Israel realizou a sua eleição mais recente no início de março, exatamente quando o primeiro surto de coronavírus atingiu o pais, no fim de fevereiro. Os resultados da eleição pareciam dar a vitória a Benjamin Netanyahu e sua coalização de extrema-direita.
Porém, em poucos dias, os veículos de comunicação perceberam que as bases de poder haviam mudado do bloco da extrema-direita de Netanyahu para o bloco de centro-esquerda liderado por Benny Gantz. Na segunda-feira (20/04), o primeiro-ministro Netanyahu anunciou que formará uma aliança para um governo de emergencia com Gantz. Após meses de paralisia, o acordo evitará a quarta eleição consecutiva em um ano.
No topo dessa crise política, a pandemia do coronavírus está devastando o mundo. Dado o crescimento do número de vítimas israelenses e o anúncio da primeira morte por coronavírus, Netanyahu viu uma oportunidade de reviver sua relevância política. Efetivamente, Netanyahu agiu antes mesmo da primeira morte, que ocorreu em 20 de março.
Apenas uns poucos dias antes, em 16 de março, ele pediu ao comitê de inteligência do Knesset para aprovar o uso de um – até então secreto – banco de dados nacional compilado pela Shin Bet [agencia de segurança de Israel] e composto por dados pessoais privados de cada cidadão israelense, seja judeu ou palestino. Na ressaca do 11/09, os Knesset israelenses secretamente delegaram a sua inteligência doméstica a missão de criar o banco de dados, o que foi compreendido como uma medida ostensiva de contraterrorismo.
Os dados acumulados deixam no chinelo as denúncias que Edward Snowden apontou sobre a vigilância em massa da NSA. Eles não contem apenas nomes, endereços e números de telefone de cada cidadão; também contém cada ligação telefônica realizada e quem a recebeu, incluindo nome e telefone. Com o uso de geo-localização, rastreia o destino de viagem de cada cidadão no interior do país e mantém registros de toda atividade online, incluindo buscas na internet.
O projeto ultrassecreto foi anunciado por Netanyahu como uma poderosa ferramenta para monitorar vítimas da epidemia e todos que tiveram contato social com elas. Poucos israelenses, além dos defensores da privacidade e ONGs relacionadas, alarmaram para as óbvias violações de privacidade individual e de direitos implicadas no banco de dados em si, cujo codinome era “a Ferramenta”, e de seu uso para compelir supostas vítimas do coronavírus ao auto isolamento. Eles permaneceram em silêncio – ainda que os oficiais do ministério da saúde que apelaram para a aprovação do uso do banco de dados tenham sugerido que a epidemia forçaria o Estado a “suspender liberdades pessoais”.
Embaralhando pandemia e política
Poucos políticos, mesmo da oposição, questionaram o primeiro-ministro pela exposição de toda uma década de dados secretos, alardeados como um dos instrumentos de contraterrorismo mais poderosos da Shin Bet. Eles deveriam, pois Netanyahu estava claramente explorando a existência da Ferramenta para reforçar ao público do quanto ele era indispensável. Ele queria que os israelenses o vissem como um líder forte e assertivo que poderia guiá-los em meio à ameaça da epidemia.
Ele estava ultrapassando todos os sinais vermelhos para salvar sua própria carreira, enquanto a oposição tramava para formar um governo que o excluiria do poder e o deixaria vulnerável a um julgamento criminal por três casos de corrupção. A planejada coalizão de governo também propôs uma série de novas leis que proibiriam o premier a mais tempo em exercício (11 anos) de retornar ao poder.
Então Netanyahu avançou todos os sinais vermelhos. Ele orientou o orador do Likud e do Knesset, a utilizar a desculpa do contágio do coronavírus para suspender as atividades do próprio Knesset. Por essa razão, o comitê de inteligência nunca aprovou o uso da Ferramenta durante a epidemia. Ao invés disso, Netanyahu contornou a supervisão da lei e empregou regulações executivas de emergência para aprovar o plano.
