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(Divulgação)

Tarifa zero não é uma utopia inalcançável e já é realidade

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Mobilizações das últimas duas décadas foram decisivas para consolidar a ideia de transporte como um direito social no Brasil. Não por acaso, dez anos após junho de 2013, país já tem 70 cidades com Passe Livre universal atendendo mais de três milhões de pessoas.

O texto a seguir foi publicado na 6ª edição impressa da Jacobin Brasil sobre “Esquerda e poder”. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


A Tarifa Zero, ou Passe Livre universal, é uma política pública com experiências variadas em diversos países de vários continentes do globo terrestre. O transporte público gratuito existe em centenas de cidades espalhadas ao redor do mundo. Para além do debate de sua possibilidade, devemos analisar seriamente, com base na economia política e nos conflitos sociais, como ela tem se desenvolvido para melhor compreender suas potencialidades, desafios e implicações nas relações sociais de classe, raça e gênero. Apesar de não se tratar, ainda, de uma política hegemônica no transporte coletivo, ela está em crescimento vertiginoso, talvez incontornável. Um crescimento que, mantendo sua atual tendência, pode aproximar a realidade do slogan do Movimento Passe Livre: “Por uma vida sem catracas”.

Lucio Gregori, ex-secretário municipal de Transportes de São Paulo na década de 1990 e um dos pioneiros a defender a Tarifa Zero no Brasil, costuma comparar catracas a instrumentos medievais, seja na aparência ou no propósito. Em seu livro O ônibus, a cidade e a luta (2017), o pesquisador e economista André Veloso destaca que Gregori diz que a “estrutura de ferro de mais de 20 quilos e 1,20 metro de altura é um verdadeiro instrumento medieval, na aparência e no propósito”. São estruturas pesadas que servem para controlar corpos em uma lógica perversa e colonial. Além de antiquadas, catracas atrapalham deslocamentos e são ineficientes. Funcionam tão mal que há casos em que, para impedir que pessoas pulem ou crianças passem por baixo, gestores públicos das antigas ainda teimam em improvisar prolongamentos, criando estruturas adaptadas do chão ao teto dos ônibus. Para não falar dos casos de catracas duplicadas, como visto em Maceió e Recife. Tentam limitar a passagem a todo custo, sem nem considerar que, ao fazerem isso, bloqueiam a circulação e ampliam o risco em emergências.

Catracas estão cada vez mais fora de moda no Brasil e no exterior e isso tem a ver com a consolidação da ideia da mobilidade como um direito humano, que deve ser assegurado a todos e todas. Ao contrário de controlar, segregar e bloquear encontros, a mobilidade urbana deve garantir e estimular a circulação, acessibilidade e democracia. Dez anos após junho de 2013, tal concepção ganha cada vez mais força e, no lugar das velhas barreiras físicas, multiplicam-se no país novas experiências de políticas públicas de Tarifa Zero.

No primeiro semestre de 2023 já haviam sido identificados 70 municípios brasileiros com Passe Livre universal, com mais de 3,2 milhões de pessoas beneficiadas. São quarenta e oito cidades consideradas pequenas (com menos de cinquenta mil habitantes) e vinte e duas cidades consideradas médias (com mais de cinquenta mil habitantes), das quais dez têm mais de sessenta mil habitantes. Uma lista completa está disponível na página da Coalizão Triplo Zero, frente política que reúne organizações e movimentos em defesa de Zero Tarifa, Zero Mortes no Trânsito e Zero Emissões de Poluentes. Trata-se de um conjunto de experiências concretas de gratuidade nos transportes que apresentam uma diversidade de ensinamentos para as próximas cidades que implementarem a política de direito ao transporte coletivo.

Caucaia (CE), a cidade mais populosa com Tarifa Zero universal, implementou a política em 2021 aumentando a pressão para que Fortaleza (CE) abandone as catracas. A capital encontra-se circundada por experiências importantes de passe livre, incluindo Eusébio (CE), que adotou em 2011, e Aquiraz (CE), em 2018. Não é o único caso de experiências em regiões metropolitanas. Ibirité (MG) é vizinha a Belo Horizonte (MG), Formosa (GO) integra a Área Metropolitana de Brasília (DF), Vargem Grande Paulista (SP) fica na mancha urbana de São Paulo (SP) e Governador Celso Ramos (SC) está colada em Florianópolis (SC).

