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Angela Davis discursa no Mills College em 23 de outubro de 1969, após ser demitida da UCLA por sua militância comunista. (Duke Downey / San Francisco Chronicle via Getty Images)

Angela Davis deu sua vida para expor a repressão do Estado

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Tradução
Pedro Silva

Angela Davis se tornou mundialmente famosa aos 20 anos, quando o FBI a colocou na lista das pessoas mais procurados. Desde que garantiu sua liberdade, ela trabalhou durante meio século para revelar como funciona a repressão em Estados "democráticos" como os EUA.

Aos vinte e seis anos, Angela Davis se tornou uma das prisioneiras políticas mais famosas do mundo e um ícone revolucionário, sendo a sua imagem tão reconhecível quanto a de Mao Zedong ou Che Guevara. As circunstâncias que levaram à sua prisão foram complexas e parcialmente forjadas.

Em agosto de 1970, várias armas registradas em nome de Davis foram utilizadas em uma tentativa de libertar três homens negros encarcerados em um tribunal no Condado de Marin, Califórnia. Depois que os guardas da prisão de San Quentin abriram fogo, quatro pessoas foram mortas, incluindo um juiz distrital. Davis não tinha conhecimento prévio dos eventos, mas ela foi implicada por conta das armas.

Mais significativamente, ela era um membro conhecido do Partido Comunista dos EUA (CPUSA) e uma ativista negra em ascensão: o Estado a queria morta ou presa. Foi emitido um mandado de prisão sob acusações de conspiração, sequestro e assassinato, que acarretavam pena de morte, e Davis foi colocada na lista dos mais procurados do FBI.

Davis afirma que a campanha de pressão internacional travada pelo CPUSA e pelo National United Committee to Free Angela Davis (NUCFAD) salvou sua vida. Entre 1970 e 1972, ela passou dezessete meses na prisão antes de ser libertada sob fiança e finalmente absolvida de todas as acusações. Durante esse período, cartas de solidariedade de lugares como Cuba, França, Alemanha Oriental e União Soviética inundaram a prisão e o tribunal de San Jose, onde ela seria julgada. Para seu público global, não era Davis julgada ali, mas o próprio sistema de justiça criminal dos Estados Unidos: uma mulher negra comunista que era tão obviamente inocente poderia ser absolvida?

O que torna o exemplo de Davis notável é que ela nunca parou de pagar a dívida que sente que tem com a esquerda internacional para garantir sua liberdade — e sua vida. Do movimento de boicote contra o apartheid sul-africano ao Occupy e à rebelião de George Floyd, ela apareceu em quase todas as mobilizações em massa no último meio século. Em meio à crescente repressão e censura, ela tem sido firme em seu apoio à luta de libertação palestina. Mais significativamente, ela forneceu à esquerda uma das críticas mais incisivas ao profundo envolvimento do Estado de segurança dos EUA na exploração e opressão, identificando o nexo de obstáculos à organização revolucionária no presente.

A Joanesburgo do Sul

Davis nasceu em 1944 sob um sistema de apartheid racial em Birmingham, Alabama. Seu pai administrava um posto de gasolina; sua mãe era ativa no Southern Negro Youth Congress [Congresso Sulista da Juventude Negra], uma organização de direitos civis de esquerda com uma forte filiação comunista.

Em Birmingham, conhecida como a “Joanesburgo do Sul”, a ameaça de violência branca era constante. A família Davis vivia em um bairro que era chamado de “Dynamite Hill” por causa dos frequentes atentados a bomba sofridos por proprietários negros. Eles perderam vizinhos e amigos para ataques racistas, incluindo o atentado a bomba da Ku Klux Klan em 1963 na 16th Street Baptist Church, que moldou a consciência política de Davis de forma contundente.

“Em Birmingham, Alabama, conhecida como a ‘Joanesburgo do Sul’, a ameaça de violência branca era constante.”

Davis frequentou escolas segregadas até os quatorze anos, quando foi aceita por um programa Quaker que colocava alunos negros do Sul em escolas integradas no Norte. Ela escolheu a Elisabeth Irwin High School de Nova York por sua reputação progressista.

