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(Reprodução)

Uma casa ocupada é uma casa encantada

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Novo livro apresenta os registros arquitetônicos de casas ocupadas na cidade de Belo Horizonte entrelaçados com as histórias de vida de seus moradores e a luta por moradia - realizando uma cartografia construída pela perspectiva dos de baixo.

“A geografia, em suas relações com o homem, não é mais do que a história no espaço. Do mesmo modo, a história é a geografia no tempo.”
Eliseé Reclus, O homem e a Terra, tomo 1


O mapa de um Estado traça as linhas que dão visibilidade à ilusão das fronteiras nacionais. Como num truque de prestidigitação, ele se impõe, e atrai tudo para si, fazendo desaparecer a diferença, as multiplicidades de povos e vidas, exercendo sua força inerentemente etnocida.No entanto, como as ervas que brotam e fazem rachar o pavimento urbano, as raízes das árvores que insistem em romper as calçadas, a vida anseia por viver, mesmo diante dessa máquina de moer gente articulada aos fluxos de capital. Casa encantada – um retrato da luta por moradia em Belo Horizonte, livro de Baruq lançado pela editora GLAC, pertence a estas linhas de resistência que fazem a vida brotar contra este cemitério de vivos chamado capitalismo.

O livro retrata 20 casas históricas ocupadas de Belo Horizonte, cidade onde mais de 100.000 pessoas vivem em cerca de 80 ocupações. Baruq registra estas casas com desenhos realizados a partir de fotografias ou de uma análise por meio do GPS do Google. Se nossas movimentações são rastreadas, mapeadas e registradas pelas grandes empresas, e nossos dados roubados a todo momento, Casa Encantada faz uso dessas ferramentas para grafar memórias, afetos e as histórias de vida construídas pelos de baixo, trazendo também textos e entrevistas com moradores destas ocupações.

Ocupação Vida Nova. Desenho de Baruq.

Algumas das ocupações retratadas foram iniciadas de forma autônoma durante a pandemia da Covid-19, período em que as narrativas sobre ir ou não para rua mediante a emergência sanitária, e uma aposta cada vez maior no jogo eleitoral, começaram a se consolidar no que se chama “esquerda”.

A importância destes registros está em mostrar que a luta para uma vida que valha a pena ser vivida passa ao largo do Estado, de seus jogos representativos, e acontece todos os dias por aqueles que Louise Michel chamava de “os deserdados”. 

Não foi o  Estado que cedeu o chão que possibilitou a emergência de uma vida mais digna,  mas a ação direta dos de baixo, valendo-se da solidariedade como arma, ocupando casas abandonadas e prefigurando outros mundos possíveis neste amontoado de ruínas chamado capitalismo. Como escrito por Baruq:

“Quem se dispõe a desafiar a lei, seja participando do capitalismo ilegal (tráfico de drogas e o crime organizado), seja na luta social contra a lógica da propriedade privada, dificilmente pode contar com a lei para garantir sua segurança contra as ações dos outros agentes que atuam fora da lei. Muitas vezes, nossos laços e nossa autodefesa são tudo o que temos.”

Baruq faz parte do coletivo da Kasa Invisível, ocupação localizada nas proximidades da praça Raul Soares, região que divide o centro de Belo Horizonte do bairro Lourdes, um dos metros quadrados mais caros da cidade. Cartografar a partir dos de baixo é também se colocar do ponto de vista de quem luta. O primeiro lançamento do livro foi realizado na própria Kasa Invisível, em março de 2024, durante as comemorações de onze anos do território ocupado. O evento trouxe a fala e a presença de pessoas importantes para a luta das ocupações na cidade, seguindo-se de uma conversa com Avelin Kambiwá, do Comitê Indigena Mineiro, mostrando a articulação das lutas por terra e território a partir de uma rede autônoma das lutas sociais.

Ocupação Kasa Invisível. Foto de Cadu Passos.

Ao entrelaçar os registros dos espaços com as histórias de vida das pessoas que os habitam, Casa Encantada nos apresenta uma vida que parte da terra. Uma história contada de maneira relacional, fora da separação que objetifica uma natureza inerte para ser explorada. Terra, arquiteturas, plantas, expectativas, frustrações, laços de apoio mútuo, tudo passa a ser articulado nesta forma de narrar que investe contra os processos de individualização, formando histórias coletivas, sem deixar de pontuar o que há de singular nas pessoalidades. Muito mais do que ser apenas o registro local destas lutas, o livro nos instiga a contar nossas próprias histórias contra a imposição planificadora de um urbanismo estatal que ergue as metrópoles sufocando rios, árvores e demais vidas. 

Mapa anarquista

A construção do livro se aproxima de uma tradição formada pela geografia anarquista. Em 1905, Eliseé Reclus constrói o mapa dos povos de toda a Rússia, buscando mostrar os laços federalistas que vinculavam uma multiplicidade de povos, além das delimitações arbitrárias e coloniais de um Estado-nação.

Uma cena do filme Unrest traz a fala do geógrafo Piotr Kropotkin sobre o que seria um mapa anarquista: “Um mapa anarquista reflete a perspectiva da população local. Ao contrário da administração e de outras autoridades, a ciência deve refletir sistematicamente as ideias das pessoas, em vez de impor ideias externas a elas.” São formas de cartografar, assim como a proposta de Casa Encantada, que  pensam a construção de mapas desde baixo, contra a imposição das linhas de autoridade do Estado.

O ato de ocupar casas históricas deixadas em ruínas por herdeiros nos mostra nossa própria vida sob um mundo em ruínas. A construção do capitalismo e do Estado que domina o território brasileiro não aconteceu sem o genocídio colonial, esse banho de sangue que sustenta um cemitério de vivos e se prolonga ainda hoje no extermínio dos povos indígenas, pessoas pretas, periféricas, dissidentes de gênero. Casa encantada parte desta perspectiva, inserida nas lutas por terra e território, e nos lembra que outros mundos existem, outras formas de viver estão sendo construídas desde hoje, com dores, mas também com o encantamento que faz brotar a vida sem temer as ruínas. Um livro produzido desde uma ocupação, em redes de solidariedade, desde baixo, que não teme afirmar que que sua proposta é o conflito.

Sobre os autores

é antropólogo e pesquisador. Trabalha como acolhedor, redutor de danos e professor de cursos de extensão no PROAD - UNIFESP e faz parte do coletivo que organiza a FLIPEI.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Arquitetura, Cidades and Livros

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