A agitação na internet é indescritível. Campanhas de marketing gigantescas, memes de todos os tipos e notícias incansáveis. Há algum tempo, nenhum filme havia alcançado tamanha repercussão em todas as bolhas de forma tão orgânica como Barbie de Greta Gerwig e Oppenheimer de Christopher Nolan. Com propostas e estéticas completamente distintas, é verdadeiramente cômico que ambas as estreias tenham ocorrido no mesmo dia.
No entanto, além das jogadas de marketing, dos bastidores e sinopses, o que realmente chamou a atenção com Barbieheimer foi algo maior.
A tendência beauty and brains (beleza e cérebro), impulsionada especialmente pelo TikTok, tem ganhado cada vez mais popularidade na internet. No entanto, esse conceito causa certo estranhamento ao sugerir que uma mulher bela não pode ser inteligente ao mesmo tempo, como se essas características fossem incompatíveis. Essa abordagem exclui a possibilidade de que a vaidade e a inteligência possam coexistir em uma mesma pessoa, perpetuando estereótipos e reforçando visões reducionistas.
As discussões sobre a beleza e suas implicações acompanham o pensamento humano desde os tempos da Grécia antiga, e um dos primeiros filósofos a explorar essa temática foi Platão. A ideia de beleza sublime e intocável, associada a uma força maior, foi amplamente debatida por Kant e Hegel, mas quando aplicamos essa noção à beleza humana, especialmente à beleza feminina, nos deparamos com questões sociais e políticas mais complexas.
Naomi Woolf esclarece em O mito da beleza:
“O mito da beleza não tem absolutamente nada a ver com as mulheres. Ele gira em torno das instituições masculinas e do poder institucional dos homens.”
Mas, será que ser belo é apenas representar um ideal alheio para terceiros? Concordando ou discordando, não podemos negar que o sentimento de bem-estar ao se sentir bonito é genuíno. Portanto, independentemente de como encaramos essa questão, seja como algo fútil ou não, não podemos negar as manifestações emocionais que ela provoca.
O cinema também proporciona um palco para essa discussão, frequentemente retratando o clichê da mulher inteligente e pouco vaidosa em contraposição à mulher bela, porém burra. Essas representações são normalmente tratadas com um viés cômico, como visto em filmes como Legalmente Loira ou nas transformações físicas das protagonistas para se encaixarem em padrões estéticos. Quando associado ao feminino, o belo é reduzido à beleza física, englobando maquiagem, cabelos perfeitos e roupas, sendo sempre visto como algo vazio e incapaz de se sustentar sozinho, criando um espaço onde as variações da personalidade não são consideradas apropriadas.
Susan Sontag, em seu ensaio Uma discussão sobre a beleza, nos diz:
“A subtração da beleza como um padrão para a arte não assinala um declínio da autoridade da beleza. Em vez disso, atesta um declínio da crença que existe algo chamado arte.”
Nesse sentido, a existência da beleza não diminui a substância ou a inteligência, mas sim aprimora aspectos como o desenvolvimento da personalidade, o humor e a sagacidade.
Será mesmo necessário ser apenas uma coisa?
Certamente, ao adentrarmos nas esferas políticas e sociais, percebemos as problemáticas envolvidas na dinâmica do belo no indivíduo, mas o autocuidado também é um ato divertido e pregar a contradição é ainda mais empolgante.
Retomando ao filme Barbie, seu trailer faz referências a clássicos do cinema como Matrix e Show de Truman, e o elenco e direção acumulam indicações ao Oscar. No entanto, ainda assim, surgiram dúvidas sobre a qualidade do filme, com pessoas se perguntando o que levou os atores a aceitarem a proposta. Isso não aconteceu com Oppenheimer. Será que essa reação é apenas devido à temática que permeia Barbie ou será uma manifestação sutil da ideia de que tudo relacionado ao feminino é visto como inferior?
Podemos citar um exemplo simples de como homens, de todas as idades, são considerados normais ao perderem o controle de suas emoções quando seu time de futebol perde uma partida, enquanto uma adolescente é rotulada de fanática por gostar de um astro da música. Tudo o que está associado ao feminino é minimizado.
Acredito que toda mulher acadêmica já se perguntou se suas roupas eram “sérias” o suficiente para serem consideradas em uma apresentação ou reunião. O simples fato de falar sobre um procedimento estético ou de se maquiar pode fazer com que seus colegas a vejam de forma diferente. Esse embate entre a estética e o padrão comportamental é bem ilustrado por Chavoso da USP, que expressa sua personalidade através de suas vestimentas e sua inteligência através de suas ações. Essa atitude, por si só, já é um ato político.
Essa é uma discussão que requer cuidado para não reforçar um aprisionamento estético em nome da liberdade. No entanto, a beleza discutida aqui não é o padrão imposto, mas sim as manifestações do autocuidado e da vaidade. A liberdade de citar qualquer aforismo kierkegaardiano e, ao mesmo tempo, estar na primeira fila de “Barbie” vestindo rosa, sem que seu intelecto seja questionado por isso.
Essa discussão pode parecer supérflua, mas, olhando com atenção, podemos ver como a estrutura patriarcal permeia todos os âmbitos da vida de uma mulher na busca pelo equilíbrio entre si mesma e o mundo exterior. A complexidade dessa dinâmica envolve ser pressionada a apresentar uma certa aparência, e quando ela é alcançada, sua profundidade interna é diminuída ou ignorada, como se fosse necessário ser apenas uma coisa. Quando um homem é vaidoso, ele é visto como alguém que se preocupa com sua saúde e autocuidado, e sua sabedoria é admirada. Já no caso das mulheres, surgem apenas dúvidas.
Uma passagem de Gaia a Ciência de Nietzsche consegue transpassar essa problemática de forma simples:
“Eu sou vários! Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado, eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou, e arriscarei estarmos juntos no mesmo plano.”
Exatamente, somos seres humanos dotados de complexidades emocionais gigantescas, e a exploração de nossa personalidade percorre caminhos tortuosos com inúmeras possibilidades e contradições.
O reducionismo intelectual feminino não passa de um dos tentáculos da manifestação da ideia da mulher como um “quase-ser”, como se ela não pudesse ser completa, embora nada lhe falte. Ou você está nessa caixa: sendo vaidosa e fútil, ou em outra: sendo apenas inteligente.
Essa recusa das reverberações do que é belo no ato do feminino talvez incentive, silenciosamente, que mulheres admiráveis se aproximem cada vez mais do masculino. E aqui não falo sobre gêneros, mas sobre arquétipos, num olhar quase semioticista. Uma mulher que não coloca sua aparência como prioridade e se vê como uma tela de pintura em branco, pronta para brincar, é vista com mais seriedade, pois esse comportamento se aproxima mais do comportamento de muitos homens.
Compreender essas peregrinações do patriarcado, as pressões estéticas e a interação do amor-próprio com essas problemáticas é um passo importante para uma consciência mais profunda da sociedade e para se divertir no processo de se expressar em cada momento da vida, sem medo de ser rotulada como inferior ou de dar importância para as coisas “erradas”.
Em resumo, como André Breton diria, “a beleza será convulsiva ou não será”, e que ela seja convulsiva em todos os seus aspectos.
Sobre os autores
Carla Queiroz
é uma estudante baiana formando-se em Psicologia e editora no Sabiá. Estuda filosofia, cultura e semiótica da comunicação.