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Cena do filme Unrest. (Kim Stim Filmes, 2022)

Quando o relógio é o vilão dos trabalhadores

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Tradução
Wander Wilson

Novo filme Unrest oferece aos espectadores algo que eles não encontrariam em outros lugares: um retrato vislumbrante do processo do trabalho, um papel principal para o geógrafo anarquista Pyotr Kropotkin e uma boa explicação de como os chefes lutam contra os trabalhadores pelo controle de seu trabalho.

Antes de Pyotr Kropotkin se tornar um sinônimo para o movimento anarquista, o socialista russo foi cartógrafo e membro da Sociedade Geográfica Russa. Em 1982, afetado pela crescente onda revolucionária – particularmente pela Comuna de Paris – decidiu deixar seus estudos de lado e investigar o movimento operário com as próprias mãos, partindo para uma viagem de três meses pelo território europeu.

Neste ano, uma sucessão de pequenas cidades nas colinas das montanhas do Jura sediou o I Congresso Internacional Anarquista, parte central de sua jornada. Naqueles vales montanhosos, Kropotkin passou um tempo com trabalhadores revolucionários da Federação Anarquista do Jura, empregados nos comércios de relojoaria. A partir deste encontro, Kropotkin teorizou que a organização de um trabalho delicado criava um alto nível de desenvolvimento intelectual entre os trabalhadores. Os anarquistas não eram meros seguidores de um líder qualquer, como escreveu em uma reflexão sobre esta visita: “não há questão sobre a qual cada membro da federação não se esforce para formar sua própria opinião independente.”

A experiência deste encontro solidificou seus compromissos políticos: “A relações igualitárias que encontrei nas montanhas do Jura, a independência de pensamento e de expressão que vi se desenvolver nos trabalhadores, assim como sua devoção ilimitada à causa atraíram muito mais fortemente meus sentimentos; e quando voltei das montanhas, após uma semana entre os relojoeiros, minhas opiniões sobre o socialismo estavam estabelecidas. Eu era um anarquista.”

Retrato de Pyotr Kropotkin. (Biblioteca Digital Nadar/Gallica via Wikimedia Commons)

Unrest, do diretor suíço Cyril Schäublin, inicia com uma versão abreviada desta citação de Kropotkin. O filme, segundo longa do diretor, é uma dramatização da época de permanência do anarquista na cidade montanhosa de Saint-Imier, na Suíça. Schäublin vem de uma família de relojoeiros, como aqueles retratados no filme, e seu uso de um elenco não profissional, em grande parte local, dá à peça de época uma sensação surpreendentemente moderna. O título da película é um jogo de palavras para a pequena roda em espiral que equilibra o mecanismo no coração de um relógio: unrueh e unrest (inquietação, agitação).

Apesar do que alguns podem esperar de um filme sobre o movimento anarquista, Unrest não é um filme de ação, muito menos de violência. Silvan Hillman, diretor de fotografia, enquadra os personagens no limite das tomadas, onde eles são ofuscados pela arquitetura ao redor ou pelo cenário idílico da área, com a floresta e o céu ocupando a maior parte do quadro. Mensagens revolucionárias são trocadas em caixas de fósforos passadas entre fumantes. Membros de uma cooperativa sindical anarquista deliberaram enquanto trabalhavam, antes de votar para enviar uma parte de seus salários para trabalhadores ferroviários em greve em Baltimore.

A abordagem de Schäublin enfatiza a vida corriqueira dos participantes do movimento: eles podem ser qualquer um, em qualquer lugar; mesmo uma pequena cidade aparentemente sonolenta pode ser o coração do fermento revolucionário. No entanto, isso não quer dizer que nada aconteça em Unrest. O minimalismo do filme contrasta fortemente com a transformação histórica pela qual a área está passando.

A questão do tempo é central durante a narrativa. Saint-Imier é o lar de uma fábrica de relógios e o diretor da fábrica, Roulez (Valentin Merz), é obcecado pelo assunto. Seus gerentes acompanham os trabalhadores em estudos de tempo e movimento que lembram, para o público estadunidense, a abordagem que Henry Ford fazia em suas fábricas de automóveis. O tique-taque de um relógio costuma ser audível no cenário de uma cidade tranquila.

O interior de uma fábrica de relógios retratada pelo filme Unrest. (KimStim Filmes, 2022)

Na primeira tomada de dentro da fábrica, um gerente segura um cronômetro na mão enquanto olha por cima do ombro de uma trabalhadora. “Dezenove segundos”, diz ele, observando o tempo que ela levou para completar sua parte na montagem do relógio. Ele passa para outra trabalhadora, Josphine Gräbli (Clara Gostynski), a outra liderança de Unrest ao lado de Kropotkin (Alexei Evstratov).

“Senhorita Gräbli, você está prestes a equilibrar a roda de agitação?” Ela realiza este trabalho enquanto seu cronômetro marca o tempo da atividade. “Você precisa trabalhar mais rápido”, diz ele, aconselhando-a sobre como cortar segundos no delicado trabalho. Se ela ouvir suas instruções, explica: “você poderá aumentar sua produtividade de trabalho e aumentar consideravelmente os lucros para nós dois”. Gräbli murmura um “mm-hm”, sem se preocupar em olhar para o patrão. Em seguida, ele passa para o próximo trabalhador: “Vamos medir o tempo.”

As operárias devem realizar constantemente sua parte do processo de montagem dessa maneira, com a administração incitando-as a acelerar. “Você poderia trapacear um pouco mais”, um trabalhador repreende outro depois que a gerência se afasta, “trabalhei devagar de propósito”. Quando ela sugere que todos trabalhem mais devagar da próxima vez para não revelar ao empregador a velocidade com que o trabalho pode ser concluído, a outra mulher responde com preocupação: “Mas então eles podem nos demitir porque não produzimos suficiente.”

