Em 8 de dezembro de 1929, na Alexanderplatz, em Berlim, a União dos Alunos da Escola Socialista organizou uma manifestação anticolonial, contra a xenofobia nacionalista. Fazia parte dos constantes eventos anticoloniais organizados pela esquerda na Alemanha, sob influência da Internacional Comunista (Comintern). O segundo orador do evento foi Joseph Ekwe Bilé, de Douala (Camarões), que foi entusiasticamente recebido pelo público. Bilé denunciou a brutalidade do regime colonial alemão em Camarões, e os abusos e maus-tratos sofridos por pessoas de origem africana no mundo.
Isso chamou a atenção das autoridades alemãs para suas atividades de propaganda. Os alemães esperavam um dia recuperar seus antigos domínios coloniais e, por isso, as denúncias de Bilé não eram bem-vindas – e provocaram uma discussão séria sobre sua deportação.
Para Theodor Seitz – o presidente da Sociedade Colonial Alemã que fora governador dos Camarões e fanático colonialista –, a agitação política de Bilé era sintomática de um perigo premente. Seitz argumentou: “Estou convencido de que, sob as atuais condições econômicas, os nativos que ainda se encontram na Alemanha cairão completamente sob o fascínio do comunismo”.
Suas suspeitas tinham fundamento. Várias semanas antes, Bilé e outros camaroneses formaram um grupo anticolonial apoiado pelo Comintern chamado Liga para a Defesa da Raça Negra (LzVN).
O tema deste artigo é a carreira política de Joseph Bilé, para destacar aspectos do ativismo político dos africanos que viviam na Alemanha (particularmente Berlim) no final dos anos 1920. Examina a criação da LzVN e vários exemplos da atividade política de seus membros, incluindo o notável projeto teatral criado pelo grupo em 1930. Destaca a presença de africanos alemães em redes transnacionais mais amplas de anticolonialistas. E antirracistas, muitas vezes em conexão com o Comintern, e redes do internacionalismo negro.
“Encalhado” na Europa
Bilé era um dos cerca de 250 a 500 residentes negros, com seus filhos nascidos na Alemanha, que viviam em Berlim no final da década de 1920, a grande maioria dos quais tinha raízes nas antigas colônias alemãs – a maioria de Camarões, outros do Togo ou da antiga África Oriental Alemã (atuais Tanzânia, Burundi e Ruanda).
Como a esmagadora maioria, Bilé chegou à Alemanha antes de 1914. Era filho do influente comerciante James Bilé a M´bule e, com o irmão mais velho Robert Ebolo e a irmã Esther Sike, foi enviado por seus pais para estudar na Alemanha, como dezenas de crianças de famílias da elite de Camarões e do Togo, mandadas para estudar na Alemanha Imperial.
Bilé frequentou a escola técnica em Hildburghausen, na Turíngia, de 1912 a 1914, e se tornou engenheiro civil. Seus irmãos voltaram a Douala antes da 1ª Grande Guerra; mas Bilé e vários outros africanos foram impedido de voltar. Ficou “encalhado” na Europa como resultado da guerra e do processo de paz que despojou a Alemanha de seu império ultramarino; suas colônias ficaram sob novos mandatários, principalmente franceses e britânicos, que impediram a volta dos africanos das antigas colônias alemãs.
Agora, sem poder sair da Europa, depois de servir brevemente no exército alemão durante a guerra, Bilé, como muitos contemporâneos africanos, lutou para encontrar um emprego estável. Mudou-se da Prússia Oriental para Berlim, Viena e de volta para Berlim na década de 1920. Foi nesse contexto de agravamento da crise econômica no final de 1920 e crescimento do preconceito racial que surgiu a Liga para a Defesa da Raça Negra (LzVN), com apoio do Comintern.
Sua criação pode ser vista como parte da história mais longa do protesto anticolonial entre os africanos que viviam na Alemanha, entre os quais se desenvolveu a consciência antirracista a partir de experiências pessoais com o colonialismo real, e a vivência na Alemanha submetidos à discriminação. Os exemplos incluíram o ativismo pré-1914 dos homens de Douala como Alfred Bell e Mpundu Akwa, que criaram a Associação do Bem-Estar Africano, em Hamburgo em 1918, com a participação de Bilé.
