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A pirâmide que tudo vê nas notas de dólar (Getty Images)

Como doações bilionárias subverteram a democracia nos Estados Unidos

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Depois do recorde de gastos de campanha em 2020, novamente o poder econômico aparece como fator decisivo nas eleições americanas, mostrando a verdadeira face da política no país: um duelo de bilionários, interesses e corporações gigantescas, divididos em dois partidos - o que tem de ser superado urgentemente.

As eleições americanas de 2024 eram pura monotonia, com o repeteco envelhecido da disputa entre Joe Biden e Donald Trump. Contudo, eventos alucinantes mudaram o processo da noite pro dia. Desde o famoso debate, que acabou com as chances de Biden, até sua desistência e substituição pela vice Kamala Harris, passando pelo atentado que quase matou Trump, agora temos um filme de Tarantino, com toques de David Lynch.

Enquanto as redes sociais brasileiras são tomadas por batalhas campais sobre o que isso significa – sobretudo na esquerda –, o fato é que não há método de análise do que jogar luz sobre a composição dos partidos e os interesses que os movem. Para além da falta de democracia, com o processo reduzido a dois partidos, o sistema eleitoral complexo e um método de votação que não chegou ao século XXI, o ponto fundamental é o financiamento de campanha, o bom e velho siga o dinheiro.

Nesse sentido, é assustador perceber os valores envolvidos e como isso, no fim das contas, determina o que será, na prática, o próximo governo dos Estados Unidos. Em um país onde tudo é pago – e muito bem pago –, as eleições não poderiam ser diferentes, com custos cada vez maiores em um cenário de total liberdade de doações – o que, obviamente, restringe a liberdade dos que não tem para doar, isto é, investir.

Esqueça debates racionais ou mesmo ideológicos, com a exclusão prática de partidos populares ou ligados à classe trabalhadora, o resta são duas grandes máquinas da elite econômica – as quais se estapeiam por bilhões de doações que servem para investir em gigantescas estruturas de propraganda, as quais substituem a política. Mas é preciso dimensionar isso com exatidão.

Um jogo de bilhões

As eleições dos Estados Unidos de 2020 bateram o recorde de gastos eleitorais, com mais de 14 bilhões de dólares no total, dispendidos entre a disputa presidencial e as corridas para o Congresso. Essa tem sido a tônica: a cada eleição, um recorde novo é estabelecido em valores nominais, saindo dos humildes 3 bilhões de dólares em 2000 para os valores atuais. O que houve entre 2016 e 2020, no entanto, é mais escandaloso, com o valor mais do que dobrando. Em 2024, parece que não vai ser diferente.

Campanhas para o Congresso, com a renovação de toda a Câmara dos deputados e parte do Senado, chegam no conjunto a ser mais caras do que as campanhas presidenciais – inclusas aí as prévias partidárias – e, embora elas variem, a soma combinada das campanhas presidenciais e parlamentares só tem aumentado. É claro que 2020 é um marco em todos os casos, de como o poder econômico virou um verdadeiro tsunami.

Em um sistema que doações eleitorais são amplamente liberadas, nem há teto de campanha, é óbvio que as doações do mundo do capital  superam, em muito, as de grupos ideológicos ou ligados ao mundo do trabalho. Os oprimidos e explorados não têm, obviamente, recursos financeiros comparáveis a quem os oprime e explora. E a partir daí, grandes fortunas e seus gestores, interesses variados e corporações pagam a banda e, assim, escolhem a música – ou melhor, a playlist inteira.

Na corrida maluca de 2020, o mundo do trabalho, por meio de seus sindicatos e organizações de representação, doaram apenas 2,45% do total contra quase 60% do mundo corporativo. No século XXI, com exceção de 2014, o mundo do trabalho não conseguiu jamais doar mais do que 5% do total arrecadado, e sua importância relativa se reduziu em comparação aos 1990, o que expressa uma tendência da própria sociedade americana, que vê a renda se concentrar.

