UMA ENTREVISTA DE
Gercyane OliveiraNa Zona Norte de São Paulo, a Brasilândia é um distrito periférico densamente povoado por migrantes nordestinos, em busca de novas oportunidades, como os pais de Danilo Pássaro. O jovem negro, nascido e criado na maior periferia da zona norte de São Paulo, que nos anos 1990 se tornou um lugar com a maior taxa de homicídios da cidade. Hoje, com 31 anos de idade, Pássaro está indo além das estatísticas de expectativa de vida de um jovem negro oriundo da periferia.
Em São Paulo, conforme revela o relatório: “Envelhecimento e Desigualdades Raciais”, a taxa de mortalidade entre homens negros e jovens é duas vezes maior que a de homens brancos. Na Brasilândia, não é diferente. A atual situação das periferias são as fissuras do capitalismo no Brasil. Neste entrevista exclusiva à revista Jacobina, Passáro evidencia que é incontornável a necessidade de olhar para a complexidade de territórios que não são chamados de “favelas”, mas, compartilham diversas questões com elas. Esses lugares podem ter vários nomes — subúrbio, quebrada, comunidade. Aqui, ele chama de território. Mas, o candidato socialista ao falar da periferia, reforça ser um espaço de produção de ideias e seu desafio é alcançar os objetivos de crescimento coletivo, interpretando um mundo em constante transformação. Em todo o seu potencial, impulsionado pelo hip-hop, rap e os bailes, o território encontra novo significado de identidade e resistência para além dos problemas estruturais e a marginalização. A pluralidade, para além da ingênua romantização, é uma oportunidade para ver o retrato completo e atuar em frentes com diferentes propósitos pelo território.
Na selva de pedra da zona norte, em meio ao cotidiano difícil, e em 94º lugar em desempenho no mapa das desigualdades, Pássaro teve uma formação política e acadêmica permeada de desafios ao ser criado sob os preceitos religiosos e aos cuidados de uma família que o afastou das cenas de terror da violência. A candidatura do psolista, ressoa com a ousada mensagem de que as transformações sistemáticas só poderão ser obtidas atacando as origens da profunda desigualdade, olhando para as entranhas de uma sociedade que se sustenta na violência e na exploração do homem pelo homem, movida às custas do sangue de inocentes nas periferias.
A face mais perversa da especulação imobiliária e a urbanização desigual, marca os destinos de milhares de jovens paulistanos. O direito à cidade e a moradia digna é uma luta urgente ao lado da crise climática. Ainda que com as transformações dos territórios após os anos 1990, a dualidade centro-periferia desenha a cidade. O território, trazido aqui por Pássaro, é como significado de reorganização e táticas, que nos lembra as formas de resistência que o negro conservou ou incorporou na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica. Nesta conversa, o candidato parece evocar o quilombo em sua nova forma, que representou na história do povo negro um marco na sua capacidade de resistência e organização.
GO
Como tudo começou pra você na política?
DP
Faço política desde muito antes de me considerar um militante político. Eu nasci e fui criado na Brasilândia, maior periferia da zona norte de São Paulo que em 1997 se tornou um bairro com maior taxa de homicídios da cidade. Nesse contexto, se a cidade de São Paulo fosse um país, seria o segundo com maior taxa de homicídios, atrás apenas da Colômbia. Então, ainda que de modo intuitivo diante de uma realidade de violência, um jovem negro precisa fazer política para sobreviver e nesse primeiro momento minha sobrevivência dependeu também das habilidades políticas da minha mãe que, para tentar me afastar da violência das ruas na minha quebrada, me deixava sob os cuidados da esposa do pastor e da igreja que tem ao lado da nossa casa, mesmo que a minha família não fosse religiosa. Fui criado em uma uma igreja evangélica, onde aprendi que o cristão deve dedicar sua vida a atender as necessidades imediatas, principalmente daqueles que sofrem. E por isso dediquei parte da adolescência e juventude em ações de solidariedade.
