Em 1980, Ana Cristina Cesar, em seu livro Luvas de Pelica, nos colocou em verso uma interessante afirmação: a arte é aquilo que ajuda a escapar da inércia. Podemos pensar essa mesma afirmação de Ana C. em uma perspectiva agambeniana, uma vez que Giorgio Agamben, em seu livro O Reino e a Glória (2011) diz que a arte é o lugar da inoper-ação por excelência, a exemplo da poesia. Agamben afirma também, neste livro, que a Arte funciona como uma potência de desativação – um movimento em direção ao por-vir, em direção a uma construção do novo, ao que Walter Benjamin, em Experiência e Pobreza (1933), denominou como tábula rasa para os construtores – os artistas. Em chave consonante poderíamos pensar a Arte como uma utopia.
O filme Democracia Em Vertigem (Netflix, 2019) da cineasta Petra Costa foi recebido como um acontecimento. Havia a expectativa de que esse filme propusesse uma leitura fidedigna dos acontecimentos do golpe parlamentar de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff para um público internacional, como também havia a ânsia de ter em jogo uma perspectiva que se autodeclarava de esquerda no debate artístico-político. De alguma forma, o filme não decepciona diretamente nenhuma das duas expectativas: ele realmente narra – e essa é uma palavra importante para se pensar essa obra em particular – uma certa leitura do golpe parlamentar e insere uma declaração de alguma sorte através de uma perspectiva de esquerda. O problema é que essas expectativas, para além de aparecerem, são frustradas pela forma como o filme ignora o continuum histórico em que se insere.
A primeira coisa a se falar sobre o filme de Costa é a seguinte: ele é uma bela obra cinematográfica. A diretora sabe como manusear uma câmera, tem um acesso que é verdadeiramente chocante – muitos dos comentários sobre o filme se focam mesmo no fato de que o material do filme é verdadeiramente raro e de dificílimo acesso –, possui também uma habilidade ímpar de garimpagem arquivística e sabe, como todo bom cineasta tem de saber, contar uma história. A forma como a diretora, que desde o início se insere como personagem de destaque na história, narra os fatos políticos brasileiros numa justaposição com a narrativa de sua juventude em relação a esses fatos – em um tipo de coming of age político bastante inteligente porque imediatamente coloca o espectador em relação com a política de que Costa fala como se estivesse em relação com a pessoa, que é a própria Costa – é bastante interessante e demonstra como ela tem bastante consciência dos efeitos semióticos colocados em jogo. Petra sabe que história quer contar, e sabe como fazer com que nos importemos com isso. É justamente pela tamanha qualidade estética do filme que ele não pode deixar de ser levado a sério como proposta política – afinal, toda escolha estética é uma escolha política.
Por ser um filme de verdadeiro impacto e que se pretende como comentário político, Democracia Em Vertigem, toma aquele lugar do cinema que se coloca como objeto fetichizável, ou seja: em relação com o espectador vira significante vazio a ser preenchido subjetivamente – com ódio ou amor ou o que mais seja. A Crítica, apesar de entender o valor do pathos, desvia. Desvia desse fetiche e se coloca um passo atrás para ler o filme a partir de uma perspectiva sismográfica: quais os choques secundários dessa obra?
Em minha leitura eu apontaria dois. Um que pode vir a possuir algum efeito positivo, outro que certamente tem um efeito negativo. O choque secundário produzido pela obra que pode vir a possuir um efeito positivo é que o filme, justamente por se colocar como filme de esquerda, por fazer ver o acontecimento do golpe e mesmo por alguns instantes bastantes lúcidos – como em duas entrevistas que parecem deslocadas do documentário, a de uma empregada na câmara dos deputados apresentando a total imobilidade real do revezamento político fantasmático da democracia neoliberal burguesa; e a de um senhor na rua apontando justamente o tamanho do descaso dessa mesma democracia burguesa com os corpos existentes do país, aqueles que “só recebiam migalhas e agora nem migalhas mais receberão”, em que talvez a crítica política salte mais fortemente aos olhos –, compreende o Brasil como o entre-lugar que hoje ele é. No entanto, isso aparece de maneira falha no documentário. O que nos leva ao segundo choque secundário, aquele que certamente tem um efeito negativo.
Se podemos assumir que a obra de Costa compreende o Brasil contemporâneo como esse entre-lugar político, como o que a socióloga Sabrina Fernandes recentemente, em chave gramscista, denomina como interregno no seu livro Sintomas Mórbidos: A encruzilhada da esquerda brasileira (2019), talvez o problema principal do filme possa ser apresentado em uma única frase – que, no entanto, terá de ser desdobrada –, pois ele nada mais é que o fato de que esse filme ignora o materialismo histórico. E, como é uma boa obra cinematográfica, em sua ignorância ele leva o espectador desavisado a ignorar também. Em certo momento do filme, Petra, que participa ativamente da obra não só como personagem coadjuvante forte mas também como narradora, pinta o Brasil como uma “democracia forte” dizendo que a vantagem das democracias fracas – diferentes do Brasil – é que elas imediatamente percebem o rompimento democrático, enquanto que nas fortes esse rompimento aconteceria aos poucos.