Apesar de Caucaia (CE) ser a mais populosa, Maricá (RJ) segue sendo a mais relevante pelo volume e estrutura da rede estabelecida. Com Tarifa Zero desde 2014 e uma receita turbinada por royalties de petróleo, a cidade conta hoje com 38 linhas atendidas por 115 ônibus. Em 2022, foram 36 milhões de pessoas transportadas, número que deve aumentar com a criação e expansão de um novo sistema de bicicletas de compartilhamento público sem cobrança. Não por acaso, aliás, a cidade anunciou recentemente que as catracas, ainda utilizadas para contabilizar os passageiros, seriam removidas fisicamente.

O transporte hoje é compreendido como um direito social e tal conquista foi construída nas últimas duas décadas por meio das mobilizações de rua. Junho de 2013, com protestos puxados pelo Movimento Passe Livre reunindo centenas de milhares de pessoas na maior manifestação coletiva pelo direito ao transporte da história, pode ter sido o momento catártico, mas não foi o único. Antes e depois, mais mobilizações aconteceram, em uma costura de protestos, debates, estudos e pressão social decisiva para o avanço da pauta.

De 2000 a 2013, houve protestos e mobilizações registradas em mais de cem cidades espalhadas por todos os Estados brasileiros pelo direito ao transporte. Foram atos contra aumentos de tarifas, pelo passe livre estudantil, contra cortes de linhas ou pela criação de novos itinerários e, inclusive, pela Tarifa Zero. Estas lutas seguiram após 2013, com maior ou menor intensidade, a despeito das disputas e apropriações indébitas da força expressa nas ruas.

Atualmente continua a haver protestos quando a tarifa aumenta, normalmente recebidos com repressão e violência. Em 2023, Carapicuíba (SP), Guarulhos (SP) e João Pessoa (PB) estão entre as cidades que reagiram a aumentos com manifestações nas ruas. Mesmo quando a tarifa sobe às escondidas, como aconteceu em Curitiba (PR), capital na qual a cobrança chegou a impossíveis R$ 6, houve protestos e pressão para reversão. A cultura de luta pelo transporte é um legado direto das mobilizações realizadas nas décadas anteriores, ainda que não sejam pauta prioritária da maioria das organizações da esquerda.

Junho de 2013 foi determinante para a aprovação da Emenda Constitucional 90, que alterou o artigo 6º da Constituição Federal, colocando o transporte como um direito social que deve ser garantido pelo Estado. A pressão social das duas últimas décadas foi decisiva para frear aumentos, mobilizar outros setores da sociedade e abrir caminho para ampliação de subsídios, reduções tarifárias, gratuidades para estudantes e construção de políticas públicas específicas. Nos últimos três anos, a Tarifa Zero se consolidou como uma tendência sólida que se dissemina com velocidade.

“Dez anos após junho de 2013, tal concepção ganha cada vez mais força e, no lugar das velhas barreiras físicas, multiplicam-se no país novas experiências de políticas públicas de Tarifa Zero.”

Além das políticas de Passe Livre universal já mencionadas, há também experiências parciais, com capitais e grandes cidades de diferentes estados fazendo testes ensaiando a Tarifa Zero. Palmas (TO) chegou a suspender a cobrança de passagens entre 2 de fevereiro e 6 de março de 2023, em uma fase de adaptação ao assumir a gestão do serviço, antes privatizado. Após este período, manteve a gratuidade total aos fins de semana. Em Maceió (AL), desde abril de 2022, não há cobranças aos domingos. Em Florianópolis, as cobranças foram suspensas nos fins de semana de dezembro e janeiro. Em Volta Redonda (RJ), foi estabelecida uma linha livre para melhor conectar a zona comercial da cidade. Recentemente, mais capitais anunciaram publicamente estudos de viabilidade: Cuiabá (MT), Fortaleza (CE), São Paulo (SP) e Teresina (PI). Há iniciativas de parlamentares para discutir e defender a implantação no Distrito Federal (DF), Campo Grande (MS) e Curitiba (PR). A Tarifa Zero definitivamente entrou na agenda nacional com até mesmo políticos conservadores defendendo a medida. Na maior cidade do Brasil, o tema deve ser central nas próximas eleições com o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e seu principal opositor, o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), disputando a pauta. Nunes passou a defender a medida pressionado pelo presidente da Câmara dos Vereadores da cidade, Milton Leite (UNIAO), e o presidente do MDB, o deputado Baleia Rossi, concedeu entrevistas anunciando que a Tarifa Zero seria a bandeira nacional do partido para as eleições municipais.

Por que estamos vivendo nessa situação?