“Quando se associa no Gaviões você passa por uma reunião de novos sócios e lá se aprende sobre a história da torcida que foi fundada em pleno ano de chumbo da ditadura empresarial-militar.”
Também sou corinthiano, desde o dia que meu pai conheceu minha mãe e aos 13 anos ingressei no Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians e a maior do país. Quando se associa no Gaviões você passa por uma reunião de novos sócios e lá se aprende sobre a história da torcida que foi fundada em pleno ano de chumbo da ditadura empresarial-militar, para combater um representante do autoritarismo militar que presidiu o Corinthians, o Wadih Helu, que à época era deputado do partido ARENA e foi responsável pelo assassinato de Vladimir Herzog.
Toledo, por exemplo, que foi um dos fundadores, possuía vasto conhecimento de momentos históricos da organizada, chegando a ser conhecido também como “Enciclopédia”. Além de fundador, ele presidiu a Gaviões da Fiel entre os anos 1975 e 1977, estando presente, inclusive, na histórica “Invasão Corinthiana”, em 1976, no Maracanã. O Flávio La Selva, o principal fundador do Gaviões, era militante do movimento estudantil da Faculdade de Direito da USP e certa vez afirmou a jornalistas do Jornal da Tarde que quando a Gaviões disse “fora Wadih e abaixo a ditadura” é sobre a ditadura no Corinthians e sobre a ditadura militar no Brasil.
“Costumo dizer, que fui para o Haiti com o coração e a mente de um missionário e voltei com a mente e o coração de um revolucionário.”
Anos depois, em 2013, eu fui missionário no Haiti e diante da realidade de miséria daquele país. Eu comecei a perceber que qualquer ação por parte da igreja seria incapaz de acabar com a fome. Para acabar com a fome é necessária uma transformação radical do sistema econômico que determina a ordem social e, a partir dessa constatação, eu fiz uma oração e disse: “Deus, eu quero que minha vida seja usada como instrumento de luta por Justiça no mundo”. Costumo dizer, que fui para o Haiti com o coração e a mente de um missionário e voltei com a mente e o coração de um revolucionário. Nesse mesmo ano, ocorreu a chamada Jornada de Junho de 2013 e foi a partir daí que começou a minha caminhada.
GO
O socialismo surgiu para você enquanto possibilidade para ser pautado numa possível vereança?
DP
Sem o horizonte socialista nenhuma candidatura de esquerda faz sentido porque estamos diante de um cenário em que parte considerável da classe trabalhadora está confusa e iludida com o fascismo. E para fazer a disputa que a história exige, precisamos confrontar radicalmente o fascismo que [hoje] se classifica como “bolsonarismo” e apresentar uma alternativa ao capitalismo em crise, mas a única alternativa possível é o socialismo que depende da organização da classe trabalhadora. E organizar a classe trabalhadora urbana, por exemplo, não é como nos anos 1980 na porta das fábricas, porque a maior parcela da classe trabalhadora está na informalidade, em cima de uma moto com uma mochila nas costas a 90km/h ou num carro lacrado com insulfilme G5 acelerando na Marginal Tietê.
E para dialogar e estabelecer vínculos, organizar a classe trabalhadora com essa nova configuração das relações de trabalho, precisamos estar necessariamente nos territórios periféricos onde a classe trabalhadora mora, se relaciona e se diverte. Para participar de discussões e ações de melhorias do território, um vereador socialista tem que ter a estrutura e as ferramentas necessárias para atender as demandas imediatas dos territórios e a partir disso deve construir vínculos incentivando a participação e organizar as comunidades para uma prática política revolucionária e socialista.
GO
Como aconteceu a decisão de se tornar candidato a vereador de São Paulo?