Na Elisabeth Irwin, Davis leu o Manifesto Comunista, que a atingiu “como um raio”, como lembrou mais tarde. Ela começou a conceber a libertação negra como parte de uma luta mais ampla dos trabalhadores. Ela se juntou à Advance, uma organização socialista juvenil fundada por vários de seus colegas “red diaper”, filhos de membros do CPUSA. Eles incluíam Eugene Dennis Jr, filho do líder comunista de mesmo nome; Bettina Aptheker, filha do historiador comunista Herbert Aptheker; e Mary Lou Patterson, cujo pai, o advogado comunista William L. Patterson, havia entregue a famosa petição “We Charge Genocide” [Acusamos Genocídio] às ​​Nações Unidas em protesto contra os linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos.

O grupo de jovens organizou manifestações contra os testes nucleares e fez piquetes na Woolworth’s por causa de seus balcões de almoço segregados. Eles se reuniram no porão dos Apthekers entre os papéis de WEB Du Bois, que Herbert Aptheker estava guardando na época.

Muito mais tarde, Davis retornaria à noção de “democracia abolicionista” de Du Bois para conceituar o que a transformação social radical implicaria na ausência da derrubada do Estado. Mas aos dezessete anos, a revolução ainda parecia distintamente no horizonte para ela.

A frente estrangeira

Em 1961, Davis matriculou-se na Brandeis University. Ela era uma das três alunas negras em sua turma de calouros. Sua atenção logo foi atraída para o principal intelectual de esquerda do campus, Herbert Marcuse.

Marcuse pertencia a um grupo de intelectuais marxistas judeus alemães conhecido como Escola de Frankfurt. Forçados ao exílio nos EUA na década de 1930, eles começaram a reinterpretar categorias marxistas clássicas como classe e exploração para dar conta de sua experiência histórica de antissemitismo eliminacionista. Na década de 1950, eles acumularam um extenso catálogo de impedimentos materiais e psíquicos à revolta coletiva. Em sua leitura, a violência racializada funcionava como uma manifestação externa das tendências de crise do capitalismo e um componente-chave no arsenal do estado para interromper as lutas de libertação dos trabalhadores.

“A interpretação do marxismo da Escola de Frankfurt foi uma escolha natural para Davis, já atenta aos interesses compartilhados, embora muitas vezes frustrados, do comunismo e da libertação negra.”

A interpretação do marxismo da Escola de Frankfurt era um ajuste natural para Davis, já alerta aos interesses compartilhados, embora frequentemente frustrados, do comunismo e da libertação negra. Por sua vez, sua ânsia intelectual e notável propensão para lidar com as contradições da filosofia idealista alemã — a estrutura analítica preferida da Escola de Frankfurt — impressionaram Marcuse, que se tornou um mentor ao longo da vida.

Por meio da conexão com Marcuse, Davis mudou-se para Frankfurt em 1965 para fazer pós-graduação em filosofia com Theodor Adorno. Rapidamente se integrou ao núcleo duro da filial de Frankfurt da União Socialista de Estudantes Alemães (SDS). Ela se mudou para um prédio de fábrica dilapidado com vários membros da SDS, incluindo o líder estudantil Hans-Jürgen Krahl.

De dia, eles frequentavam aulas na universidade com Adorno, Max Horkheimer e Jürgen Habermas. De noite, transcreviam e mimeografavam obras fora de catálogo de teoria crítica, criando edições piratas que vendiam em eventos do SDS para financiar suas atividades políticas.

Entre 1965 e 1967, as atividades políticas do SDS alemão centraram-se em lutas de libertação anticoloniais, mais agudamente no Vietnã. Os estudantes estavam convencidos de que a descolonização romperia o continuum capitalista global, e estavam determinados a obstruir as maquinações neocoloniais dos Estados Unidos, para as quais a Alemanha Ocidental serviu como um crucial posto militar avançado. Eles exigiram a dissolução da OTAN, construíram formas organizacionais extraparlamentares, contestaram a desinformação da mídia e lutaram contra a polícia.

A militância deles impressionou Davis, que mais tarde se lembraria da seriedade com que seus camaradas do SDS buscaram desenvolver “formas de resistência prática” capazes de romper a apatia de sua própria sociedade e transpor divisões globais. A experiência ressaltou as possibilidades de construção de coalizões interclasses, multirraciais e internacionais, que Davis defenderia pelo resto de sua vida.

