Neste verão, eu seriamente considerei abandonar meu envolvimento com a política. Exausto com a sobrecarga de trabalho, incapaz de agir produtivamente, eu me vi à deriva pelas redes sociais, sentindo crescer minha depressão e exaustão.
O twitter daqueles de “esquerda” pode por vezes ser uma zona miserável e desanimadora. No começo do ano, haviam algumas “tempestades” no twitter bem high-profile, onde certas figuras particulares que se identificam com a esquerda eram “convocadas” e condenadas. O que essas figuras disseram era por vezes censurável; mas ainda assim, o modo como estes foram pessoalmente vilipendiado e perseguidos deixou um resíduo horrível: o fedor da má consciência e a caça às bruxas morais. A razão pela qual eu não me pronunciei em nenhum desses incidentes, envergonho-me em dizer, foi o medo. Os bullies estavam em outra parte do playground. Eu não quis atrair a atenção deles para mim.
A selvageria aberta destas trocas fora acompanhada por algo mais penetrante e por esta razão, talvez mais debilitante: uma atmosfera de ressentimento sarcástico. O objeto mais frequente deste ressentimento é Owen Jones e, os ataques à Jones – a pessoa mais responsável por trazer consciência de classe para o Reino Unido nos últimos anos – fora uma das razões eu fiquei tão deprimido. Se isto é o que acontece com alguém da esquerda que está conseguindo levar a luta ao terreno central da vida britânica, por quê alguém iria segui-lo para o mainstream? Seria manter-se na posição de impotência marginal o único modo de evitar este gotejo de abuso?
Uma das coisas que me retirou deste torpor depressivo foi ir à Assembleia do Povo (People’s Assembly) em Ipswich, perto de onde moro. A Assembleia do Povo tem sido recebida com escárnio e rosnados. Isso era, como nos fora dito, uma façanha inútil onde a mídia esquerdista, incluindo Jones nesta, estavam se engrandecendo em mais outra demonstração “top-down” da cultura das celebridades. O que realmente ocorreu na Assembleia em Ipswich foi bem diferente desta caricatura. A primeira metade da tarde – culminando num despertante discurso de Owen Jones – fora certamente conduzido pelos convidados do alto escalão. Mas a segunda metade da reunião viu ativistas da classe trabalhadora de todo Suffolk falando uns com os outros, apoiando uns aos outros, compartilhando experiências e estratégias. Longe de ser mais um exemplo de esquerdismo hierárquico, a Assembleia do Povo foi um exemplo de como a vertical pode ser combinada com a horizontal: o poder midiático e o carisma poderiam atrair pessoas que não haviam estado em uma reunião política na sala, onde poderiam conversar e fazer estratégias com ativistas experientes. A atmosfera era antirracista e antissexista, mas refrescantemente livre do sentimento paralisante de culpa e suspeita que paira sobre o Twitter de esquerda como uma névoa acre e sufocante.
Depois, veio Russell Brand. Eu há tempos tenho sido um admirador de Brand – um dos poucos comediantes de grande nome na cena atual que veio de uma classe trabalhadora. Nos últimos anos, tem havido um gradual “emburguecimento”, sem remorsos, da comédia na televisão, com absurdo ultra-esnobes (“ultra-posh”) nincompoop Michael McIntyre e uma mistura chorosa lúgubre de incapazes gradualmente dominando o palco.
O dia anterior à agora, famosa entrevista da Brand com Jeremy Paxman que fora transmitida no Newsnight, eu o tinha visto num show de stand-up no Messiah Complex em Ipswich. O show foi desafiadoramente pró-imigrantes, pró-comunismo, anti-homofóbico, saturado de inteligência da classe trabalhadora e sem medo de mostrá-la, e ‘queer’ no sentido como a cultura popular costumava ser (ou seja, nada a ver com a cara azeda de piedade identitária impingida sobre nós pelos moralistas da “esquerda” pós-estruturalista). Malcolm X, Che, a política como um desmantelamento psicodélico da realidade existente: este era o comunismo como algo legal, sexy e proletário, em vez de um sermão de sacudir os dedos.