DP
Eu participei da fundação da ação Antifascista de São Paulo e na época, em 2016, buscamos articular com diferentes organizações e militantes com o objetivo de construir uma frente de combate ao fascismo, nesse contexto, conheci um gavião que era do MTST e apresentou para mim outro camarada do movimento, conhecemos o [Guilherme] Boulos, participamos de ocupações, fizemos diversas ações e debates com o movimento e foi com o MTST que aprendi a importância do trabalho de base no território.
Após amplo debate, o MTST compreendeu que era importante participar de forma orgânica da institucionalidade. Eu também comecei a olhar para institucionalidade como uma ferramenta importante para responder à conjuntura brasileira. Anos depois, surgiu o convite para ingressar no PSOL, com o propósito de popularizar o partido, dar uma nova cara e linguagem, para capilarizar o partido nas periferias.
“A Revolução Solidária, se organiza por núcleos territoriais e não setoriais porque entende a importância da organização do território para luta revolucionária.”
Confesso que no começo fiquei cheio de receios porque antes considerava o PSOL um partido de playboy que não passava dessa fronteira do centro expandido. Pelo menos era o que mostrava as figuras públicas que encontrava no movimento estudantil, mas assumimos o desafio, ingressei no PSOL e com o propósito de criar estruturas, para fortalecer o trabalho de base nos territórios que atuamos para organizar a classe trabalhadora.
Então, alguns coletivos da quebrada, da torcida e da militância política entenderam que eu deveria ser candidato a vereador em 2020. Tive uma votação abaixo das minhas expectativas, mas hoje, vejo que foi boa diante de nenhuma estrutura e um contexto de pandemia e que foi fundamental para me apresentar como uma liderança que antes era vista como um “braço forte” e hoje, a gente consegue mostrar que além de “braço forte” também somos “cabeça” pensante.
Após 2020 fundamos uma corrente que atua internamente no PSOL, que é a Revolução Solidária (RS), que está demonstrando que cumpre com o propósito de popularizar o PSOL. Hoje, a gente dirige o partido em São Paulo e nossa presidenta estadual é a Débora Lima, uma mulher negra, mãe e sem-teto e o Gabriel é o presidente municipal, um jovem negro de Itaquera.
A RS, se organiza por núcleos territoriais e não setoriais porque entende a importância da organização do território para luta revolucionária. Neste ano, a minha candidatura foi lançada pela RS, mas também estamos articulados com lideranças periféricas e movimentos sociais, torcedores progressistas e claro com os setores importantes da torcida.
“A Carolina Maria de Jesus escreveu que a favela é o quarto de despejo da cidade. A nossa principal bandeira é colocar a favela na sala de estar.”
GO
Quais são as principais bandeiras da sua campanha?
DP
A Carolina Maria de Jesus escreveu que a favela é o quarto de despejo da cidade. A nossa principal bandeira é colocar a favela na sala de estar, que não seja um lugar apenas de exposição dos problemas, mas também de construção das soluções em São Paulo. Aqui, o CEP determina o futuro, por isso vamos fazer um debate político sobre a necessidade do poder público municipal olhar para a cidade como um todo, incluir as agendas das periferias é a prioridade do orçamento e dar garantia de políticas públicas, com o propósito de combater as desigualdades.
Também temos como prioridade: pautar a agenda de uma cidade antirracista que efetivamente esteja com projetos de formação antirracista e em Direitos Humanos na educação, na cultura, no esporte e na saúde. Em todas as áreas, consideramos fundamental pautar um projeto de desenvolvimento urbano que considere a emergência climática na agenda, que nos casos de eventos extremos, afetam principalmente as periferias e que, portanto, as periferias devem ser prioridade no investimento.
Para isso, pretendo estar em constante sintonia e ser a ponte com a Secretaria Nacional das Periferias e fazer um enfrentamento forte contra o mercado imobiliário para garantir moradia para o povo pobre. Hoje, esse setor faz o que quer da cidade e são os principais responsáveis pelo aprofundamento das desigualdades na cidade de São Paulo.