A oposição recorreu à Suprema Corte, que solicitou ao orador que reunisse o Knesset. Quando ele recusou, os juízes informaram que ele deveria comparecer em cinco dias ou a ordem de Netanyahu seria considerada nula e sem efeito. Em resposta, o próprio orador renunciou, o que deixou o país sem corpo legislativo, pois apenas o orador pode convocá-lo para sessões.
Adicione a crescente ansiedade por causa da pandemia da COVID-19, que começou a atingir Israel mais cedo, ao pânico geral sobre a crise política no país, e você tem a receita perfeita para o milagroso retorno político de Netanhyahu. As pesquisas começaram a preocupar Gantz, mostrando que o público queria estabilidade e via isso na unidade do governo entre seu Azul e Branco e o Likud.
Como resultado, no fim do mês passado, o líder da oposição se desligou do bloco de centro-direita que ele liderou nas últimas três eleições e se conectou com o Likud, de Netanhyahu. O bloco político rachou em dois, com quinze MKs seguindo Gants para o novo governo, e os oito MKs restantes, liderados pelo ex-chefe geral da FDI [Forças de Defesa de Israel] Moshe Ya’alon e Yair Lapid, partindo para a oposição. O racha chocou os antigos aliados de Gantz e foi interpretado como a traição de um compromisso de campanha – que ele nunca iria participar de um governo com um primeiro ministro eleito indiretamente.
Parte do acordo para formar uma nova unidade no governo envolvia a demanda de Gantz pela posição de orador para si mesmo. Isso o permitiria controlar a agenda legislativa. As negociações continuaram a respeito da pasta ministerial e das prioridades legislativas.
Netanhyahu expôs o maior trunfo do órgão de inteligência para autopreservação política
De volta à Ferramenta, agências espiãs são refratárias à divulgação de seus segredos, e sem dúvida a Shin Bet ficou atordoada quando descobriu que sua poderosa arma havia sido exposta. Também estava preocupada com as críticas que enfrentaria a longo prazo no terreno das liberdades civis e, de acordo com uma fonte da segurança, decidiu vazar um relatório sobre a Ferramenta para a mídia estrangeira.
Foi assim que o repórter da inteligência israelense Ronen Bergman publicou seu artigo no New York Times no meio de março. Bergman seguiu adiante com um relato ainda mais detalhado no Yedioth Ahronoth no fim do mês. Ao passo que sua história levantou algumas preocupações éticas, incluindo a denúncia que não houve limitação de tempo sobre a retenção dos dados coletados, no geral ele amenizou aflições de que o projeto possa violar direitos individuais.
Bergman fez isso ao citar ex-agentes oficias que declararam ter se engajado em deliberações exaustivas sobre essas questões, minimizando qualquer possibilidade de falhas sérias na segurança, ou que a Ferramenta seja usada para propósitos de vingança policial ou de causar danos a cidadãos inocentes.
Contudo, o objetivo do vazamento era, claramente, retratar a Ferramenta e a agência da forma mais lisonjeira possível e desfazer qualquer crítica da opinião pública a respeito dela ou de sua missão. Não foi por acidente que quatro dias depois da publicação do artigo de Bergman, o comitê de inteligência Knesset aprovou o uso da Ferramenta para a luta contra a COVID-19.
Não foi feita qualquer discussão sobre qual seria o impacto sobre os alvos afetados pelo seu uso. A função de geo-localização rastrearia toda possível vítima de coronavírus, não apenas àquelas que possuem a doença. Seria retroativa em duas semanas para rastrear todos os movimentos da vítima: onde foram, quem encontraram. Seria capaz inclusive de identificar qualquer um que tenha permanecido a dois metros de algum indivíduo contaminado por mais de 20 minutos – e também seriam colocados em quarentena, tenham eles o vírus ou não; tendo realizado testes ou não.
Qualquer especialista em políticas de saúde diria que a história das pandemias, incluindo HIV e Ebola, indicam que as vítimas não devem ser criminalizadas ou relegadas. Elas devem ser encorajadas a cooperar com as autoridades a fim de proteger a si mesmas, suas famílias e o público.
