Jornais e televisões foram os primeiros a se engalanar de forma acrítica com os arbítrios da Lava Jato e saudaram, como prova do vigor da democracia, a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com base em delações. Agora, quando a acusação contra Jair Bolsonaro se refere a crimes contra a democracia em si mesma, fruto de seus próprios discursos e reuniões, a grande mídia ressalta prudência, insinua vingança e questiona frontalmente a legalidade dos atos do Supremo Tribunal Federal (STF).
O aceno da imprensa, em exercício súbito de um pretenso legalismo seletivo, funcionou como gatilho para que o próprio Bolsonaro se sentisse à vontade para enfrentar a decisão judicial nas ruas. Da última vez que esteve com seus correligionários na avenida Paulista, chamou de canalha o ministro Alexandre de Moraes e jurou ignorar as decisões judiciais -mais um elemento de que, de fato, praticamente nada que se descobre sobre o ex-presidente nas investigações sigilosas seja propriamente uma novidade escondida. Isso não serve para isentá-lo, apenas para nos confrontar com os longos espaços de pusilanimidade com que vimos convivendo.
O dever de julgar
A dúvida levantada pelas manchetes, pelos editoriais ou por especialistas convidados é a de que ainda que o ex-presidente tenha querido e articulado se perpetuar no poder mesmo sem ganhar as eleições, isso não teria saído da esfera da cogitação ou, no máximo, de atos meramente preparatórios. Assim, ele não teria nem sequer iniciado a execução da tentativa de restringir o exercício dos poderes constitucionais ou de depor um governo eleito, com emprego de violência ou grave ameaça.
Mas a realidade é um pouco diferente.
É preciso compreender que estamos diante de um ato complexo, um conjunto de discursos públicos, reuniões conspiratórias, preparação de medidas jurídicas e estímulos a violências e ameaças que pretenderam desconstruir a eleição, os resultados e a sucessão legítima. Não apenas uma “bala de prata”, disparada num único dia.
“Estivemos a ponto de ter, novamente, a democracia suprimida – e é justamente pelo seu insucesso que temos a condição política e jurídica de julgar esses atos. Mais do que a condição, o dever.”
É esse conjunto de atos que configura a tentativa posta em execução para constranger o processo democrático. Estivemos a ponto de ter, novamente, a democracia suprimida – e é justamente pelo seu insucesso que temos a condição política e jurídica de julgar esses atos. Mais do que a condição, o dever.
Sequencia de crimes
Quando nos deparamos com o resultado apertado da eleição, parece inconsequente a conclusão a que o ex-presidente chegou, com as informações públicas e privadas de que dispunha: a de que não tinha chance efetiva de ganhar a eleição. Mas revendo os fatos públicos que marcaram o episódio e agora, os privados, de que tivemos conhecimento pelas investigações da Polícia Federal (PF), é exatamente que isso ocorreu.
Bolsonaro chegou a exteriorizar o discurso da fraude de forma oficial na reunião com os embaixadores, que lhe custaria a elegibilidade futura. Em momentos anteriores, ele já havia questionado a legitimidade das urnas eletrônicas, inclusive em lives repletas de fake news e denunciações caluniosas. Mas na reunião oficial, o presidente da República anuncia ao país e ao mundo que o resultado da eleição será ilegítimo, porque as urnas estariam fraudadas e sinaliza que não pretende reconhecê-lo.
Politicamente, este ato gerou diversas repercussões. Internamente, um movimento que colheu mais de um milhão de assinaturas e um ato na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, reprisando a histórica Carta aos Brasileiros. Externamente, que pode ter sido ainda mais eficaz para deter a intentona golpista, acenos de diversos países, encabeçados pelos EUA, de apreço e respeito a nosso pleito e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“A reunião nos revela que o discurso público de Bolsonaro faz parte de uma lógica de conspiração golpista – o governo foi convidado a encontrar meios de burlar o resultado.”
Hoje sabemos que a reunião pública não era apenas para transmitir uma bravata. Era um sinal inequívoco de que o governo colocava em andamento sua plataforma golpista. Assistimos à reunião do ministério, em que Bolsonaro deixa claro que não tem condições de ganhar a eleição e estimula seus assessores a encontrar mecanismos para superar a situação.
Seu ministro da Defesa quis expor publicamente a comissão eleitoral que teria sido constituída “para inglês ver”; seu chefe da CGU quis se unir às forças contrárias junto com a Polícia Federal (PF); seu ministro do Gabinete Institucional quis usar a inteligência para se infiltrar nas campanhas. A reunião nos revela que o discurso público de Bolsonaro faz parte de uma lógica de conspiração golpista – o governo foi convidado a encontrar meios de burlar o resultado.
O papel dos militares no plano golpista
Publicamente, Bolsonaro afirma que suas pretensões estão “dentro das 4 linhas da Constituição” – mas o que ele quer dizer aqui é que ela vale, sobretudo, pelo art. 142, cuja enviesada interpretação pretende conferir às Forças Armadas um suposto e inexistente poder moderador, na beligerância entre os poderes. Ou seja, o golpe reside justamente na criação de uma situação insustentável que exija a tomada de decisão dos militares. Este é o centro nevrálgico da tentativa de supressão dos poderes instituídos e a ele o presidente e seus ministros se dedicam com louvor. Antes, como sugere o general Augusto Heleno, ou mesmo depois, como performa o general Braga Netto.