“Para avançarmos rumo ao socialismo é essencial que articulemos novas formas de organizações de massas. Portanto, desconsiderar o potencial político do futebol significa ignorar oportunidades para agitação e propaganda.”
GO
Alguns anos atrás, você participou de manifestações em defesa da democracia junto com a torcida organizada do Corinthians. Alguns movimentos de esquerda chegam a subestimar o potencial político do futebol. O que você pensa sobre as possibilidades desse espaço?
DP
O futebol tem um impacto profundo no imaginário do brasileiro. Para falar especificamente das torcidas organizadas, estamos nos referindo a um dos maiores movimentos sociais do país, com pessoas majoritariamente da classe trabalhadora. As torcidas demonstram uma enorme capacidade de organização e mobilização, compartilhando identidades comuns e uma paixão coletiva e que se estrutura em torno de uma grande expressão da cultura popular brasileira.
Para avançarmos rumo ao socialismo é essencial que articulemos novas formas de organizações de massas. Portanto, desconsiderar o potencial político do futebol significa ignorar oportunidades para agitação e propaganda, mobilização de massas, conscientização política e novas formas de engajamento da classe trabalhadora.
GO
Como foi a sua entrada e participação na torcida organizada corintiana?
DP
Entrei na Gaviões da Fiel em 2006, com 13 anos de idade. Na época, a Gaviões era dirigida pelo “Tonhão” e “Pulguinha” e a gestão dos dois foi bem comprometida com a organização política e a articulação com movimentos sociais, especialmente o MST e o MTST. Era comum chegar na arquibancada do Pacaembu e notar vários irmãos de arquibancadas com o boné do MST. Mas, no ano seguinte, em 2007, ocorreu um racha na torcida e criaram um movimento com a São Jorge, que em 2008 optei por fazer parte por considerar que as principais lideranças ideológicas da torcida estavam lá.
“Nas caravanas aprendi um valor indispensável para um socialista, costumo dizer que Cuba é uma ilha pobre, mas que graças ao socialismo ninguém fica sem comer.”
Comecei a participar mais ativamente com a rapaziada da zona norte, onde temos um coletivo. Foi aí que comecei a participar de tudo relacionado a torcida organizada, colando os jogos em casa, viajando em caravanas para jogos fora, protestando no Corinthians, incentivando na arquibancada e participando da vida política da torcida. Minha faculdade de liderança foi na torcida e meu coletivo foi fundado por três lideranças, cada um com uma característica que se complementam. Isso me ajudou a reunir qualidades para ter a liderança que busca desenvolver, mas, quero destacar uma que encontrei nos três em diversas situações e aprendi com eles que o líder deve ser aquele que na linguagem da minha quebrada, pula na bala, ou seja, segura o refrão, coloca o peito na frente, assume a responsabilidade, segura o B.O.
Nas caravanas aprendi um valor indispensável para um socialista, costumo dizer que Cuba é uma ilha pobre, mas que graças ao socialismo ninguém fica sem comer e numa caravana da Gaviões, se no ônibus de 40 apenas 10 tiverem dinheiro da marmita, não tem ideia, todo mundo vai comer, o ônibus da caravana é a nossa representação da ilha socialista.
Alguns anos depois, a minha relação com a militância política foi se reproduzindo, né? Foi se revelando também na torcida e acabei me tornando – além de andar com a rapaziada – a viver a vida de um torcedor organizado. Acabei de alguma forma também me tornando uma referência de militância política.
GO
O futebol moderno nos faz pensar em como os jogadores se transformaram em empreendimentos: todo craque é uma empresa que movimenta muito dinheiro e times são colocados como uma vitrine de negócios. É possível romper com essa lógica e com viés popular, resgatar o futebol como algo coletivo e para a classe trabalhadora?
DP
O capitalismo chegou a um nível no futebol mundial que exige uma mudança radical nas estruturas do futebol brasileiro. Caso contrário, o capitalismo vai destruir o futebol.