Visto que a política de Israel está atualmente focada para deter qualquer um que viole as regulações, com multas de até US$ 1.500, além de um termo de seis meses de prisão, o uso da Ferramenta para garantir a lei ao invés de medidas de saúde pública lança a população em uma direção que nenhuma sociedade deveria ir.
O governo de Israel também atribuiu à Mossad [serviço secreto do Estado de Israel] a compra de centenas de milhares de ventiladores e respiradores para preparar seus cidadãos para a violenta devastação causada pelo contágio. Informações veiculadas na mídia omitem deliberadamente a fonte dos equipamentos, dizendo apenas que podem vir de um país com o qual Israel não tem relações formais. Outras notícias indicam que serão comprados dos Emirados Árabes.
Além disso, oficiais do Mossad entrevistados pelo programa de TV Uvda se gabaram para a apresentadora, Ilana Daya, que a agencia “roubou” 100 mil máscaras e respiradores do primeiro carregamento trazido para Israel.
O New York Times publicou há pouco tempo uma parte da hagiografia jornalística, escrita por Ronen Bergman, celebrando os feitos heróicos da Mossad na proteção das vidas israelenses ao destruir as barreiras ao redor do mundo para conseguir equipamentos médicos e kits de testagem para proteção contra o COVID-19. Mas parece que ninguém perguntou porque a agência de inteligência nacional seria indicada para a preparação contra a epidemia no pais. Na verdade, Bergman cita autoridades de saúde israelense com orgulho:
“Só em Israel que o hospital Sheba poderia ter solicitado ajuda do Mossad”, ele disse em uma entrevista. “Você consegue imaginar o Hospital Monte Sinai pedindo ajuda para a CIA?”
Ninguém percebe que em qualquer outra nação democrática, as autoridades de saúde fariam tal trabalho. Mas Israel, com alguma chicana política, designou um judeu ultra-ortodóxico (Haredi, em hebráico) que não acredita em ciência ou medicina para o cargo de ministro da saúde. O ministro violou as próprias ordens de quarentena estabelecidas pelo ministério e participou de sessões religiosas, onde contraiu a COVID-19. Se Israel fosse um Estado normal ao invés de um Estado embaralhado com teocracia e militarismo, não seria preciso (nem quisto) que a Mossad desempenhasse tais obrigações.
Militarizando a pandemia
Netanyahu também ordenou que centenas de soldados das Forças de Defesa de Israel (FDI) patrulhassem o interior do país para garantir restrições contra circulação. Soldados armados nunca haviam caminhado entre as ruas tendo como alvo israelenses e judeus por violarem as leis. Conforme uma reportagem no Haaretz mostra, Israel é a única democracia que está usando seus serviços militares e de segurança e para rastrear vítimas de coronavírus.
Adicionalmente, o primeiro ministro anunciou que a cidade ultra ortodoxa (Haredi) de Bnei Brak foi colocada sob bloqueio total. Em outra primeira aparição, a Polícia de Fronteira, cuja missão é garantir a ocupação dos palestinos na Cisjordânia e impedir que eles entrem em Israel como trabalhadores ilegais, irá assegurar o bloqueio na comunidade judia em Israel.
Isso reforça a impressão de que o governo de extrema-direita de Israel militarizou a pandemia. Assim como um martelo que jamais acerta um prego quando não deseja acertar, é simplesmente natural para a segurança nacional de Estados como Israel que a COVID-19 seja visto como uma ameaça à segurança tanto quanto ou mais do que uma ameaça à saúde.
Israel anunciou antes de qualquer outro país que o laboratório de armas químicas e biológicas em Nes Tziona havia desenvolvido uma vacina (embora a declaração tenha sido contestada posteriormente). Ainda que seja certamente louvável para os cientistas israelenses fazer tais esforços para salvar vidas, Nes Tziona tem perícia para desenvolver a vacina porque suas pesquisas envolvem testagem e desenvolvimento de agentes letais usados contra países inimigos. O laboratório também desenvolve agentes para contra-atacar patógenos como a COVID-19 motivado pela proteção dos soldados e civis israelenses.