Na noite seguinte, ficou claro que a aparição de Brand tinha produzido um momento de divisão. Para alguns de nós, a derrubada forense de Brand à Paxman era intensamente movente, milagrosa; eu não conseguia me lembrar da última vez que uma pessoa advinda da classe trabalhadora havia sido dado o espaço para destruir tão consumadamente uma classe “superior” usando a inteligência e a razão. Este não foi Johnny Rotten xingando o Bill Grundy – um ato de antagonismo que confirmou, em vez de desafiar os estereótipos de classe. Brand tinha ultrapassado Paxman – e o uso do humor foi o que separava Brand da rigidez de tanto “esquerdismo”. Brand faz com que as pessoas se sintam bem consigo mesmas; enquanto a esquerda moralizante se especializa em fazer as pessoas se alimentarem mal, e que não se dá por feliz até que as suas cabeças estejam dobradas em culpa e em auto-aversão.
A esquerda moralizadora rapidamente assegurou que a história não era sobre a ruptura extraordinária de Brand das convenções do “debate” sem graça da mídia convencional, nem sobre sua alegação de que a revolução iria acontecer. (Esta última afirmação só pôde ser ouvida pela “esquerda” narcisista pequeno-burguesa de ouvidos tapados, enquanto Brand dizendo que queria liderar a revolução – algo que eles responderam com ressentimento típico: “Eu não preciso de uma celebridade exaltada para me conduzir ‘.) Para os moralizadores, a história dominante deve ser sobre a conduta pessoal de Brand – especificamente o seu sexismo. Na atmosfera febril de McCarthyite fermentada pela esquerda moralizante, observações que poderiam ser interpretadas como sexistas significam que Brand é um sexista, o que também significava que ele é um misógino. Simples assim, terminado, condenado.
É justo que Brand, como qualquer um de nós, responda pelo seu comportamento e pela linguagem que usa. Mas esse tipo de questionamento deve ocorrer em uma atmosfera de camaradagem e solidariedade, e provavelmente não em primeiro lugar em público – embora quando Brand foi questionado sobre o sexismo por Mehdi Hasan, ele exibiu exatamente o tipo de humildade bem-humorada que era inteiramente inexistente nos rostos pétreos daqueles que o julgaram. “Eu não acho que sou sexista, mas eu me lembro de minha avó, a pessoa mais amorosa que eu já conheci, mas ela era racista, mas eu não acho que ela soubesse. Eu não sei se tenho alguma ressaca cultural, sei que tenho um grande amor pela linguística proletária, como ‘darling’ (“querida”) e ‘bird’ (“jovem mulher atraente”), então se as mulheres pensam que eu sou sexista, elas estão em melhor posição para julgar do que eu, então vou trabalhar nisso”.
A intervenção de Brand não era uma tentativa pela liderança; foi uma inspiração, um chamado por pegar em armas. E eu me senti inspirado. Há alguns meses antes, eu ficaria em silêncio enquanto os moralistas da ‘PoshLeft’ (da Esquerda Esnobe) sujeitaram Brand a seus tribunais kafkaescos e assassinatos de caráter – com “evidência” geralmente recolhida da imprensa de direita, sempre disponível para dar uma mão – mas desta vez eu estava preparado para enfrentá-los. A resposta a Brand rapidamente tornou-se tão significativa quanto a troca com Paxman. Como Laura Oldfield Ford apontou, este foi um momento de esclarecimento. E uma das coisas que foi esclarecida para mim foi a maneira em que, nos últimos anos, tanto da auto-denominada “esquerda” suprimiu a questão da classe.
A consciência de classe é frágil e passageira. A pequena burguesia que domina a academia e a indústria cultural tem todos os tipos de deflexões sutis e preempções que impedem que o tema se aproxime, e então, se ele surge, eles fazem pensar que é uma impertinência terrível, uma violação de etiqueta ousar sustentá-lo. Eu tenho falado agora em eventos de esquerda, anticapitalistas por anos, mas eu raramente falei – ou fui pedido para falar em público – sobre classe.
Porém, uma vez que a classe ousou reaparecer, era impossível não vê-la por todas as partes nas respostas dadas ao caso de Brand. O mesmo foi rapidamente julgado e/ou interrogado por pelo menos três ex-alunos de esquerda de escola privada. Outros nos disseram que Brand não podia realmente ser da classe trabalhadora, porque ele era um milionário. É alarmante o número de “esquerdistas” que pareciam concordar fundamentalmente com o movimento atrás da pergunta de Paxman: “O que dá a essa pessoa da classe trabalhadora a autoridade para falar?” É alarmante, realmente angustiante, que parecem pensar que a classe trabalhadora deve permanecer na pobreza, na obscuridade e na impotência, para que não percam a sua “autenticidade”.