“Acredito firmemente que devemos cobrar dos clubes a responsabilidade na formação dos atletas desde a base para que se tornem cidadãos mais conscientes nas questões de classe, raça e gênero.”
Não muito tempo atrás, o salário de um craque era em torno de 100 mil mensais. Agora está na casa dos milhões e essa tendência só cresce, tornando insustentável para a maioria dos clubes brasileiros se manterem competitivos. Recentemente, iniciamos no Corinthians um projeto de formação antirracista com jogadores das categorias de base, acredito firmemente que devemos cobrar dos clubes a responsabilidade na formação dos atletas desde a base para que se tornem cidadãos mais conscientes nas questões de classe, raça e gênero. Para isso, considero fundamental a atuação dos torcedores na transformação que o futebol precisa e consequentemente para as mudanças na realidade.
GO
Você é também um teólogo. Ponto interessante a ser explorado, como militante de esquerda, porque precisamos disputar o campo evangélico?
DP
É importante reconhecer que a maioria dos evangélicos no Brasil são mulheres, pessoas negras periféricas e empobrecidas. Esses grupos representam a parcela da população que mais sofre com as desigualdades econômicas, sociais e raciais do país. Segundo, é importante entender que a religião evangélica não é monolítica. Ela está em constante disputa e transformação. Vale lembrar que, anos atrás, a maioria dos evangélicos votaram em candidatos progressistas e hoje ainda é possível encontrar entre as lideranças evangélicas pessoas comprometidas com os valores da justiça social, igualdade e direitos humanos. Terceiro ponto é que as projeções indicam que até 2030 os evangélicos serão a maioria religiosa no país e ignorar essa realidade seria desconsiderar milhões de pessoas em sua maioria da classe trabalhadora que tem o potencial de influenciar significativamente os rumos da política nacional.
Incluir os evangélicos na luta por justiça social é essencial e a justiça social é um princípio teológico do que Jesus chamou de Reino de Deus. Que vai além das fronteiras religiosas, essa inclusão fortalecerá a resistência contra a exploração e opressão do sistema capitalista e contribuirá para a construção de uma sociedade fundamentada nos valores da solidariedade e do socialismo.
“Historicamente, partidos fascistas e autoritários, se apropriam da religião como instrumento para manter a ordem capitalista, mas, também convém reconhecer o papel fundamental da teologia da libertação.”
GO
Há pelo menos três décadas, a esquerda institucional se debate em torno da questão evangélica no país, sobretudo agora em que uma bancada fundamentalista no Congresso aprovou a PL 1904. O neopentecostalismo cresceu muito no Brasil. Como abordar a questão da religião como força política?
DP
Historicamente, partidos fascistas e autoritários, se apropriam da religião como instrumento para manter a ordem capitalista, mas, também convém reconhecer o papel fundamental da teologia da libertação e das pastorais de base católica, onde houve um fortalecimento da esquerda após a ditadura empresarial-militar. Na última década testemunhamos um crescimento exponencial do neopentecostalismo, um segmento do protestantismo que se baseia no movimento de guerra espiritual, manifestando-se na prática como uma guerra cultural. Em sua essência, esse movimento é formado por um fundamentalismo religioso que atribui as desgraças do Brasil ao sincretismo religioso e a laicidade do Estado. A visão propagada, é a de que o país só se tornará melhor quando for governado e dominado pelos evangélicos.
É importante notar que anos atrás, essas igrejas tinham um discurso neoliberal de Teologia da Prosperidade. Que encontrou força em um período de crescimento econômico e pleno emprego. No entanto, com a chegada das crises econômicas, políticas e sociais as lideranças dessas igrejas precisaram mudar suas narrativas e passaram a fortalecer a ideia de guerra espiritual cultural e o PL 1904 é uma expressão dessa “guerra” que as lideranças evangélicas impõem ao Estado laico. Mas, a adesão radical das igrejas evangélicas ao bolsonarismo tem gerado também uma reação negativa, resultando em um aumento significativo do chamados “desigrejados”, que são evangélicos que não frequentam nenhuma igreja e muitos se sentem desiludidos com lideranças religiosas.