Mas a preponderância do trabalho de Nes Tziona, ao menos o que se sabe publicamente, é usada para desenvolver agentes mortíferos para assassinar inimigos de Israel. O veneno injetado por dois assassinos agentes da Mossad em Khaled Mashal, em 1997 na Jordânia, foi desenvolvido em Nes Tziona, assim como o antídoto que o Rei Hussei demandou para salvar a vida de Mashal. O veneno usando pelo esquadrão de 27 agentes da Mossad para assassinar o traficante de armas do Hamas, Mahmoud al-Mabhouh, em Dubai, em 2010, também foi desenvolvido pelo laboratório Nes Tziona.
Qualquer avaliação do bem que pode advir desta vacina contra a COVID-19 deve ser contrabalanceada contra o dano que o laboratório causou em todos os seus outros trabalhos.
A democracia morre durante desastres
Netanyahu está tentando definir a si mesmo como o Homem Indispensável durante a crise de saúde. Ele sabe que quando toda uma nação vive em meio à incerteza e ansiedade em massa, ela está disposta a sacrificar ainda mais os seus direitos em troca de um líder com pulso firme. Foi assim que Adolf Hitler subiu ao poder em 1933, em meio a uma profunda crise econômica. Similarmente, o primeiro-ministro húngaro de extrema-direita, Viktor Orbán, atribuiu a si mesmo poderes absolutos, usando a desculpa da pandemia para se autonomear ditador.
Felizmente, o status político de Netanyahu é instável. Ele não tem o controle de ferro que Orbán possui. Existem limites para o que ele pode realizar. Porém, ao longo dos últimos 25 anos, durante a maioria dos quais ele liderou o país, ele gradualmente consolidou imensos poderes para si e para seu gabinete. Existe uma grande tentação de explorar esse poder ao ser confrontado por desafios legais e políticos.
O ministro de Defesa de direita, Naftali Bennett, ofereceu propostas que ele mesmo elaborou para lutar contra a pandemia. A tecnologia que ele está promovendo desenvolveria uma tabela de desempenho para cada cidadão e ranquearia a probabilidade de adquirir ou transmitir o coronavírus. Por causa da onda de vítimas e hospitalização que tornou impossível uma investigação apropriada da cadeia de transmissão, ele insiste na adoção de uma cyber Ferramenta criada pelo registro de identidade para detectar quem estava próximo das vítimas e isolá-las também – no registro consistiria todas as informações relevantes compiladas pelo ministério da saúde e pela Shin Bet, formando um banco de dados.
Um modelo de computador determinaria uma pontuação de um a dez para individuo perfilado. A pontuação indicaria, em tempo real, a probabilidade de infecção. Aqueles com a maior pontuação no espectro seriam “convidados” para testagem.
Em uma manifestação pouco sutil de racismo, Bennet também chamou atenção para a propagação incendiária da COVID-19 entre duas diferentes comunidades israelenses os ultra ortodoxos e os palestinos. Ele afirmou a um jornalista de TV que existiam “três Israeis”. Dois estavam infestados pela doença. O terceiro, presumivelmente, seria o moderno, bem-educado, afluente, e relativamente sadio setor Ashkenazi.
Ele defendeu o tratamento dos outros dois Israeis como se houvessem sido acometidos por uma praga: isolá-los e deixá-los que se cuidem por conta própria. As autoridades israelenses recusaram fornecer qualquer serviço de testagem para a comunidade palestina, que já possui o pior nível de cuidado médico da região. Essa é uma das razões porque os palestinos israelenses se revoltaram em Jaffa recentemente, jogando pedras nos policiais e bombeiros.
A mídia israelense reporta que os palestinos protestaram contra a prisão de um residente que desafiou a regulação de ficar em casa. Se esse for o caso, a culpa recai também no Estado por não educar suas minorias sobre os perigos que enfrentam ao ignorar protocolos de saúde pública. Mas é igualmente possível que esses manifestantes estavam reclamando da não-tão-benigna negligência com a qual o sistema de público de saúde de Israel os trata.