Teoria crítica e prática revolucionária

Em 1967, Davis decidiu voltar para casa para se juntar à luta de libertação negra. Marcuse havia se mudado para a recém-criada University of California, San Diego (UCSD), então ela se matriculou no programa de pós-graduação em filosofia e começou a explorar o rico cenário de organizações políticas radicais no sul da Califórnia.

Nos dois anos seguintes, Davis organizou com o Student Nonviolent Coordinating Committee (SNCC), o Black Panther Party for Self-Defense (BPP) e o Che-Lumumba Club, uma seção totalmente negra do CPUSA onde conheceu alguns de seus camaradas mais próximos, incluindo o casal Franklin e Kendra Alexander e os irmãos Charlene e Deacon Mitchell. Todo o trabalho político de Davis se concentrou na violência policial racista e na conscientização pública. No entanto, as organizações nas quais ela era ativa tinham visões diferentes sobre o caminho estratégico e o conteúdo da libertação negra, e às vezes elas se desentendiam.

“Todo o trabalho político de Davis se concentrou na violência policial racista e na conscientização pública.”

Em 1969, Davis foi contratada como professora assistente de filosofia pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), tendo oficialmente avançado para candidatura na UCSD com um tópico de dissertação sobre o problema da força, ou violência, na filosofia de Immanuel Kant. Seu trabalho preliminar indicou que a noção ampla de liberdade moral de Kant sancionou logicamente um direito individual de resistência e até mesmo revolução, que de outra forma era negado em sua filosofia política protoburguesa. Fiel à sua formação marxista, Davis argumentou que essa contradição teórica, que encontrou seu corolário contemporâneo em debates em torno da legalidade do ativismo, só poderia ser resolvida na prática, por meio da transformação total do Estado constitucional burguês.

Antes que o semestre de outono na UCLA pudesse começar, no entanto, um informante do FBI revelou publicamente que Davis era membra do Partido Comunista, e ela foi demitida pelo Conselho de Regentes da Universidade da Califórnia. Da noite para o dia, se tornou um para-raios para ataques anticomunistas, racistas, misóginos, anti-intelectuais e ameaças de morte.

Davis contestou com sucesso sua demissão no tribunal, citando seus direitos da Primeira Emenda à liberdade de expressão e reunião e seu direito como professora à liberdade acadêmica. Mas ela encontrou um inimigo determinado no governador de direita da Califórnia, Ronald Reagan, que tramou para que ela fosse demitida novamente no final do ano acadêmico.

Enquanto isso, Davis usou sua nova publicidade para destacar o trabalho do Soledad Brothers Defense Committee, ao qual ela se juntou em fevereiro de 1970. George Jackson, Fleeta Drumgo e John Clutchette eram três homens negros encarcerados na Prisão de Soledad que foram acusados ​​do assassinato de um guarda prisional branco. O comitê de defesa sustentou que eles estavam sendo alvos por sua agitação política na prisão e buscaram angariar apoio público para o caso.

Foi por meio de seu trabalho no comitê de defesa que Davis fez amizade com o irmão mais novo de George Jackson, Jonathan, que acabaria liderando a tentativa fracassada de libertar três outros homens negros — James McClain, William Christmas e Ruchell Magee — no tribunal do Condado de Marin em agosto de 1970. Os Soledad Brothers foram finalmente absolvidos em março de 1972, embora George Jackson já estivesse morto naquela época, tendo sido assassinado por um guarda da prisão durante outra tentativa de fuga em agosto de 1971.

Uma luta constante

Em novembro de 1970, Marcuse escreveu a Davis, então encarcerada em Nova York, contando que ele havia feito uma importante descoberta filosófica ao reler seus escritos acadêmicos: “A liberdade não é apenas o objetivo da libertação, ela começa com a libertação; ela está lá para ser ‘praticada’. Isso, eu confesso, aprendi com você!” Davis ainda segue essa crença, como é evidente em seu mantra mais conhecido, “A liberdade é uma luta constante”.

