partidos, é um deles. Outra consequência é a agitação constante golpista que a ultradireita midiática e política provoca. Além disso, é necessário somar os efeitos de uma conjuntura econômica e geopolítica internacional, que já está se manifestando na Bolívia com pressões desvalorizantes sobre a moeda nacional devido à escassez de dólares.
Fuga de capitais e pressões de desvalorização
Em junho de 1939, o presidente German Busch teve um lapso nacionalista e emitiu um decreto que obrigava as empresas capitalistas — os grandes barões do estanho — a concentrar suas divisas por exportação no Banco Central.
A Segunda Guerra Mundial se aproximava e os preços e a demanda de minerais estavam prestes a aumentar. Pressionado pelas elites crioulas por uma decisão como essa (significava um dos primeiros ensaios de autonomia relativa do Estado em relação às classes dominantes), Busch acabou “suicidando-se” dois meses depois.
Mais tarde, em meados da década de 1940, outro militar com maiores doses de nacionalismo assumiu o governo e tentou medidas semelhantes, consideradas imperdoáveis pela “burguesia feudal”. Gualberto Villarroel acabou enforcado em um poste na Praça Murillo.
Somente a insurreição operária e popular vitoriosa de 1952 impôs as condições políticas para os exportadores concentrarem as divisas no Banco Central. No entanto, com a ofensiva neoliberal das décadas de 1980 e 1990, os capitalistas crioulos puderam obter a liberdade de levar seu dinheiro para paraísos fiscais. Essa medida em favor da burguesia rural não foi revertida mesmo após quinze anos de governo do Movimento ao Socialismo.
O cenário atual de incerteza econômica global é respondido com uma concentração monetária na Europa e nos Estados Unidos. Os bancos centrais das potências ocidentais elevaram as taxas de juros para conter a inflação. Essa medida afeta as economias dependentes de pelo menos duas formas: torna a dívida externa mais cara e faz com que as divisas das exportações dos capitais privados sejam captadas pelo sistema financeiro dos países imperialistas, agravando a tradicional fuga de capitais da periferia para o centro.
Apesar de a Bolívia ter batido um recorde de exportações em 2022 — mais de 13 bilhões de dólares —, a participação do Estado na produção diminuiu significativamente. É a burguesia da mineração (principalmente do ouro) e a agroindústria que têm reforçado seu peso econômico. Claro, isso se deve aos inúmeros benefícios concedidos pelo governo do MAS, como subsídios aos combustíveis, créditos, concessões de mineração, impostos baixos para a produção e impostos baixos para a importação de instrumentos de produção, entre outros.
Até ontem, esse padrão de acumulação escondia suas rachaduras graças ao fato de o Estado controlar um bom percentual das exportações devido ao volume da produção de hidrocarbonetos. A estagnação e a decadência desse setor, somadas ao contexto internacional crítico, estão fazendo com que o modelo semidesenvolvimentista do MAS comece a vacilar.
Em termos históricos, esses são os custos cíclicos de uma economia de capitalismo atrasado que apenas promove os ramos de produção de produtos exportáveis e é fortemente dependente da importação de tecnologia, ferramentas de produção e até de mão de obra qualificada.
Enquanto a fuga de capitais reduz sistematicamente as reservas internacionais, uma escassez de dólares estourou no país, impondo um preço paralelo que desvaloriza a moeda nacional em relação ao dólar. O Banco Central se oferece para vender dólares à taxa oficial (6,96 bolivianos por 1 USD), mas enfrenta longas listas de espera, enquanto vendedores informais e casas de câmbio aumentam discricionariamente o preço da moeda estrangeira para cifras que não eram conhecidas há muito tempo. As baixas taxas de inflação que a Bolívia tem estão ameaçadas por este aumento do preço do dólar. O governo optou por aprovar uma “Lei do Ouro” para autorizar o Banco Central a comprar o mineral dos exportadores e, assim, resolver as reservas internacionais, além de oferecer a compra do dólar mais caro aos empresários.
Certamente, o problema fundamental da economia boliviana, como o das demais economias periféricas do capitalismo, é usar a renda de divisas nas fases de expansão econômica (a Bolívia teve um crescimento sustentado por mais de dez anos) para reproduzir as relações de dependência e promover a importação de bens para as indústrias extrativas, exportadoras, agroindustriais e de consumo, perpetuando a precariedade dos demais ramos industriais. A configuração estrutural dependente e semicolonial da Bolívia não foi substancialmente modificada pelas reformas introduzidas no “processo de mudança”.