Esta é a tensão da época: o entrincheiramento da disciplina de trabalho minuciosamente esquadrinhada em cada segundo e uma força de trabalho não acostumada a tal controle. Embora tenha avançado em outras partes da Europa no final do século XIX, a implementação dessee controle pelos chefes de Saint-Imier ainda está em transição. O Horário Padrão ainda não foi adotado, tornando irônico que os trabalhadores cujo trabalho é produzir os mesmos itens que irão espalhar a intensificação da disciplina de trabalho sejam eles próprios residentes de uma cidade que funciona em quatro relógios diferentes: o horário da fábrica, o horário municipal, a hora do telégrafo e a da ferrovia.

A administração da fábrica de relógios faz uso desta inconsistência, como quando deduzem uma hora do salário de uma trabalhadora mais velha depois que ela se atrasa porque os correios usam o horário municipal. Como Roulez disse quando questionado por que ele não sincronizaria o horário da fábrica com o horário da ferrovia: “Meus funcionários estão oito minutos à frente de todos os outros.”

Esta questão nos traz à mente alguns testemunhos sobre os quais o historiador do trabalho E. P. Thompson se baseou em Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial. Neste artigo, Thompson cita um trabalhador de uma fábrica têxtil: “Não havia ninguém além do patrão e do filho do patrão que tivesse relógio, e não sabíamos as horas. Havia um homem que tinha um relógio… Foi tirado dele e entregue à custódia do mestre porque ele havia informado aos outros a hora do dia”. Outro trabalhador fala de manipulação semelhante: “Os relógios nas fábricas muitas vezes eram adiantados de manhã e atrasados à noite e, em vez de serem instrumentos para medir o tempo, eram usados como mantos para trapaça e opressão.”

Onde está Kropotkin nisso tudo? Quando ele chega a Saint-Imier, Gräbli se oferece para encaminhá-lo à fábrica. No entanto, estava sendo fotografado para um catálogo de vendas, e dois policiais ordenam que ele saia de cena, abrindo caminho, por assim dizer, para a expansão dos negócios. Enquanto aguardam para serem fotografados, a gerência envolvida na produção do catálogo afirma: “Hoje não se pode imaginar um homem sem um relógio na mão.”

Os policiais reaparecem ao longo do filme, sempre dizendo aos moradores para saírem de cena. O mesmo acontece com a fotografia, uma disciplina relativamente nova e moderna que está transformando a forma como a população se vê. No almoço, Gräbli e seus colegas trocam retratos fotográficos de anarquistas. Ela tem um interesse particular em um de August Reinsdorf, um anarquista alemão que tentou assassinar Kaiser Wilhelm I e foi enforcado logo depois.

Kropotkin explica aos policiais que era “geólogo e cartógrafo”, estava na cidade para mapear o vale. Embora fosse verdade, seu mapa era de um tipo particular. Especificamente, ele estava mapeando a atividade anarquista na região.

“Um mapa anarquista reflete a perspectiva da população local”, explica ele a um companheiro radical. “Ao contrário da administração e de outras autoridades, a ciência deve refletir sistematicamente as ideias das pessoas, em vez de impor ideias externas a elas.” Tal mapa, acrescenta ele, deve usar os nomes de lugares preferidos pelos locais, não aqueles dados por outros.

Uma placa na parede do escritório do telégrafo de Saint-Imier diz: “Seja breve. Seus minutos são tão preciosos quanto os nossos.” Essa atenção aos números está muito bem distribuída ao longo de Unrest: custos de folha de pagamento, o preço de uma foto, o tempo que cada trabalhador leva para montar sua peça, o número de peças que ela produz por semana, o preço de um telegrama.

A cena do telegrama é a mais engraçada do filme: Kropotkin está ali para enviar despachos subversivos a Chicago e Barcelona. Ele entrega ao despachante uma mensagem redigida em um pedaço de papel, apenas para ter como resposta que ele deve ditar o conteúdo. Isso o obriga a afirmar, com todo mundo podendo ouvir, que “o vale é sem dúvida o ponto capital do círculo de rotação anarquista internacional, introduzindo tendências antigovernamentais e anti-autoritárias na causa socialista”.

Em outro momento, enquanto Kropotkin e um colega anarquista caminham pela cidade, adicionando coisas ao seu mapa, o fotógrafo de Saint-Imier pergunta se eles gostariam de tirar fotos. “Vocês são anarquistas”, ele explica quando Kropotkin pergunta o motivo pelo qual ele quer fotografá-los. “Você pode ser famoso um dia”, então responde.

Na cena final de Unrest, o fotógrafo pergunta aos trabalhadores de fora da fábrica se eles gostariam de comprar algum retrato. Eles veem que ele possui um de Gräbli e outro de Kropotkin. Neste momento ficamos sabendo que os trabalhadores não os vêem há algum tempo. “Eles se conhecem?” pergunta um trabalhador. “Uma história de amor?” sugere outro para explicar seu súbito desaparecimento de Saint-Imier. “Talvez”, responde outra pessoa. O fotógrafo, ouvindo as especulações dos trabalhadores, vê uma oportunidade: quando eles lhe perguntam quanto dinheiro quer pelos retratos, ele aumenta o valor. Com isso, os personagens principais tornam-se lendas e recebem um preço – assim como todo o resto.

Sobre os autores

é redatora da equipe da Jacobin. Seus textos são publicados no Washington Post, Vox, the Nation, n + 1, entre outros lugares.

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