Os ultra ortodoxos enfrentem outro obstáculo para seguir as regras de saúde pública. Já que rejeitam a sociedade secular israelense eles são naturalmente segregados dos outsiders. Suas comunidades tendem a ser insulares. Já que eles rejeitam a educação secular, tendem a ser os mais pobres e a viver em apartamentos em vizinhanças densamente povoadas. As únicas autoridades que eles confiam são os rabis, que naturalmente não possuem nenhuma experiência científica ou médica. Muitos dos rabis disseram aos fiéis que deveriam continuar levando suas vidas normalmente, incluindo sessões religiosas e outros rituais – todas ações que levaram a uma proliferação maior do contágio.
A declaração de Bennet sobre ambas as comunidades revelou o racismo inato, e ainda uma forma de antissemitismo, no coração de Israel – contra palestinos e ultra ortodoxos. Isso também realça a falha do Estado em integrar cada um desses grupos na sociedade mais ampla. Políticos israelenses se beneficiam da segregação dos ultra ortodoxos, que tendem a votar como um só bloco. Seus partidos políticos se juntam a coalizões do governo, como ocorreu com o atual governo de extrema-direita liderado pelo Likud.
Os ministros Haredi tendem a financiar e beneficiar sua comunidade a partir do erário público. Foi assim que uma das autoridades rabínicas se tornou ministro da saúde sem qualquer experiência em saúde, medicina ou conhecimento secular. Quando um jornalista perguntou em quanto tempo o pior da epidemia seria superado, ele respondeu que o Messias viria antes da Páscoa e aliviaria todo o sofrimento. Ele adquiriu a COVID-19 depois de desafiar duas vezes as próprias normas de quarentena do seu próprio ministério, que previam a suspensão de sessões públicas de oração.
O desenvolvimento de musculatura política dos Haredi que participam das coalizões seculares do governo israelense acabou criando uma configuração conveniente para ambos os lados desde que o Estado passou a existir. Contudo, a desvantagem é que eles contam com poucas razões para integrar a sociedade israelense de forma ampla. A tragédia da COVI-19, para a qual um perito em saúde pública estimou que 40% dos residentes de B’nai Brak seriam infectados, é o resultado de uma política social mal orientada.
Monetizando a pandemia
A segunda parte do plano do ministro de defesa para combater a COVID-19 requer que a nação adapte a Ferramenta como um produto “civil” desenvolvido pela indústria de cibersegurança israelense e comercializado para países estrangeiros. Ele sugeriu uma companhia particular que já o faz: o Grupo NSO. Conforme escrevi antes, é a empresa de cyber hacking mais bem sucedida do mundo, recentemente vendida a uma empresa de capital de risco no Reino Unido por US$ 1 bilhão.
O produto primário da NSO é o Pegasus, o malware mais sofisticado no mercado. Ele vem sendo usado por agentes de polícia de vários países para espionar grupos terroristas e traficantes de drogas. Pelo menos é o que os assessores de imprensa representando a NSO dirão a você. Porém, existe uma questão sombria que a NSO se recusa a reconhecer. Ela também vende o Pegasus para alguns dos países mais repressivos do mundo, cujas polícias secretas usam o malware para rastrear dissidentes políticos, ativistas, jornalistas independentes e advogados que defendem interesses públicos.
Os produtos da NSO têm sido usado como evidencias em casos contra ativistas dos direitos humanos lutando por democracia em suas sociedades. Ahmed Mansoor, nos Emirados Árabes, foi sentenciado a 10 anos de prisão por seu ativismo. Seu telefone foi hackeado e todos os seus e-mails e mensagens de texto foram usados como evidência contra ele no tribunal.
Ainda mais desconcertante é o caso de Jamal Khashoggi, morto por agentes da inteligência Saudita. Eles também usaram o Pegasus para monitorar os contatos de Khashoggi e sua localização física. O malware permitiu determinar onde ele estava, onde ele foi e onde ele tinha intenção de ir, incluindo o consulado saudita em Istambul, onde os assassinos aguardavam por ele.
Entidades como a Anistia Internacional e o Citizen Lab estão lutando contra essas violações de direitos humanos básicos. Esta última está processando a corte do Estado de Israel para forçar o ministro a revogar a licença de exportação da NSO que a autoriza vender o Pegasus para outros países.