Alguém me passou um post escrito sobre Brand no Facebook. Eu não sei quem foi o indivíduo que escreveu, e eu não gostaria de nomeá-los. O que é importante é que o post foi sintomático em relação a um conjunto de atitudes esnobes e condescendentes que, aparentemente são boas de se exibir quando uma pessoa se classifica como alguém de esquerda. O tom inteiro era horrorosamente despótico, como se fossem um professor que marcasse o trabalho de uma criança, ou de um psiquiatra avaliando um paciente. Brand, aparentemente, é “extremamente instável … um relacionamento ruim ou um revés profissional o afastam do colapso para voltar à toxicodependência ou algo pior”. Embora a pessoa afirme que eles “realmente gostam bastante dele [Brand]”, talvez nunca lhes ocorrera que, uma das razões pelas quais Brand poderia ser “instável” é justamente por conta desse tipo de “avaliação” faux-transcendente (“falso”-transcendente) paternalista da burguesia de “esquerda”. Há também um chocante, mas revelador lado, onde o indivíduo casualmente refere-se à “educação cheia de remendos” de Brand que “muitas vezes induz a deslizes de vocabulário característicos do autodidata”- que, estes indivíduos generosamente dizem: “Eu não tenho problema algum com isto” – que ótimo da parte deles! Este não é um burocrata colonial escrevendo sobre suas tentativas de ensinar alguns “nativos” a língua inglesa no século XIX, ou um mestre de ensino vitoriano em alguma instituição privada descrevendo o que é um menino de bolsista, trata-se da escrita de um “esquerdista” de algumas semanas atrás.
Para onde ir daqui? Em primeiro lugar, é necessário identificar as características dos discursos e os desejos que nos levaram a este caminho sombrio e desmoralizante, onde a classe desapareceu, mas o moralismo está em toda parte, onde a solidariedade é impossível, mas a culpa e o medo são onipresentes – e não porque estamos aterrorizados pela direita, mas porque permitimos que os modos burgueses de subjetividade contaminem nosso movimento. Eu acho que existem duas configurações libidinal-discursivas que trouxeram essa situação. Eles se chamam de esquerda, mas – como o episódio com Brand deixou claro – eles são em muitas maneiras um sinal de que a esquerda – definida como um agente da luta de classes – tem quase desaparecido.
Dentro do castelo do vampiro
A primeira configuração disto é o que eu chamei de Castelo dos Vampiros. O Castelo dos Vampiros é especializado na propagação da culpa. É impulsionado pelo desejo de sacerdócio de excomungar e de condenar, pelo desejo do pedantismo acadêmico de ser o primeiro a ser visto detectando um erro, e pelo desejo hipster de ser um dentre os influentes do clubinho. O perigo em atacar o Castelo dos Vampiros é que ele pode parecer – e fará tudo o que for possível para reforçar esse pensamento – que, também está atacando as lutas contra o racismo, o sexismo e o heterossexismo. Mas, longe de ser a única expressão legítima de tais lutas, o Castelo dos Vampiros é melhor entendido como uma perversão liberal-burguesa e apropriação da energia desses movimentos. O Castelo dos Vampiros nasceu no momento em que a luta para não ser definida por categorias identitárias tornou-se a busca de ter “identidades” reconhecidas por um Grande Outro burguês.
O privilégio que eu certamente tenho como homem branco consiste, em parte, em eu não estar ciente da minha etnia e do meu gênero, e é uma experiência sóbria e reveladora ocasionalmente tomar consciência desses pontos cegos. Mas, ao invés de buscar um mundo no qual todos consigam libertar-se da classificação identitária, o Castelo dos Vampiros procura encurralar as pessoas de volta para o “identi-camps” (“campos de identidades”), onde são definidas para sempre nos termos estabelecidos pelo poder dominante, aleijados pela autoconsciência e isolados por uma lógica de solipsismo que insiste que não podemos entendermos uns aos outros, a menos que pertençamos ao mesmo grupo de identidade.