Enquanto isso, dentro do MAS, uma batalha campal foi desencadeada entre a fração autoproclamada “radical” de um lado e a facção “renovadora” do outro. Claro, nenhum militante do MAS é “radical” ou “renovador” o suficiente para pensar na nacionalização da produção de ouro ou na expropriação dos agroindustriais que financiaram o golpe de 2019. Pior ainda, a impotência política vai tão longe que nem Luis Arce, nem Evo Morales deram o menor indício de emular um ato elementar do nacionalismo histórico boliviano, que é colocar sob o controle do Banco Central as moedas que a burguesia atualmente leva para o Panamá ou a Suíça.
À beira de quebrar
Mesmo as reflexões mais bem elaboradas sobre a crise interna do Movimiento Al Socialismo (MAS) têm um tom invadido pela angústia. Por exemplo, o ex-vice-presidente Álvaro García Linera recorreu à imprensa para propor medidas que “salvassem” o MAS de uma crescente cisão: reuniões de acordo entre Luis Arce e Evo Morales, ambos renunciando à próxima candidatura em favor de novos líderes, redução das disputas e preparação de um congresso de unidade, entre outras.
Tudo isso reflete a atitude de quem vê rompidos os vínculos entre os fins e os meios de sua organização política, mas sem saber o método adequado para reconstruí-los. É como quando uma pessoa perdida na floresta sabe que precisa encontrar o caminho de casa, mas não sabe por onde começar. Na política, essa situação é ainda mais delicada.
No discurso proferido em um ato público comemorativo dos 28 anos do MAS-IPSP, Evo Morales fez críticas a seus adversários internos, com frases ásperas e carregadas de irritação, mas programaticamente indefinidas e sem projeção estratégica clara. Os “radicais” do partido são aqueles que apoiam a liderança indiscutível de Evo até as últimas consequências. Já os “renovadores” reduzem sua vocação de renovação à mudança dessa liderança. O resultado é uma disputa pelo controle do governo, que até agora tem significado apenas administrar (e não aprofundar ou revigorar) o modelo seminacionalista do “processo de mudança”, mas em um contexto econômico, político e geopolítico diferente do que foi durante o primeiro governo do MAS.
O único marco político que ambas as facções veem é o respeito ao pacto histórico firmado com as classes dominantes nativas e estrangeiras em 2009: um modelo de intervenção do Estado que não afete significativamente os negócios privados, somado a certas concessões de direitos econômicos e políticos às massas populares.
O fator crucial que torna possível esse pacto é que o MAS é um partido governista unido e majoritário, com o apoio das classes mais exploradas e oprimidas da Bolívia. Os setores mais influentes da burguesia boliviana já se manifestaram, considerando que seu acordo com o regime nascido com a Constituição de 2009 está ultrapassado, e por isso promoveram o golpe de 2019. A intenção era modificar o regime de Estado em questão, banir o MAS, desacreditá-lo e dividi-lo.
A grande questão é: o MAS será capaz de manter um “empate” com a burguesia latifundiária se se dividir em dois (ou mais) aparelhos eleitorais? Terá o MAS ou alguma de suas facções solvência suficiente para sustentar um regime político afetado pela instabilidade econômica? Essas são apenas algumas das questões que cercam o ambiente político boliviano.
Agitação de extrema direita
Em 1985, houve um presidente que fez uma exclamação assustadora: “A Bolívia está morrendo em nós.” Pouco depois, aplicou terapia de choque ao país moribundo, com grande dose de privatizações de empresas públicas, destruição de sindicatos e precarização do trabalho. Os filhos e netos políticos daquele presidente encontraram recentemente razões para uma campanha fatídica sobre uma crise econômica devido ao “excesso de gastos públicos”, “déficit fiscal” e “corrupção”.
Esses políticos de oposição de direita foram condenados por 15 anos a funcionar como adivinhos de feira para profetizar (na verdade, desejar) uma catástrofe econômica no país. Um país em ruínas e uma sociedade cansada e desmoralizada parecem ser o único cenário possível para que a direita chegue ao governo pelas urnas.