A NSO parece ter poderes premonitórios no que diz respeito à reação contrária ao malware. Ela pode ser alvo de tanta controversa que ou o Estado vai cancelar a permissão de venda ou o mundo vai proibi-lo. É por isso que a NSO busca estar à frente da curva (de impacto do coronavírus). Ela sabe sobre a Ferramenta e já está se oferecendo para vender uma versão “civil” (ou seja, menos problemática). Presumivelmente, registros do ministério da saúde e do governo da população seriam compilados em bancos de dados, abarcando todos os cidadãos. Então, algoritmos desenvolvidos pelo Shin Bet e NSO manipulariam os dados para detectar os padrões entre a população.
Se você sabe quem já se adquiriu a COVID-19, você pode rastrear os seus movimentos, quem esteve próximo e então lançar uma rede mais ampla para interromper a circulação do vírus na população. Mas, é claro, tal programa pode ser usada para fins muito mais nefastos.
Se você é um agente da inteligência saudita, você pode colocar como alvo um inimigo específico do Estado – onde ele vai, quem encontra, para quem manda e-mail ou mensagens, o conteúdo dessa troca. Você pode ir retrospectivamente no tempo tanto quanto quiser para perseguir seus rastros. É oferecida uma rede de pesca infinita, cheia de possibilidades de capturar alvos individuais e qualquer um que eles tenham interagido, seja benevolente ou suspeito. Isso poupa os agentes de segurança do tedioso processo de arrastar suspeitos para o interrogatório e tentar induzi-los, por persuasão ou força, a emitir informações incriminadoras.
Bennet está promovendo esse novo produto da NSO como uma forma de monetizar a pandemia da COVID-19. Israel é um dos dez maiores exportadores de armas do mundo. Agora, porém, também se tornou uma potência no campo das cartolas pretas da cibersegurança: a venda de programas usados pelos regimes mais repressivos do mundo para exercer controle social.
Parece haver algo na natureza humana dos vigaristas e imorais que os leva a explorar a tragédia, enganando indivíduos. Mesmo as grandes empresas anunciam durante esses desastres para promover suas marcas. Mas nesse caso, Bennet está usando o poder o seu gabinete de Estado para promover não apenas um produto individual, mas todo um Estado de vigilância em massa que ele representa.
Quando um país compra o Pegasus ou a versão civil da Ferramenta, eles não estão comprando apenas um produto discreto. Eles estão, de fato, comprando todas as premissas sociais, políticas e de inteligência que se encontram nele. Ainda que, por exemplo, você tenha uma constituição nacional ou um conjunto de regulamentações que governem a vigilância e a privacidade dos indivíduos, essas ferramentas são tão poderosas, tão arrebatadoras, que elas sugam uma quantidade gigantesca de dados. Os dados imploram para serem usados e manipulados, o que é exatamente o que agencias de inteligências como a NSA e a Unidade 8200 da FDI fazem.
Durante o processo, eles removem qualquer proteção que possa existir para prevenir usos danosos de dados pessoais ou violações de privacidade. Nesse sentido, Israel está exportando o seu próprio Estado de segurança nacional junto com esses programas: um Estado que sacrifica direitos individuais no altar da segurança. Um Estado no qual os cidadãos se submetem a autoridades estatais que agem em nome deles. Então, quando outro país implementa artigos cibernéticos israelenses, eles também absorvem algum dos pressupostos e valores incorporados no desenvolvimento deles.
Esses programas de ciber espionagem ultrapassam o desenvolvimento de leis que os regulam. Não existem nenhum código internacional que regule a tecnologia de ciber vigilância. É uma terra sem lei. Essas são as condições ideais que Israel encontra para perseguir seus interesses tanto geopolíticos quanto comerciais, interesses que prosperam em meio à confusão, divisão e incerteza – precisamente as condições que encaramos agora.
Sobre os autores
escreve para o blog Tikun Olam, onde cobre o estado de segurança nacional israelense. Contribuiu para a coleção de artigos, A Time to Speak Out: Independent Jeweish Voices on Israel, Zionism and Jewish Identidy e Israel and Palestine: Alternate Perspectives on Statehood.