No domingo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma condenação contundente ao genocídio de Israel em Gaza. Falando numa reunião da União Africana na Etiópia, Lula acusou Israel de cometer um genocídio que só pode ser comparado ao Holocausto.
“O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestiniano não aconteceu em nenhum outro momento da história. Na verdade, aconteceu: quando Hitler decidiu matar os judeus.”
Apontando para os ataques brutais de Israel contra civis em Gaza, Lula acrescentou: “Não é uma guerra de soldados contra soldados. É uma guerra entre um Exército fortemente preparado e mulheres e crianças.”
Previsivelmente, Israel acusou os comentários de Lula como antissemitas. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu descreveu o paralelo de Lula com o Holocausto como “vergonhoso e sério”, enquanto o ministro dos Negócios Estrangeiros, Israel Katz, anunciou que Lula é “uma persona non grata em Israel” até que retire os seus comentários.
Mas Lula se recusou a se curvar. Na segunda-feira, o Brasil expulsou o embaixador israelense e chamou de volta o seu embaixador de Tel Aviv, encerrando assim todas as relações diplomáticas com Israel.
A trágica ironia é que a declaração de Lula apenas confirma o que os políticos israelenses têm dito ao longo dos últimos quatro meses, e cujas declarações genocidas foram citadas como prova contundente na audiência de genocídio do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) no mês passado. Os próprios políticos israelenses e seus generais confirmaram abertamente o genocídio em Gaza, prometendo transformar a faixa sitiada em Auschwitz e Dresden, e até celebrando tais atrocidades.
Em outubro do ano passado, um antigo membro e vice-presidente do Knesset [parlamento israelense] exigiu: “Existe uma e apenas uma solução, que é destruir completamente Gaza antes de a invadir… Quero dizer, destruição como ocorreu em Dresden e Hiroshima, sem arma nuclear.” Em novembro, o ministro da Economia israelense, Nir Barkat, disse: “Não me lembro da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos, no final da Segunda Guerra Mundial, terem bombardeado Dresden, pensando nos residentes.” Em dezembro, um responsável israelense exigiu que Gaza fosse “completamente arrasada, tal como acontece hoje em Auschwitz”.
“O número de mortos em Gaza aproxima-se dos 30 mil civis, metade dos quais são crianças, com quase 2 milhões de outros deslocados.”
Esta não é a primeira vez que Lula condena os crimes de guerra de Israel em Gaza. Em outubro passado, poucas semanas após o início do genocídio em Gaza, Lula tornou-se um dos primeiros líderes mundiais a exigir um cessar-fogo, dizendo que “as pessoas inocentes de Gaza não devem pagar o preço pela insanidade daqueles que querem a guerra”. Em novembro, depois de Israel ter sitiado o maior hospital de Gaza, Lula declarou que “a atitude de Israel com as crianças, com as mulheres, é equivalente ao terrorismo. Não há outra maneira de colocar isso.” E acrescentou: “Se eu sei que um lugar está cheio de crianças, mesmo que haja um monstro lá dentro, não posso matar as crianças só porque quero matar o monstro”.
Em meio aos pesados ataques aéreos israelenses contra Gaza naquele mês, o Brasil se tornou um dos primeiros países a receber refugiados palestinos de Gaza. Ao receber os refugiados resgatados na Base Aérea de Brasília, na capital, Lula acusou Israel de matar pessoas inocentes sem qualquer critério, o que descreveu como “violência brutal e desumana contra pessoas inocentes”.
Como líder do Sul Global, o governo Lula abriu o caminho na América Latina ao responsabilizar Israel pelos seus crimes de guerra em Gaza. Em janeiro deste ano, o Brasil apoiou o caso de genocídio da TIJ na África do Sul contra Israel, que mais tarde confirmou como “plausível genocídio” em Gaza. Uma declaração oficial destacou o papel de Lula na decisão: “O presidente expressou seu apoio à iniciativa da África do Sul de levar Israel perante a TIJ para determinar que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados na Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.”
Os comentários de Lula no fim de semana são o culminar do seu apoio de longa data à Palestina.
Antigo compromisso com os palestinos
Em março de 2010, Lula fez uma visita histórica a Israel e à Palestina. Falando no Knesset, ele lembrou aos líderes israelenses que os colonos judaicos ilegais na Cisjordânia e em Jerusalém estavam destruindo as perspectivas de paz na Palestina. Lula recusou-se a visitar o túmulo de Theodor Herzl, o pai do sionismo político moderno, em Israel. Em vez disso, visitou Ramallah, onde depositou uma coroa de flores no túmulo do falecido líder palestino Yasser Arafat.