No imediato pós-guerra, enviaram à Assembleia Nacional alemã, em Weimar, uma petição, de um grupo de africanos liderado pelo camaronês Martin Dibobe, pela renegociação da relação entre Camarões e Alemanha, pela independência de Camarões e pela ajuda a seu desenvolvimento. A petição não teve resposta, mas um grupo de camaronenses – entre eles Bilé – encontrou uma nova saída para o ativismo na LzVN.
Organização internacionalista
Desde o início a LzVN estava sob influência do Comintern e de redes mais amplas do internacionalismo negro. O militante sudanês Tiemoko Garan Kouyaté participou da fundação da LzVN , e foi seu dirigente em Paris. Ele se esforçou para juntar-se a uma rede de ativistas africanos na Europa; estava também em correspondência com um número de proeminentes intelectuais negros, incluindo W.E.B. du Bois e Marcus Garvey.
Kouyaté tinha ganhado provavelmente o acesso aos africanos em Berlim, como o influente organizador e propagandista comunista Willi Münzenberg, que, na década de 1920, ajudou a tornar a cidade um centro-chave do ativismo anticolonial, com apoio do Comintern. Münzenberg liderou também a Liga Contra o Imperialismo, uma organização de frente com ampla base, sediada em Berlim. Ele procurou ativamente fazer contato com a luta anticolonial na Europa; os laços com a população negra alemã já existiam desde 1926.
Evidências sugerem que o contato entre grupos comunistas e negros alemães poderia ter surgido ainda mais cedo. Em 1919, o camaronense Wilhelm Makube (de Douala) foi preso ao chegar a Salzburgo, acusado de participar uma organização comunista alemã. Anos depois, em 1924 o africano Josef Mambo foi ferido quando a polícia abriu fogo em Berlim contra manifestantes comunistas nas comemorações do 1º de maio.
O que se sabe sobre a LzVN? A filiação a ela foi aberta a todos os negros, e suas esposas brancas, refletindo o internacionalismo da organização, e a diversidade da população negra alemã. Um relatório elaborado por Bilé, que era secretário da LzVN, sugere que havia cerca de 30 membros, incluindo várias mulheres. A maioria era de Camarões, mas havia também outros de Togo e de outras partes de África Ocidental.
A maioria era de Berlim, onde o escritório da LzVN ficava na sede da Liga Contra o Imperialismo, de Münzenberg, cujo endereço, na Friedrichstrasse 24, era um centro de reuniões para muitos cidadãos alemães e estrangeiros, colocando diversos grupos de ativistas em contato e possibilitando a colaboração e o intercâmbio entre eles.
A formação da LzVN resultou de preocupações diversas: havia a influência revolucionária do Comintern, a perspectiva internacionalista negra de Kouyaté e as demais preocupações do dia a dia dos africanos. Entre outras coisas, salientou a necessidade de unidade entre os trabalhadores brancos e negros em todo o mundo, o chamado para a independência dos Estados africanos, a defesa da independência da Libéria e da Etiópia, a libertação dos afro-americanos, e o incentivo aos negros alemães a se juntarem à luta sindical. Além disso, os membros deveriam dar apoio moral e material uns aos outros em tempos de doença e desemprego, ecoando iniciativas de auto-ajuda anteriores dos alemães negros.
Muito pouco se sabe sobre a atividade política da LzVN. Seus membros estavam ativamente engajados na troca de informações entre a Alemanha e a África, contrabandeando material de propaganda em cartas particulares para amigos e parentes na costa oeste da África. De fato, as autoridades coloniais francesas expressaram a preocupação, no início da década de 1930, de que literatura anticolonial e cópias do jornal comunista, Die Rote Fahne (A Bandeira Vermelha), chegavam a Douala e eram enviados para o interior.
Teatro
Além disso, membros da LzVN participavam de encontros políticos organizados por grupos ligados ao Comintern. Talvez o exemplo mais intrigante de ativismo, no entanto, seja aquele sobe o qual menos se sabe. Em janeiro de 1930 o jornal Baltimore Afro-American, nos EUA, chamou atenção para a criação de um “teatro racial” em Berlim, anunciado por Victor Bell, presidente da LzVN – um anúncio que sugere outras conexões transnacionais da população negra da Alemanha. Na verdade, foi em grande parte através de jornais afro-americanos, alemães e austríacos que se pode pelo menos tentar reconstruir elementos deste projeto.