Observei um fascinante mecanismo de projeção-desautorização que magicamente inverte a simples menção de classe, tornando-a agora automaticamente como uma tentativa de rebaixamento da importância da raça e do gênero. Na verdade, trata-se exatamente do caso oposto, pois o Castelo dos Vampiros usa uma compreensão fundamentalmente liberal de raça e gênero para ofuscar a noção de classe. Em todos as absurdas e traumáticas “chuvas de twits” sobre privilégio que houveram no início deste ano, era perceptível que a discussão de privilégio de classes estava totalmente ausente. A tarefa continua, como sempre, a ser a articulação de classe, gênero e raça – mas o movimento fundador do Castelo dos Vampiros é a des-articulação da classe de outras categorias.
O problema que o Castelo dos Vampiros foi criado para resolver é o seguinte: como você mantém uma imensa riqueza e poder enquanto também mantém a aparência de vítima, de marginal e oposicionista? A solução já estava lá – na Igreja Cristã. Assim, o C.V. recorre a todas as estratégias infernais, patologias obscuras e instrumentos psicológicos de tortura inventados pelo cristianismo, e que Nietzsche descreveu em A Genealogia da Moral. Este sacerdócio da má consciência, este ninho de culpados piadosos, é exatamente o que Nietzsche predisse quando disse que algo pior do que o cristianismo já estava a caminho. Agora, aqui está …
O Castelo dos Vampiros se alimenta da energia, das ansiedades e das vulnerabilidades dos jovens estudantes, mas sobretudo vive transformando o sofrimento de determinados grupos – e quanto mais “marginal”, melhor – em capital acadêmico. As figuras mais louvadas no Castelo dos Vampiros são aquelas que transformam-se num novo mercado de sofrimento – aqueles que conseguem encontrar um grupo mais oprimido e subjugado do que qualquer um dos explorados anteriormente passam a ser promovidos muito rapidamente à frente dos outros neste ranking.
A primeira lei do Castelo dos Vampiros é: individualizar e privatizar tudo. Enquanto na teoria ele afirma ser a favor da crítica estrutural, na prática nunca se concentra em nada exceto no comportamento individual. Alguns destes tipos de classe operária não são terrivelmente bem educados, e podem ser muito rudes às vezes. Lembre-se: condenar os indivíduos é sempre mais importante do que prestar atenção às estruturas impessoais. A classe dominante atual propaga ideologias do individualismo, enquanto tende a agir como uma classe. (Muito do que chamamos de “conspirações” são a classe dominante demonstrando solidariedade de classe.) O CV, como os enganadores-servos da classe dominante, fazem o contrário: pagam o lábio à “solidariedade” e à “coletividade” enquanto agem sempre como se as categorias individualistas impostas pelo poder realmente se sustentassem. Porque são fundamentalmente pequeno-burgueses, os membros do Castelo dos Vampiros são intensamente competitivos, mas isto é reprimido de maneira passivo-agressiva, que é típica da burguesia. O que os mantém unidos não é a solidariedade, mas o medo mútuo – o medo de que eles sejam os próximos a ser excluídos, expostos e condenados.
A segunda lei do Castelo dos Vampiros é: fazer o pensamento e a ação parecerem muito, muito difíceis. Não deve haver leveza, e certamente nenhum humor. O humor não é sério, por definição, certo? Pensamento é trabalho duro, para pessoas com vozes esnobes e sobrancelhas franzidas. Onde há confiança, introduzir o ceticismo. Diga: não se apresse, temos que pensar mais profundamente sobre isso. Lembre-se: ter convicções é opressivo, e pode levar aos gulags.
A terceira lei do Castelo dos Vampiros é: propagar tanta culpa quanto puder. Quanto mais culpa, melhor. As pessoas devem se sentir mal: é um sinal de que eles entendem a gravidade das coisas. NÃO HÁ PROBLEMA ALGUM ser de classe privilegiada se você sentir culpa pelos privilégios e se você colocar outros em uma posição de classe subordinada para sentirem-se culpados também. Você faz algumas boas ações para os pobres, também, não é mesmo?
A quarta lei do Castelo dos Vampiros é: essencializar. Enquanto a fluidez da identidade, da pluralidade e da multiplicidade sejam sempre reivindicadas em nome dos membros do C.V. – em parte para encobrir seu próprio fundo invariavelmente rico, privilegiado ou burguês-assimilacionista -, o inimigo deve ser sempre essencializado. Uma vez que os desejos que animam o C.V. são em grande parte os desejos dos sacerdotes de excomungar e condenar, deve haver uma forte distinção entre o Bem e o Mal, sendo o último essencializado. Notem as táticas. X fez uma observação / comportou-se de uma maneira particular – estas observações / este comportamento pode ser interpretado como transfóbico/sexista, etc. Até então, tudo bem. Mas é o próximo passo que é o “golpe”. X então, se define como um transfóbico/sexista, e etc. Toda a sua identidade torna-se definida por uma observação mal-julgada ou por uma deslize de conduta. Uma vez que o C.V. reuniu a sua caça às bruxas, a vítima (muitas vezes de origem operária e não educada na etiqueta passiva-agressiva da burguesia) pode ser incitada a perder a paciência, garantindo ainda mais a sua posição de pária, logo, mais próximo a ser consumido no frenesi da devoração.