Temos três caminhos complementares para compreender este fenômeno. O primeiro, fundamental deles, é o da conquista social. Estamos diante de uma expressão plena do Direito (ao transporte) Achado na Rua, no melhor espírito do pensamento do jurista Roberto Lyra Filho. A teoria subversiva (e profundamente humanista) do pensador de que o Direito e, por consequente, a Justiça não devem se limitar às normas legais parece se concretizar com perfeição nesse caso. É nos atos, nos protestos e na revolta de quem cansou de pagar caro para acessar ônibus e trens sucateados, que a ideia de Transporte como Direito se consolidou nas últimas décadas e que a perspectiva de Justiça Social na mobilidade ganhou força. As ruas levaram a mudanças nas leis e não o contrário. O Direito foi conquistado, não concedido.

As manifestações modificaram o tecido do conflito social da mobilidade. A conquista do transporte como direito transformou o cenário institucional e as formas de operacionalização deste serviço. Basicamente, estamos em um interregno do transporte coletivo como Mercadoria (derrotado nas ruas) e a Política Pública gratuita e universal de um Sistema Único Mobilidade (forma institucional de organização do Direito).

À decorrência das lutas sociais se associa o segundo elemento, a crise econômica do setor de Empresas de Transporte. A dificuldade política de aumentar tarifas, por conta dos protestos, soma-se também a elementos como a migração de muitos trabalhadores para o transporte individual (em função das políticas de crédito, do status do automóvel e da ineficiência do transporte coletivo), a concorrência com o transporte por aplicativos, a dificuldade de pagar tarifas de amplos setores da classe trabalhadora em crise econômica (ficando completamente excluídos da mobilidade motorizada) e, por fim, a drástica redução das viagens em consequência da COVID-19. O negócio altamente lucrativo de explorar o transporte urbano entrou em crise, retração de lucros e endividamento. Este cenário levou as próprias empresas a buscarem um novo modelo de negócio.

Por fim, um conjunto de gestores, governantes e organizações aderiram à pauta da Tarifa Zero por verem nela uma solução mediada para o conflito econômico e político da mobilidade. O Passe Livre Universal aparece como medida que possibilita simultaneamente render-se à conquista do direito à mobilidade, porém reorganizando modelos de negócio capitalista. Além disso, o legado conecta-se com as agendas da crise climática, novas tecnologias para reduzir e até zerar emissões de poluentes e preocupações globais com as formas de mobilidade, produção e circulação. Um prato cheio para as agendas internacionais.

Estas adesões não tratam, necessariamente, da proposta de Tarifa Zero originalmente formulada por movimentos sociais classistas, antirracistas, antipatriarcais, com perspectivas revolucionárias. A luta pelo direito ao transporte congregou nas últimas décadas setores anticapitalistas que realizaram lutas amplas e que influenciaram diretamente as lutas sociais do país. A conquista do direito abre, porém, um horizonte contraditório.

Estamos falando, explicitamente, de um cenário de cooptação de uma pauta. Ou, então, de recuperação capitalista de uma luta da classe trabalhadora. Trata-se, porém, da cooptação de uma vitória. Só estamos nessa contradição porque houve êxito no período anterior.

Mais que isso: o ciclo de mobilizações pelo transporte não depende necessariamente de seus marcos legais. A adoção do transporte como um direito e, inclusive, a implementação de um Sistema Único de Mobilidade melhoram o cenário institucional das lutas. Porém, a contradição da circulação nas cidades ultrapassa barreiras de classe, raça e gênero que persistem e ainda requerem de muito esforço para serem plenamente derrubadas. As lutas recentes, pelo seu caráter amplo de ação direta e expressão na rua, forjaram mais democracia de base, naquilo que o cientista político Jean Tible chama de Política Selvagem: onde a revolta atualiza a democracia e materializa o comum.

Com cooptação por parte de empresas aliadas a políticos conservadores ou não, é melhor lutar para melhorar o pior modelo de Tarifa Zero do que resistir ao melhor dos modelos baseados nas catracas. Os movimentos que construíram o Passe Livre no Brasil têm diversas perspectivas, mas certamente é marcante o vínculo com perspectivas heterodoxas das décadas recentes. O Zapatismo sempre foi referência direta dessas organizações. Inspirados em suas declarações da Selva Lacandona, cremos que poderemos elaborar uma ampla e profunda resposta a este dilema com nossa posição Abaixo, à Esquerda e Sem Tarifas. Por um mundo sem catracas.

Sobre os autores

é jornalista e autor do livro "Passe Livre – As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização" (Autonomia Literária, 2019).

Paíque Santarém

é doutorando em Arquitetura e Urbanismo na UnB e militante do Movimento Passe Livre.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Cidades, Legislação, Política, Quer que eu desenhe?, REVISTA and Revista 6

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