Não é nenhum segredo nos Estados Unidos, que a parcela pertecente ao trabalho da economia está em decadência e a classe média diminui de tamanho, o que é fruto principalmente das políticas neoliberais dos anos 1980 para cá. Mas há um círculo vicioso, no qual eleições sem teto de gastos, financiadas por dinheiro do grande capital elegem, por consequência, candidatos fiés ao mercado que aceleram esse ciclo de desigualdade pela desorganização e exploração do trabalho.

O fenômeno Trump na era das eleições showbiz

Em 2020, Joe Biden arrecadou incíveis 1,6 bilhão contra 1 bilhão de Donald Trump – e, assim,  por meio de um recorde de arrecadação presidencial, eles conseguiram o recorde histórico de eleitores nas urnas. A vitória de Biden, contudo, foi magra perto da diferença de recursos que ele teve em relação a Trump: apenas cerca de 81 milhões contra 74 milhões de votos, uma diferença de 4,5 pontos, abaixo do que as pesquisas previam.

Na prática, cada voto em Trump custou cerca de 14 dólares, enquanto os votos de Biden chegaram a 20 dólares. O candidato republicano teve 38% a mais de eficiência em termos de dólar gasto/voto. Isso lembra 2016, quando o mesmo Trump teve um voto de 8 dólares contra os quase 15 de Hillary Clinton, uma diferença de 74% em termos de eficiência para o republicano. Ali, desgastado por quatro anos de governo, mesmo assim Trump superou seus rivais em custo-benefício.

Trump construiu um movimento nacional em torno de sua imagem, o que envolve milhões de voluntários nos Estados Unidos. Se de um lado, ele não consegue arrecadar como a máquina do Partido Democrata, por outro lado, ele compensa isso com suas habilidades de comunicador e sua ampla rede. A direita do Partido Democrata, que barra qualquer alternativa interna, no entanto, precisa de muita propaganda e isso custa dinheiro.

Mas isso não quer dizer que Trump seja, exatamente, popular: na verdade, ele é rejeitado pela maioria dos americanos – atualmente, com saldo negativo de 10,5% na aprovação –, mas os democratas andam pior. Hoje, Joe Biden tem um saldo negativo de aprovação de 18 pontos, enquanto Kamala Harris é reprovoda, além de sua sua aprovação, na casa de 13,6 pontos. Trata-se de um raio-x perturbador da política americana atual.

Ou seja, Trump é um fenômeno apresentado como “fora do sistema”, mas obviamente isso é falso. Ele é, no máximo, uma ruptura dentro do sistema ou uma simulação de ruptura, que serve para entreter o público. Depois de décadas de despolitização e regras que afastam a soceidade do sistema eleitoral, não é de se espantar que um ex-apresentador de televisão se tornou um candidato viável. Isso foi construído pela própria classe política “tradicional”.

Siga o dinheiro, mas tome cuidado: ele é uma correnteza

Isso nos ajuda a entender como foi uma rebelião de doadores que levou à desistência de Joe Biden, não os protestos sobre suas políticas ou a impopularidade de seu governo. Ainda assim, a escolha de Kamala Harris, no fim uma imposição do próprio Biden, também tem a ver como o mesmo motivo, uma vez que ela ser a candidata, mantém a chapa na disputa, herdando doações que estavam represadas e poderiam, eventualmente, se perder.

Com uma doação até então parelha com Trump, em cerca de 400 milhões à época da desistência de Biden, a chapa democrata caminhava para o abismo. Se em 2020, com 60% a mais de dinheiro, Biden relativamente mais popular do que Trump, o partido sofreu uma pressão quase fatal em estados decisivos: na verdade, se algumas dezenas de milhares de votos mudassem para Trump, ele teria vencido no Colégio Eleitoral, mesmo com a derrota no voto geral, assim como em 2016.