Não surpreende que os negros usassem o teatro e a atuação como formas de ativismo. A maioria optou pela atuação, no palco, no cinema ou no circo como forma de ganhar a vida. Inclusive Bilé, que encontrou trabalho para atuar em Viena, onde apareceu ao lado de Josephine Baker, e também atuou como dançarino no show Apollo? Nur Apollo!, no Teatro Apollo. Em Berlim, em março de 1930, compartilhou o palco do Deutsches Künstlertheater (Teatro de Arte Alemão), com Paul Robeson para a primeira apresentação alemã (em inglês) da peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neill.
De acordo com vários relatos, seu colega, o ator Mpessa, mais conhecido seu nome artístico de Louis Brody, esteve por trás dessas atuações. Sua intenção era criar um show que desafiasse os clichês da África e representações discriminatórias de pessoas negras. O espetáculo de Brody, Sonnenaufgang im Morgenland (Nascer do Sol no Oriente), apresentou a história e a cultura negras com a intenção de mostrar que os negros eram tão “bons, maus, engraçados e capazes” como os brancos europeus.
A primeira parte do espetáculo, realizado parcialmente numa língua bantu não especificada, girou em torno de 1880 para se referir criticamente ao impacto do colonialismo na África, partir de uma perspectiva africana. A segunda parte, passada no tempo presente, foi apresentada em francês, inglês e alemão. O show tinha 30 artistas negros, três brancos, e incluiu uma orquestra de jazz.
Esperava recrutar artistas negros dos EUA e ter financiamento do grupo de Kouyaté em Paris, mas parece que isso não ocorreu. Todos os adereços e figurinos foram feitos pelos próprios artistas negros, enquanto um artista de Berlim ajudou com o design dos sets. Embora os ensaios tenham começado no início de 1930, foi só em dezembro que Sunrise in the Orient estreou no salão de baile Kliems em Hasenheide, Neukölln: um local com fortes ligações com o movimento dos trabalhadores.
O número de vezes que foi encenado e como foi recebido pelo público de Berlim permanece em grande parte desconhecido, embora tenha chamado uma atenção indesejada: o jornal nazista Völkischer Beobachter publicou um artigo difamando-o, surpreso com a apresentação em Berlim de uma peça de teatro centrada na cultura africana.
É difícil acreditar que Bilé não estaria envolvido neste projeto. Ao mesmo tempo, ao longo de 1930, ele emergiu como a figura mais influente da LzVN, atraído por círculos de libertação mais amplos, anticoloniais e negros. Em julho, representou a LzVN na primeira conferência internacional de trabalhadores negros, e as evidências sugerem que esteve envolvido em sua organização. A conferência de três dias foi convocada pelo Comitê Sindical Internacional de trabalhadores negros (ITUCNW), que fora criado dois anos antes e representou a institucionalização do compromisso do Comintern de mobilizar e lutar pela liberdade dos trabalhadores negros em todo o mundo.
Essa importante conferência foi realizada em Hamburgo e reuniu alguns dos mais proeminentes ativistas negros no movimento anticolonial, como o afro-americano James Ford e George Padmore, de Trinidad, que se tornou mentor de Bilé. Em Hamburgo, Bilé fez um pronunciamento sobre a exploração europeia de Camarões, que mais tarde foi publicado no jornal do ITUCNW. A conferência resultou em demandas políticas pela igualdade para os africanos e o direito de autodeterminação e a criação de Estados africanos independentes. Bilé, com outros militantes, viajou em seguida para Moscou, para participar do 5º Congresso da União Internacional de Comércio e para comemorar a criação da ITUCNW.
De volta a Berlim, Bilé participou de discussões sobre futuras atividades comunistas na África. Como sinal adicional de sua crescente influência, era cada vez mais ativo como agitador político – como um líder do agit-prop, entre outras coisas. Ao lado de outros membros do LzVN, Victor Bell e Hermann Ngange, ele foi escolhido como instrutor político e participou de cursos de propaganda no Deutsche Hochschule für Politik (Colégio Alemão de Política) em Berlim e na Marxistische Arbeiterschule (Escola Marxista de Trabalhadores), com a participação de Hermann Duncker, do Partido Comunista da Alemanha (KPD).
Ao final de 1930 Bilé se filiou ao KPD. Foi particularmente ativo na campanha de Scottsboro do Comintern, uma campanha na Europa para evitar a execução, na cadeira elétrica, no Alabama (EUA), de nove afro-americanos, falsamente acusados de estupro.