O roteiro está traçado: é preciso deslegitimar a eleição, pelo discurso do presidente, pelos produtores de fake news, pelas dúvidas do ministro da Defesa, para que o resultado do pleito não se imponha. Na crise, reside a chance de instar os militares a que decidam a parada.
Portanto, dois pilares importantes dessa supressão eleitoral: gerar o tumulto e convencer os comandantes militares.
As conversas vazadas, sobretudo de Braga Netto e o ajudante de ordens Mauro Cid, mostram que o segundo lado do golpe estava avançado: ou seja, não se tratava apenas de convencer comandantes militares, mas de pressioná-los mesmo. Não é à toa que se mencionam ações diante da residência de um comandante, que, pela resistência, é chamado de “cagão”. Ainda faltava a primeira perna.
“O presidente se recusa a reconhecer a derrota, se esconde durante os bloqueios pós-eleitorais e, quando aparece, estimula acampamentos nos quartéis – o que já era um crime por si só.”
Antes, é importante dizer que o governo nunca desistiu de tentar ganhar o processo eleitoral no tapetão – além de diversos casos de abuso de poder político e econômico (alguns já apreciados), uma criminosa obstrução de eleitores nordestinos, região em que o adversário tinha vantagem expressiva, foi empreendida por intermédio de blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Mas em nenhum momento Bolsonaro desarmou a tentativa, que já estava em andamento, de criar a crise e convencer as Forças Armadas a resolvê-la. Criar a crise foi envolvendo várias condutas seguidas. O presidente se recusa a reconhecer a derrota, se esconde durante os bloqueios pós-eleitorais e, quando aparece, estimula acampamentos nos quartéis – o que já era um crime por si só.
O discurso das “quatro linhas”, o apego às Forças Armadas para decidirem o futuro, é bom observar, é intrinsecamente violento: forças militares só teriam capacidade de intervir sobre os poderes justamente porque são armadas. Todo pleito ao Exército para que intervenha é uma ameaça sobre as eleições e, findas, sobre o resultado.
Os acampamentos eram criminosos, ainda, porque buscavam jogar as Forças Armadas contra os poderes constituídos. Mas eles são estimulados expressamente pelo presidente da República e pelo ex-ministro candidato a vice, que sugere que os apoiadores tenham calma e não desistam. E não desistam, porque o intuito de criar a crise para o recurso aos militares continua posto em movimento.
“Bolsonaro se recusa a passar a faixa, porque precisa manter aceso o discurso da ilegitimidade, que é justamente o que irá alimentar o 8 de Janeiro.”
A criação da crise e a concretude do golpe
Não se trata apenas de um mero pensamento negativo, porque o discurso político nunca foi um elemento isolado. Esteve embutido na conspiração. É discutido e compartilhado por assessores e aliados que agem no sentido de construir a opção: preparam minutas de decreto, pressionam comandantes, monitoram adversários, alimentam a confusão.
O golpe está em andamento, ainda que aparentemente sem condições de êxito.
Todos os momentos de cristalização do resultado eleitoral são questionados, de modo a que a criação da crise se mantenha ao longo do tempo. Bolsonaro não reconhece a derrota e a situação política é de tal monta preocupante, que os ministros do TSE resolvem antecipar a diplomação dos eleitos – e nesse dia uma baderna violenta se impõe em Brasília em ataques diretos à sede da PF. Uma bomba no aeroporto para explodir na véspera do Natal acaba sendo desarmada. O caos vai aumentando de proporção.
Bolsonaro se recusa a passar a faixa, porque precisa manter aceso o discurso da ilegitimidade, que é justamente o que irá alimentar o 8 de Janeiro. E esse ato violento só se viabiliza porque, premeditadamente, o secretário de segurança do Distrito Federal desarma os mecanismos de proteção. A Praça dos Três Poderes passa a ser um convite para a multidão que para lá se dirigia. E quem é o secretário que desarma a segurança? O ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, com quem primeiro foi encontrada a minuta do golpe, uma das provas inequívocas da conspiração.
“Os crimes de atentado não admitem tentativa. A tentativa é o crime. O início da execução é o que basta para sua consumação.”
Esse percurso golpista, portanto, é um complexo de ações que envolveram discurso, organização, conspiração e violência. O que esteve em jogo é a legitimidade do processo eleitoral, a afirmação própria da democracia e, por consequência, a posse regular do governo eleito.
A tentativa de um crime também é um crime
Bolsonaro e comparsas jogaram na ilegitimidade da eleição e na criação de crise que justificasse o apelo à ação militar. Ao mesmo tempo em que buscavam convencer e pressionar comandantes, preparavam as medidas jurídicas para a assunção do poder, monitorando seus adversários. Estimularam a pressão dos apoiadores sobre os militares e fragilizaram a segurança para que o caos se instalasse e justificasse uma ação de força.
Como entender que tudo isso não passou de mera cogitação?
Os crimes de atentado não admitem tentativa. A tentativa é o crime. O início da execução é o que basta para sua consumação. De toda a forma, não é possível condenar Bolsonaro por antecipação. Os elementos trazidos indicam suficiência para a instauração da ação penal. E que o ex-presidente tenha, dentro das quatro linhas do sistema de justiça, todas as condições para exercer sua defesa.
O resto é política. Ou uma forma disfarçada de anistia.
Sobre os autores
é Desembargador do Tribunal de Justiça de SP e escritor. Autor de “Os Paradoxos da Justiça. Judiciário e Política no Brasil” (Contracorrente) e “Os Últimos Réus. Crônicas do Crime” (Autonomia Literária).