Ainda, isso explica o que foi o governo Biden, uma vez que ele nasce condicionado pela maior operação de arrecadação privada da história humana para uma eleição. Entre seus grandes doadores sempre esteve a Aipac (American Israel Public Affairs Committee), o poderoso lobby israelense que há mais de 60 anos financia – e organiza o financiamento de –  campanhas eleitorais nos Estados Unidos. Então, pensemos nisso quando lembrarmos de Gaza.

E é, francamente, ingênuo – para dizermos o mínimo – supor que com Kamala Harris será diferente, uma vez que ela própria está vinculada à Aipac. Ainda que tenha se afastado ligeiramente, sob protestos dos movimentos sociais, isso não muda essencialmente as posições ambíguas de Kamala, que se equilibra entre agradar sua base eleitoral e fazer reuniões a portas fechadas na Aipac.

Ou também, pensemos em quanto o lobby das armas de guerra e do petróleo não ganhou durante o financiamento obstinado da administração Biden à guerra na Ucrânia ou ao envio de armas para Netanyahu matar civis palestinos. Mesmo que tudo isso tenha gerado inflação interna – corroendo os salários – além de centenas de milhares de mortes, pobreza e destruição – que hoje ameaçam a paz mundial e colocando o mundo sob risco de uma nova guerra mundial.

Trump também em apuros, e há uma luz no horizonte

Se por um lado, os democratas se movem para arrecadar mais, a qualquer custo, para reverter uma situação na qual Kamala Harris é mais impopular do que Trump – está atrás dele nas pesquisas e, ainda, tende a ser mais ineficiente no gasto de campanha –, o candidato republicano trouxe para dentro de sua chapa o esquema político do bilionário Peter Thiel, com a escolha do protegido dele, JD Vance, para vice-presidente.

Sombrio e poderoso, Thiel é publicamente vinculado a CIA, a poderosa agência de espionagem do país, é fornecedor de tecnologia para o aparato bélico de Israel – motivo pelo qual foi acusado, em um protesto de ser cúmplice do genocídio palestino – e constitui não somente a ala direita do Vale do Silício – o nome genérico para as corporações de alta tecnologia alocadas, em geral, na Califórnia – como seu engate com a estrutura militar.

Trump busca, portanto, fundos eleitorais e, possivelmente, proteção, depois do atentado que por pouco não lhe matou. Mas isso é um novo passo na escalada dos negócios que poderão ser feitos, a partir da presidência americana, caso ele volte à Casa Branca. E Trump talvez não tenha controle sequer do que se encaminha – como não teve do atentado que lhe arrancou uma parte da orelha.

No fim, todo esse quadro de déficit democrático e fechamento de brechas nos ajudam a entender o documento do DSA (Democratic Socialists of America) sobre a renúncia de Biden à disputa eleitoral. Até aqui uma tendência de esquerda no Partido Democrata, ele aponta mais explicitamente sobre os rumos da democracia no país e a necessidade de se construir um novo partido de massas, em vez de disputar o Partido Democrata.

A recente criação, ainda sob escrutínio e rodeado de muitas dúvidas, de um novo Partido Comunista nos Estados Unidos, ou as candidaturas de Cornel West e Jill Stein por fora da máquina democrata apontam, igualmente, uma tendência de afastamento à tese de “disputa por dentro” do Partido Democrata – o que se tornou um verdadeiro reboquismo nos últimos anos, como diriam os mais velhos.

Fica cada vez mais claro como remoto reformar, por dentro, o sistema político americano. Muito embora as saídas ainda não estejam muito claras, nem sejam nada fáceis, uma vez que é poderosíssima a relação entre o dinheiro das grandes corporações, o poder do aparato militar e policial, nem tudo está perdido quando vemos as manifestações massivas a favor da Palestina. Mas isso aponta para uma batalha que será uma verdadeira Stalingrado nos próximos anos.

Sobre os autores

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in América do Norte, Análise, DESTAQUE, Economia, Gente rica and Política

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