Na universidade em Moscou
A ligação entre Bilé e Padmore ajudou a torná-lo um orador-chave numa série de manifestações, muitas vezes em Berlim, onde frequentemente falou para audiências de até 1.500 pessoas. Essa plataforma política deu-lhe a oportunidade de desafiar os estereótipos sobre os negros que prevaleciam na Alemanha, bem como condenar a prática de linchamentos de negros nos EUA. Deu voz também voz às queixas dos africanos, tanto na Alemanha como na África.
Ele denunciou a brutalidade do governo colonial alemão – consciente das esperanças nacionalistas de que a Alemanha recuperasse as antigas colônias – e cobrou as missões cristãs por não agir contra essa brutalidade. As autoridades coloniais francesas igualmente acompanhavam suas críticas – que se dirigiam a todas as formas de colonialismo. ecoando as demandas vindas de Camarões em busca da independência. Estas atividades políticas o levaram à prisão por duas vezes.
Enquanto Bilé estava cada vez mais envolvido na agitação do Comintern, a LzVN cada vez mais foi vítima de ataques. Em parte por causa das tensões postas sobre seus membros por sua situação financeira e social terrível na Alemanha, que levou a intrigas e ciúmes. Padmore sugeriu fechar a LzVN e definir sobre a tentativa de resgatar Bilé de sua situação. Em consonância com os esforços do Comintern para expandir sua base de apoio entre os trabalhadores africanos e na África, ele argumentou que Bilé seria enviado a Moscou para treinamento e trabalho futuro em Camarões.
No verão 1932, Bilé chegou a Moscou para frequentar a Universidade comunista, onde, sob o pseudônimo de Charles Morris, fez parte da seção 9, de língua inglesa, dedicada aos africanos. Durante sua estada de 18 meses, foi colega de curso do futuro presidente do Quênia, Jomo Kenyatta, e entrou em contato com um número de africanos e afro-americanos influentes, todos igualmente parte das redes transnacionais de atividade política africana. Fez vários cursos, em teoria política e econômica, focalizando temas como a economia soviética, o leninismo e o materialismo dialético, sobre partido a história da União Soviética.
Seus professores se dividiam na avaliação sobre ele. Para uns, era um “nacionalista ardente”. Para outros, ele evitava emaranhados nacionalistas. Alguns reclamaram que era muito burguês ou ainda muito alemão, tendo passado muito tempo na Europa. No entanto, concordaram que era um estudante modelo e totalmente confiável politicamente. Uma breve visão sobre sua experiência em Moscou é dada por uma carta de janeiro de 1933. Bilé ao lado de treze outros protestaram sobre representações ofensivas de africanos produzidas nos palcos em Moscou e em livros escolares russos.
Em fevereiro de 1934, depois de completar seu treinamento, Bilé deixou Moscou e foi para Paris. Recebeu uma carta de referência para se filiar ao Partido Comunista Francês. Em Paris, ele era pobre, sem documentos, e não tinha esperança de voltar para a Alemanha, onde tinha deixado uma filha e todas os seus bens.
Durante seu tempo em Moscou, o contexto da política internacionalista e anticolonial negra na Europa (e em Camarões) havia mudado. Na Alemanha, após a tomada do poder pelos nazistas, o movimento anticolonial do Comintern foi apagado; a Liga Contra o Imperialismo, de Münzenberg, foi fechada; Padmore tinha sido forçado a fugir; e o LzVN também fechou. Seu presidente, Victor Bell, parece ter sido “convidado” para discutir o futuro da LzVN na nazista Horst-Wessel-Haus, em Berlim, no início de 1933. Enquanto isso, os mentores de Bilé, Kouyaté e Padmore, romperam com o Comintern, que havia se voltado para a colaboração com os poderes ocidentais para combater a ameaça nazista.
Durante vários anos, Bilé manifestou o desejo de voltar a Camarões, principalmente por razões familiares, mas suas ligações políticas tornaram isso impossível. Depois que se afastou do comunismo, as autoridades coloniais francesas permitiram sua volta, em 1935. Em Douala, retirou-se em grande parte da vida política, iniciou uma família e trabalhou como arquiteto. Joseph Ekwe Bilé morreu em 1959, menos de um ano antes de Camarões se tornar independente.
Sobre os autores
é professor na Universidade de Sheffield Hallam e autor de estudos sobre a história da diáspora negra na Alemanha.