Nesse contexto, entre esses desigrejados podemos começar a criar pontes para fortalecer a defesa dos valores da justiça social, da solidariedade, da igualdade e dignidade humana.
GO
Valores liberais e conservadores travestidos de religiosidade foram parte da política imperialista de dominação geopolítica em diversos países. Como enfrentar essa tática reacionária?
DP
O imperialismo, na maioria dos casos, se fundamenta em três eixos: a exploração econômica, a dominação religiosa-ideológica e os processos de tentativa de aculturamento. O novo fenômeno religioso brasileiro que ganha esse caráter fascista que é o neopentecostalismo fundamentalista, tem relação com esse processo imperialista de dominação religiosa e ideológica e para compreender, a gente precisa entender o que é o movimento de batalha espiritual que foi trazido para o Brasil por uma nipo-brasileira chamada Neuza Itioka, que foi orientada por um teólogo norte-americano de família anglicana, chamado Peter Wagnerm que foi missionário na Bolívia, no Brasil e não teve muito sucesso nos seus processos de evangelização e de abertura de novas igrejas. Ele justificou dizendo: “Olha os povos latino-americanos são povos muito místicos com tradições religiosas com muito misticismo e a nossa forma de culto não contempla esse misticismo e esse sincretismo desses países”.
“O fundamentalismo neopentecostal é estruturado sobre uma visão teológica que tem como propósito uma guerra espiritual que na realidade se revela como uma guerra cultural aos valores progressistas aos valores democráticos e a laicidade do Estado.”
Então, ele criou o que foi chamado de método de crescimento de igreja, que é o que dá origem ao novo fenômeno, que foi chamado de “terceira onda” que são as igrejas neopentecostais. Para desenvolver esse método de crescimento, ele buscou a experiência de um missionário chamado Hudson Taylor que foi missionário na China e o Hudson Taylor chegou na China e viu que lá os povos que tinham relações e tradições religiosas de muito misticismo ele chegava nesses povos e dizia: “olha essas forças espirituais que vocês acreditam, elas realmente existem, mas são forças demoníacas. E aqui eu quero apresentar para vocês o Deus todo-poderoso que se vocês acreditarem e se converterem a esse Deus todo-poderoso, vocês terão condições inclusive de manipular esses poderes espirituais”. Hudson Taylor teve sucesso no crescimento do cristianismo nessas regiões da China e o Peter Wagner pegou essa experiência e começou a dizer que as religiões de matriz africana e as tradições dos povos indígenas também eram demoníacas. Esse é o método de crescimento da igreja fundamentado no movimento de batalha espiritual que é o que sustenta as igrejas neopentecostais hoje.
Algumas igrejas neopentecostais entendem que a batalha espiritual é necessária para se ter cura, milagres e ela é necessária para se ter prosperidade. A partir dessa batalha espiritual, eles também fazem um mapeamento mundial, do qual eles chamam de “principados demoníacos”, ou seja, de príncipes dos demônios que dominam as nações e segundo esse movimento, o Brasil tem um principado demoníaco que é o da corrupção e que, portanto, para a gente acabar com a corrupção no Brasil, o país precisa se tornar evangélico, governado por e para evangélicos. Ou seja, para eles, enquanto existir um sincretismo religioso e laicidade, o Brasil vai seguir sendo um país dominado por principados demoníacos que vão impedir o país de se desenvolver e jogar o país na miséria e que vão impedir a prosperidade do povo brasileiro. Tudo isso é alinhado às ideias da extrema direita.