Num discurso apaixonado, apelou à criação de um Estado palestiniano independente: “Sonho com uma Palestina independente e livre que viva em paz no Médio Oriente”.
Em dezembro daquele ano, o governo Lula anunciou o reconhecimento do Estado palestino. Doou terrenos em Brasília para a construção de uma embaixada palestina, nomeou um enviado especial e abriu um Escritório de Representação em Ramallah. Num gesto de solidariedade, Lula assinou cinco acordos bilaterais com o governo palestino, abrangendo os setores de agricultura, educação, esportes, saúde e turismo. O reconhecimento da Palestina pelo Brasil levou a um efeito cascata na região, à medida que os vizinhos Argentina, Bolívia e Equador se juntaram ao Brasil no reconhecimento do Estado palestino naquele ano, com Chile, Peru, Uruguai e outros seguindo o exemplo um ano depois.
“O apoio de Lula à causa palestina remonta a décadas. Como líder sindical na década de 1980, durante a ditadura militar, Lula via a questão da Palestina como uma luta entre oprimidos e opressores.”
Lula também levou a causa palestina aos fóruns internacionais. Os seus discursos na ONU estão repletos de defesas da Palestina como um “Estado nacional livre e soberano” e de condenações aos “crimes e violações de Israel contra os palestinos”. Num discurso memorável em abril do ano passado, durante uma visita oficial a Espanha, Lula lamentou que, embora a ONU tenha criado Israel em 1948, graças ao Plano de Partição, “em 2023, não consegue criar um Estado Palestiniano”. Falando no Cairo na semana passada, Lula reiterou o seu compromisso com a criação de um Estado palestino soberano.
O apoio de Lula à causa palestina remonta a décadas. Como líder sindical na década de 1980, durante a ditadura militar, Lula via a questão da Palestina como uma luta entre oprimidos e opressores. Manteve relações formais com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) através do Partido dos Trabalhadores (PT) e cultivou uma relação pessoal com Arafat. Isto marcou o início de um legado forte e duradouro de solidariedade com a causa palestina no Brasil, abrangendo partidos, sindicatos e movimentos populares que apoiam firmemente a causa da libertação palestina. (Esta semana o Brasil terá a oportunidade de apresentar a sua posição perante a TIJ, uma vez que o tribunal está preparado para analisar pela primeira vez as consequências jurídicas da ocupação de Israel durante décadas, do apartheid e da opressão do povo palestino, onde os países estão se preparando para apresentar os seus argumentos e destacar as violações dos direitos palestinos por parte de Israel, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade.)
A clareza moral de Lula sobre Gaza surge no meio da vergonhosa cumplicidade ocidental – para não mencionar a cumplicidade árabe – no genocídio de Israel e nos crimes de guerra em Gaza. Lula falou enquanto o governo Biden se preparava para enviar um novo carregamento de armas para Israel, ao mesmo tempo que ameaçava vetar uma nova resolução de cessar-fogo na ONU (os Estados Unidos já fizeram essa ameaça). Ainda na semana passada, um dia depois dos massacres em Rafah, o Senado dos EUA aprovou um generoso pacote multibilionário de ajuda militar a Israel.
John Kirby, porta-voz de segurança nacional da Casa Branca, prometeu que “continuaremos a apoiar Israel, apesar de Rafah”. Falando na Casa Branca, o presidente Joe Biden referiu-se aos massacres de Rafah como “a nossa operação militar em Rafah”. Para aqueles que testemunharam a cumplicidade do governo Biden no genocídio de Israel em Gaza nos últimos quatro meses, o seu erro soou mais do que um lapso. (Lula visava claramente os EUA quando declarou na semana passada: “O direito de veto deve acabar, e os membros do Conselho de Segurança da ONU devem ser atores pacifistas e não atores que promovem a guerra.”)
O número de mortos em Gaza aproxima-se dos 30 mil civis, metade dos quais são crianças, com quase 2 milhões de outros deslocados. Enquanto Israel se prepara para a invasão terrestre de Rafah, onde cerca de 1,5 milhões de palestinianos deslocados se abrigam – ameaçando uma nova ronda de genocídio e limpeza étnica – as palavras de Lula servem como um aviso para os horrores que estão por vir. Como escreveu Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, em solidariedade a Lula na segunda-feira: “Ser declarado persona non grata por um governo genocida que massacra crianças é um privilégio que reafirma o compromisso com a vida e a paz perante a comunidade internacional e os povos do mundo”.
Sobre os autores
é o autor de "The History and Politics of the Bedouin".