A quinta lei do Castelo dos Vampiros: pense como liberal (porque você é um). O trabalho do C.V. de constantemente inflamar o ultraje reativo, consiste em apontar sem parar e gritantemente, o óbvio: o capital se comporta como capital (não é muito bacana!), os aparelhos de estado repressivos são repressivos. Devemos protestar!
Neo-anarquia no Reino Unido
A segunda formação libidinal é o neo-anarquismo. Por neo-anarquistas eu definitivamente não quero dizer anarquistas ou sindicalistas envolvidos na organização real do local de trabalho, como por exemplo a Federação da Solidariedade (Solidarity Federation). Quero dizer, aqueles que se identificam como anarquistas, mas cujo envolvimento na política se estende pouco para além dos protestos e das ocupações dos estudantes, e que segue comentando sobre tudo isto no Twitter. Como os moradores do Castelo dos Vampiros, os neo-anarquistas geralmente vêm de um pano de fundo pequeno-burguês, se não de alguma classe ainda mais privilegiada.
Eles são também esmagadoramente jovens: nos seus vinte anos ou, no máximo, nos seus trinta e poucos anos, e o que lhes informa a posição neo-anarquista é um estreito horizonte histórico. Os neo-anarquistas não experimentaram nada senão o realismo capitalista. No momento em que os neo-anarquistas alcançaram à consciência política – e muitos deles chegaram à consciência política assustadoramente recentemente, dado ao nível de arrogância otimista que algumas vezes exibem – o Partido Trabalhista tornou-se uma concha Blairista, implementando o neoliberalismo, com um pequena dose de justiça social logo ao lado. Mas o problema com o neo-anarquismo é que reflete impensadamente esse momento histórico, ao invés de oferecer qualquer fuga dele. Ele esquece ou talvez, seja realmente inconsciente, do papel do Partido Trabalhista na nacionalização de grandes indústrias e de utilidades, ou na fundação do Serviço Nacional de Saúde. Os neo-anarquistas afirmarão que “a política parlamentar nunca mudou nada”, ou que o “Partido Trabalhista era sempre inútil” enquanto participam de protestos pela S.N.S., ou ‘retweeting’ queixas sobre o desmantelamento do que resta do Estado de bem-estar social. Há uma estranha regra implícita aqui: é “OK” protestar contra o que o parlamento tem feito, mas não é “OK” entrar no parlamento ou na mídia de massa, para tentar desenvolver a mudança a partir daí. A mídia tradicional deve ser desprezada, mas o “Momento das perguntas da BBC” deve ser visto e reclamado pelo Twitter. O purismo obscurece ao fatalismo; é melhor não ser de modo algum corrompido pela corrupção do mainstream, melhor para “resistir” inutilmente do que arriscar sujar suas mãos.
Não é de se surpreender, então, que tantos neo-anarquistas mostrem-se como deprimidos. Esta depressão é, sem dúvida, reforçada pelas ansiedades da vida pós-graduada, uma vez que, como o Castelo dos Vampiros, o neo-anarquismo tem seu lar natural nas universidades e é geralmente propagado por aqueles que estudam para as qualificações de pós-graduação ou aqueles que recentemente se formaram nestes estudos.
O que há de ser feito?
Por que essas duas configurações vieram à tona? A primeira razão é que eles foram autorizados a prosperar pelo capital porque servem aos seus interesses. O capital subjugou a classe trabalhadora organizada, decompondo a consciência de classe, subjugando viciosamente os sindicatos e seduzindo as “famílias de trabalhadores” a se identificarem com seus interesses estreitamente definidos, ao invés dos interesses da classe mais ampla; mas por que o capital se preocupa com uma “esquerda” que substitua a política de classe por um individualismo moralizante e que, longe de construir solidariedade, espalha medo e insegurança?