Inclusive, quando a gente fundou a Ação Antifascista em 2015, eu já dizia naquela época que os evangélicos e pentecostais eram o grupo com maior capacidade de transformar um discurso fascista num fenômeno de massas. Isso se comprovou, principalmente após a ascensão do bolsonarismo, porque o fundamentalismo neopentecostal é estruturado sobre uma visão teológica, que tem como propósito uma guerra espiritual que na realidade concreta se revela como uma guerra cultural aos valores progressistas aos valores democráticos e a laicidade do Estado. E a forma de confrontar essa ideia que é capitalista, imperialista e no fundo fascista, travestida de um discurso teológico com os textos bíblicos retirados de contexto, é preciso trazer a luz da verdade, do Evangelho de Jesus Cristo, que não era branco, que foi imigrante, um refugiado, um Jesus que andou com os trabalhadores e marginalizados da sociedade.
“Jesus não foi morto porque caiu de um camelo ou de causas naturais. Jesus foi morto porque confrontou um sistema imperialista que utilizava da religião para dominar a população – especialmente os empobrecidos.”
Se a gente fosse trazer para os conceitos atuais, diria que seria um revolucionário anti-imperialista, que era de um grupo radical, contra o Império Romano. Tinham algumas ideias, inclusive de caráter nacionalista, se me permite uma licença poética com um certo anacronismo. Eram grupos nacionalistas contra o Império Romano. Então, Jesus andou com essa galera e defendeu ideias que confrontavam diretamente a dominação religiosa que estava a serviço do Império Romano na época. É preciso lançar luz sobre essa verdade do Evangelho de Jesus, que para o seu tempo foi totalmente revolucionária. Jesus não foi morto porque caiu de um camelo ou de causas naturais. Jesus foi morto porque confrontou um sistema imperialista que utilizava da religião para dominar a população – especialmente os empobrecidos.
GO
Mas, quais seriam, por exemplo, os pontos centrais entre a luta socialista e a espiritualidade evangélica? Como é possível encontrar elementos da história da tradição cristã com os valores da esquerda?
DP
O Evangelho de Jesus e o socialismo, tem como princípio, confrontar a estrutura de poder injustas e opressivas. Ambas as coisas, se opõem às hierarquias sociais que perpetuam a exploração e opressão. Defendem a transformação radical da sociedade em direção a uma ordem mais justa e igualitária e Jesus iniciou seu ministério num período em que o Império Romano tinha dividido o território dos hebreus entre quatro governos. Um dos governadores, Herodes, era um fascista, que queria governar todo o território e precisava mostrar para o Imperador César que era um bom gestor e por isso aumentou consideravelmente o imposto na sua região cuja principal atividade econômica era a pesca no mar da Galileia. Isso gerou muita revolta nos pescadores, tiveram várias rebeliões e por isso não foi à toa que Jesus vivia pregando na praias, dos 12 discípulos, pelo menos 9 eram pescadores. Jesus notou que os pescadores eram os trabalhadores dispostos a transformar aquela sociedade.
“Acredito que os socialistas não precisam se apropriar de nenhuma religião, mas lembrar que a maioria das religiões em suas essências carregam valores do socialismo como a justiça social e o cuidado com os pobres e oprimidos.”
Talvez Jesus não tenha garantido a revolução política que esperava, mas promoveu uma revolução social, cultural e moral e veja só: de caráter internacionalista, porque orientou que seus seguidores levassem a mensagem para todo mundo. Os chamados “cristãos” começaram a crescer e não era só pela mensagem. Infelizmente, a radicalidade se perdeu quando o imperador romano Constantino se apropriou do cristianismo e desde então o cristianismo segue sendo apropriado pelos poderosos para seus interesses. Mas, acredito que os socialistas não precisam se apropriar de nenhuma religião, mas lembrar que a maioria das religiões em suas essências carregam valores do socialismo como a justiça social e o cuidado com os pobres e oprimidos. O confronto às estruturas de poder, a promoção da paz e da justiça, a valorização da dignidade humana e a solidariedade internacional e a solidariedade Internacional quando estabelecido. O socialismo deve garantir que cada um exerça sua espiritualidade, desde que essa espiritualidade respeite todas as formas de religiosidade.