Em 28 de dezembro, o governador de Santa Cruz, até então importante opositor do governo, foi preso. Acusado de graves crimes relacionados ao seu papel como coordenador das conspirações que levaram ao golpe policial, militar, clerical e cívico em 2019, Fernando Camacho procurou garantir a impunidade através de várias manobras, entre as quais a organização de uma violenta “greve cívica” em Santa Cruz que durou mais de um mês. Durante a greve, montou grupos de choque para bloquear as principais vias da cidade, atacar bairros populares e incendiar a sede sindical da Federação de Camponeses e da Central Obrera.
Apesar de seus esforços, a mídia e a direita política não tiveram sucesso em tentar espalhar os protestos para outras cidades fora de Santa Cruz. O isolamento acabou enfraquecendo as medidas de força de Camacho e o obrigou a suspender a greve, ameaçando, sim, com mais tentativas de desestabilização no futuro. O governo Arce teve a necessidade de neutralizar os dirigentes dessa sediciosa ultradireita e assim o fez, prendendo sua principal figura.
Como ocorre em todo o mundo, a capacidade de agitação e ação da ultradireita reside em seu volume midiático. Na crise política aberta pelo golpe de Estado que levou Jeanine Añez ao poder, a extrema direita vem marcando vários pontos da agenda do país e impondo os marcos a partir dos quais se opor e questionar certas medidas do governo central.
Apesar de ser minoria na Assembleia Legislativa, as forças reacionárias derrubaram o projeto de lei “contra lucros ilícitos”, despertando o sentimento “proprietário” de vários setores da população. Com a atual escassez de dólares, estão prevendo o apocalipse e, numa mobilização setorial do sindicato dos professores, agitaram contra a “doutrinação” e a “ideologia de gênero” que o governo quer transmitir nas escolas para destruir a família.
O denominador comum de toda essa propaganda, além de se basear em uma enorme quantidade de mentiras, falsificações e meias-verdades, é o seu caráter extremista. Cada luta é considerada a batalha final, seja para salvar a “família”, os “valores” ou a “democracia”, o que implica em forçar, muitas vezes de forma desajeitada e desarticulada, qualquer mobilização na tentativa de derrubar o governo.
A capacidade de irradiação que a reação pode atingir não tem relação direta com sua liderança, se entendermos por liderança a constituição de uma força política capaz de instalar legitimidade social a partir de um projeto de país alternativo ao atual. A extrema direita não tem líderes carismáticos e nunca apresenta seu programa de governo. Quatro meses depois de ser preso, Fernando Camacho (que ainda exerce o cargo de governador de Santa Cruz de sua cela graças a um favor concedido pela Justiça) está prestes a se tornar um cadáver político, e a situação dos demais opositores é ainda pior.
No entanto, isso não anula a importância da extrema direita como uma força destrutiva. Essas forças sociais e culturais entram no campo da política não por meio de partidos em sentido estrito, mas por meio de catalisadores. Todas as suas figuras são efêmeras e seu sucesso reside sempre na capacidade de suscitar tristes paixões e frustrações entre as massas da classe média e mesmo dos setores populares.
As classes dominantes tradicionais desejam manter uma forma de capitalismo periférico baseado na exportação de bens pouco elaborados e um regime oligárquico na esfera política, em que o Estado se coloca como gestor dos negócios dos agroindustriais, banqueiros e pecuaristas. Por outro lado, o regime mais democratizante do Estado plurinacional exige um modo de produção capitalista em que o Estado tenha maior participação na economia, a fim de ampliar os direitos sociais e trabalhistas das massas e melhorar a qualidade de vida dos setores populares.
O movimento de massas plebeu é o principal obstáculo para restaurar o poder que a burguesia agroindustrial exerce na economia dentro da política. Essa mesma facção burguesa é o principal impedimento para que a democratização “formal” do regime plurinacional seja materializada a favor dos trabalhadores, no sentido social e econômico. O MAS é a ponte que conecta a convivência, mais ou menos estável, entre esses dois polos. Mas o que aconteceria se essa ligação se rompesse ou ficasse muito fraca?
Sobre os autores
Vladimir Mendoza Manjón
é docente na Universidad Mayor de San Simón