A segunda razão é aquilo a que Jodi Dean chamou de capitalismo comunicativo. Poderia ter sido possível ignorar o Castelo dos Vampiros e os neo-anarquistas, se não fosse pelo ciberespaço capitalista. A devota moralização do CV tem sido uma característica de uma certa ‘esquerda’ por muitos anos – mas, se alguém não fosse um membro desta igreja em particular, seus sermões poderiam ser evitados. A mídia social indica que este não é mais o caso, e há pouca proteção contra as patologias psíquicas propagadas por esses discursos.
Então o que podemos fazer agora? Em primeiro lugar, é imperativo rejeitar o identitarismo e reconhecer que não há identidades, apenas desejos, interesses e identificações. Parte da importância do projeto de Estudos Culturais Britânicos – revelado de maneira tão poderosa e tão emocionante na instalação de John Akomfrah, chamada “The Unfinished Conversation” (atualmente no Tate Britain) e de seu filme “The Stuart Hall Project” – deveria ter resistido ao essencialismo identitário. Em vez de congelar as pessoas em cadeias de equivalências já existentes, o ponto era tratar qualquer articulação enquanto provisória e plástica. Novas articulações sempre podem ser criadas. Ninguém é essencialmente nada. Infelizmente, a direita age sobre este insight de maneira mais efetiva do que a esquerda. A esquerda burguesa-identitária sabe propagar culpa e conduzir uma caça às bruxas, mas não sabe fazer convertidos. Mas isto, afinal, não é o ponto. O objetivo não é popularizar uma posição de esquerda, ou conquistar pessoas em nome dela, mas sim, permanecer em uma posição de superioridade de elite, que agora com superioridade de classe redobrada também pela sua superioridade moral. “Como você se atreve a falar – somos nós que falamos por aqueles que sofrem!”
Mas a rejeição do identitarismo só pode ser alcançada pela reafirmação da classe. Uma esquerda que não tem a classe em seu núcleo, só pode ser um grupo de pressão liberal. A consciência de classe é sempre dupla: envolve um conhecimento simultâneo da maneira como uma classe enquadra e molda todas as experiências e, um conhecimento da posição particular que ocupamos na estrutura de classes. Deve ser lembrado que, o objetivo de nossa luta não é o reconhecimento pela burguesia, nem a destruição da própria burguesia. É a estrutura de classes – uma estrutura que fere a todos, mesmo aqueles que materialmente lucram com ela – que deve ser destruída. Os interesses da classe trabalhadora são os interesses de todos; os interesses da burguesia são os interesses do capital, que são os interesses de ninguém. Nossa luta deve ser em nome da construção de um mundo novo e surpreendente, não da preservação de identidades moldadas e distorcidas pelo capital.
Se isso se parece com uma tarefa proibitiva e assustadora, é porque é. Mas podemos começar a nos engajar em muitas atividades pré-figurativas agora. Na verdade, tais atividades iriam para além da pré-figuração – elas poderiam iniciar um ciclo virtuoso, uma profecia autorealizável onde os modos burgueses de subjetividade são desmantelados e uma nova universalidade começa a se construir. Precisamos aprender, ou reaprender, como construir a camaradagem e a solidariedade em vez de fazer o trabalho do capital para ele, condenando e abusando uns aos outros. Isto não significa, naturalmente, que devamos sempre concordar – pelo contrário, devemos criar condições em que o desacordo possa ocorrer sem medo de exclusão e excomunhão. Precisamos pensar muito estrategicamente sobre como usar as mídias sociais – lembrando sempre que, apesar do igualitarismo reivindicado pelas mídias sociais e pelos engenheiros libidinais do capital, este é atualmente um território inimigo, dedicado à reprodução do capital. Porém, isso não significa que não possamos ocupar o terreno e começar a usá-lo para fins de produção de consciência de classe. É preciso romper com o “debate” que o capitalismo comunicativo, no qual o capital está incessantemente nos encorajando a participar e, lembrar que estamos envolvidos numa luta de classes. O objetivo não é “ser” um ativista, mas ajudar a classe operária a ativar – e se transformar. Fora do Castelo dos Vampiros, tudo é possível.
Publicado primeiramente no site do Lavra Palavra
Sobre os autores
escrevia o blog k-punk e escreveu Realismo Capitalista (Autonomia Literária 2020), Ghosts of My Life (Zero, 2014) e The Weird and the Eerie (Repeater, 2017).