Ora, essa afirmação é contradita dentro da própria obra, aliás logo no primeiro minuto do filme, quando Petra alega, corretamente, que a República no Brasil nasceu de um golpe militar. E esse não foi o único golpe que a, bastante fraca, democracia brasileira viria a sofrer. O país já sofreu mais de cinco golpes de estado, para além dos planos e das tentativas fracassadas. E até mesmo o estado democrático, mantido do fim da ditadura militar até o golpe contra Roussef, alguns poderiam argumentar, não se caracteriza como um amplo estado democrático, considerando que a democracia liberal burguesa possui em si mecanismos que excluem a possibilidade de participação ativa da maioria de sua população – para além dos mecanismos de extermínio da população periférica que facilmente podem ser caracterizados como mecanismos de exceção de um regime necropolítico[1] – e que, portanto, funciona como o governo de um certo grupo específico (a burguesia). A verdadeira democracia, poderíamos pensar, funciona em dissenso porque não ignora e nem faz ignorar os corpos que nela vivem. Ela pode ser pensada em um jogo com o título do filme de Petra: Democracia É Vertigem (e saber com ela dançar).
O que a ignorância voluntária de Petra faz, de fato, é despolitizar o espectador. Petra faz sua afirmação sobre a força da democracia brasileira quando comenta sobre o que ela chamou de uma mudança repentina do tecido social: Junho de 2013. É justamente aí que a diretora apresenta sua ignorância, pois elide as contradições do sistema em que estamos e admite de forma simplista e simplória que foi de 2013 pra cá que o Brasil desenvolveu tensões políticas (jogando fora a relação, bastante bonita, que ela apresentou no início do filme, mencionando o pau-brasil e sua extinção pelos portugueses). Isto é perigoso, pois transmite a falta de profundidade crítica a quem assiste o filme e se sente representado na superfície. E por causa dessas questões, a obra como comentário político simplesmente não se sustenta. Ela não consegue se segurar em conversa com uma única e simples pergunta, como por exemplo “E por que junho de 2013 aconteceu?”. Uma dica: não foi por nada.
Retornamos a Agamben e a Ana C.. Uma obra de arte vem para estabelecer uma tensão dialética. Inoperar. Fazer escapar da inércia. Vem como um evento que estabelece uma suspensão[2], no sentido em que Walter Benjamin pensa a imagem dialética: um acontecimento em que o Pretérito e o Agora se interpenetram de forma a dar a pensar o por-vir.
Para entender esse por-vir, essa tábula rasa que possibilita a construção, podemos pensar com Gilles Deleuze em suas reflexões sobre a Arte. Deleuze nos diz que: “É preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não se endereçar a um povo suposto, já lá, mas contribuir para a invenção de um povo”, o filósofo nos diz que “o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos, ou nos guetos, nas novas condições de luta para as quais uma arte necessariamente política deve contribuir”. Dessa forma, a Arte estabelece uma tensão dialética que possibilita uma politização: um conjunto de corpos que se mobilize em direção a construção do novo, como pensava Benjamin.
E é por isso que devemos de fato pensar Junho de 2013 de uma maneira diferente da que a cineasta nos propõe, porque ele é um espaço que veio como ruptura da inércia e que ainda não cessou de possibilitar o pensamento, portanto, é inegavelmente um espaço de tensão. Junho de 2013 ainda pode ser pensado para sairmos desse processo de despolitização (se não como paradigma ao menos como ponto de discussão), pois ao contrário do que Democracia Em Vertigem faz parecer, ele acontece como um choque tectônico de placas que há muito se movimentavam uma em direção à outra. A inércia anestésica do jogo político neoliberal, que institui falsas disputas entre uma esquerda liberal e uma direita liberal, mobiliza-se sempre em direção a um acontecimento de choque, que deve então ser compreendido e disputado. Em Experiência e Pobreza, Walter Benjamin advoga por um barbarismo positivo, que seria aquele que cria a partir da ruína, aquele que sabe colocar a utopia em disputa depois da ruptura.
A obra de arte possui a potência para aparecer como lugar de sugestão da inoper-ação, ela tem em si a potência de se fazer como ponto de ruptura a ser disputado bem como de se colocar como utopia na disputa. Dessa forma: a obra de arte não vem simplesmente para morrer em si. Ela deve vir como abalo sísmico, como choque tectônico, de fazer acontecer o movimento.
Democracia Em Vertigem é um bom filme, mas não faz tanto.
[1] Para melhor compreender esse ponto, sugiro a leitura do texto Necropolítica de Achille Mbembe.
[2] Uma das traduções possíveis pra aufheben, que pode ser pensado como o movimento dialético de “ultrapassar mantendo”
Sobre os autores
é crítico de arte, professor e tradutor. Mestre em Poesia e Aisthesis pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e graduado em Letras pela mesma universidade. No momento trabalha na tradução da obra Bad New Days: Art, Criticism, Emergency do crítico de arte estadunidense Hal Foster.