Liberdade, ela insiste, não é uma propriedade fixa. Ela não pode ser concedida a uma pessoa, muito menos por um Estado. Da mesma forma, ela não pode ser reduzida à demonstração negativa de que somos livres porque há outros que não são livres — os outros que o Estado trancou. Para ser digna do conceito, a liberdade deve ter seu próprio conteúdo material positivo, que, por ainda não existir, deve primeiro ser promulgado.

A própria experiência de Davis atrás das grades foi formativa para sua compreensão crítica não apenas da negação material da liberdade que a prisão constitui, mas também da prática dinâmica da liberdade. Por sua vez, o projeto abolicionista que ela começou a imaginar da prisão de San Jose transformou a compreensão da esquerda sobre o cenário político contemporâneo.

“O projeto abolicionista que Davis começou a imaginar na prisão de San Jose transformou a compreensão da esquerda sobre o cenário político contemporâneo.”

Enquanto estava presa em 1971, Davis escreveu com sua camarada e amiga comunista Bettina Aptheker que o recurso do Estado à repressão violenta indicava que suas instituições, incluindo a prisão, eram “impermeáveis ​​a reformas significativas” e “devem ser transformadas no sentido revolucionário”. Uma página depois, elas exigiam “a abolição” do sistema prisional como tal.

O chamado abolicionista de Davis e Aptheker partiu do foco ortodoxo na organização do chão de fábrica industrial intencionalmente. Nos Estados Unidos, o emprego de colarinho azul estava em declínio desde a década de 1950, e aqueles trabalhadores que historicamente foram os últimos a entrar na relação salarial industrial — negros e outras minorias — foram os primeiros a serem excluídos dela, reduzidos ao status de uma subclasse definida pelas portas giratórias da precariedade salarial e o que Davis então chamou de “aparelho policial-judicial-penal”.

Ao reorientar seu foco na polícia e nos obstáculos carcerários à luta de classes, Davis buscou aproveitar o que ela acreditava ser o maior impulso oposicionista daqueles proletários que eram mais vulneráveis ​​à redundância econômica e à violência do Estado. Ela também pretendia combater diretamente a capacidade do Estado de continuar coagindo-os à submissão muito depois que a ordem capitalista racial havia cessado de fornecer os salários necessários para a auto-reprodução da classe trabalhadora. A abolição foi uma estratégia revolucionária, em outras palavras, sintonizada com as contradições do capitalismo tardio.

Mas a abolição, como ficaria claro, também era uma estratégia revolucionária condizente com uma era de retração da esquerda. A esperança da New Left [Nova Esquerda] por uma ruptura revolucionária não deu certo, principalmente por causa da enorme capacidade de repressão do Estado. Podemos debater as deficiências e os pontos cegos da estratégia da Nova Esquerda, mas seu “fracasso” teve mais a ver com programas governamentais como o COINTELPRO do que com hippies e horizontalismo.

Após sua derrota, os objetivos de fechar prisões, reescrever leis de sentença, bloquear a construção de novas cadeias e prisões e institucionalizar alternativas restaurativas ao encarceramento tornaram-se formas difusas e fragmentadas de estender a visão de transformação social radical, ao mesmo tempo em que corroem a capacidade contrarrevolucionária do Estado. O significado estratégico desse trabalho só se tornou mais claro à medida que os ativistas do Stop Cop City enfrentam acusações do RICO, enquanto os ativistas pró-Palestina são submetidos à violência policial e de vigilantes, à censura e à perda de emprego.

Agora que ela tem oitenta anos, o apoio contínuo de Davis aos protestos em massa está começando a se assemelhar ao de seu antigo mentor. Na década de 1960, Marcuse adquiriu o título honorífico de “avô da Nova Esquerda”, e jovens ativistas até mesmo alteraram seu slogan para: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos — exceto Herbert Marcuse.”

Embora estivesse lisonjeado, Marcuse insistiu que não era a causa das revoltas. Em vez disso, o que ele tentou fazer foi identificar as fissuras materiais e psíquicas dentro da sociedade que estavam maduras para a ruptura, e então consolidar teoricamente os grupos incipientes que emergiram dessas fissuras em uma coalizão revolucionária. Davis fez algo semelhante, e ainda podemos aprender com seu exemplo.

Sobre os autores

é professora visitante e pesquisadora na Universidade de Konstanz, em Baden-Württemberg, Alemanha.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, DESTAQUE, História, Militarismo and Sociologia

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