Em 2012, as Nações Unidas previram que a Faixa de Gaza seria “inabitável” até 2020 – isso não quer dizer, é claro, que tivesse sido particularmente habitável em qualquer ponto da história recente. Agora sob ocupação israelense por mais de cinco décadas – esqueça a retirada que não aconteceu, em 2005 – o pequeno enclave costeiro palestino superlotado também sofre um bloqueio sufocante desde 2007.
O desemprego e a insegurança alimentar são galopantes, e 97% da água potável de Gaza é considerada perigosa. Os cortes de energia são contínuos. Os equipamentos de saúde e remédios são escassos, e os palestinos que necessitam de tratamento médico fora de Gaza tem que pedir permissão regularmente para passar pelas autoridades israelenses – que, é importante mencionar, geralmente são diretamente responsáveis pelas condições que requerem tratamento em primeiro lugar, como quando os militares israelenses mutilaram manifestantes palestinos em massa em 2018–19. A situação sombria da assistência médica é pior que qualquer outro país pelo hábito de Israel de bombardear hospitais e matar equipe médica.
O que acontece, então, quando você adiciona coronavírus neste caldeirão? Parece que estamos prestes a descobrir.
Em 22 de março, Gaza confirmou seus dois primeiros casos de COVID-19, levando a organização israelense de direitos humanos B’Tselem a alertar que a propagação do vírus na Faixa “será um desastre maciço, resultante inteiramente das condições únicas criadas por mais de uma década de bloqueio israelense”. Dado que o sistema de saúde de Gaza “já está à beira do colapso”, o grupo prevê um “cenário de pesadelo” – que Israel “criou e não fez nenhum esforço para impedir”.
Os dois casos iniciais de coronavírus foram palestinos retornando a Gaza do Paquistão. Mais sete casos foram relatados em sequência entre os guardas de segurança alocados nas instalações de quarentena onde os repatriados estavam detidos, e um caso adicional já foi confirmado.
A Al Jazeera escreve que os dois milhões de habitantes de Gaza foram “estimulados a tomar medidas de precaução e praticar o distanciamento social, ficando em casa em uma tentativa de impedir a propagação do vírus”. Mas como as pessoas deveriam distanciar-se socialmente em um espaço tão lotado que mal há espaço para respirar? E que tipo de trauma psicológico ocorrerá quando uma população já traumatizada for forçada a se aprisionar na “maior prisão ao ar livre do mundo“?
Em 2012, a ONU previu a inabitabilidade iminente da Faixa de Gaza – um território formado principalmente por refugiados palestinos e cada vez mais cercado por Israel – o então porta-voz da Oxfam Karl Schembri fez a pergunta apropriada: “Como você pode falar sobre intervenções diante do estresse pós-traumático em Gaza quando as pessoas ainda estão em constante estado de trauma?”
Ele fez referência aos jovens traumatizados após a Operação Chumbo Fundido de 2008–9 onde Israel matou mais de 1.400 palestinos em Gaza, incluindo mais de 300 crianças. Isso foi seguido pela – entre outras exibições homicidas – pela Operação Pilar Defensivo em novembro de 2012, no qual as forças armadas israelenses eliminaram quase 200 palestinos, e a Operação Margem Protetora em 2014, na qual mataram 2.251 palestinos (incluindo 551 crianças).
Desnecessário dizer que os serviços de atendimento psicológico estão entre os serviços médicos em falta na Faixa de Gaza. E, assim como nos bombardeios israelenses, é certo que a chegada do coronavírus produzirá tormento psicológico em uma área ultra confinada, onde até a ideia de fuga física é geralmente impossível.
Como o acadêmico israelense Neve Gordon se pergunta no The Nation: “como os 113.990 refugiados que vivem no campo de Jabalia [de Gaza], que cobre uma área de apenas 800 metros quadrados, podem manter distância física um do outro?” Há também o caso do campo de Al-Shati, onde “a densidade é ainda pior, com 85.628 refugiados em uma área de 0,2 milhas quadradas” e apenas um único centro de saúde e centro de distribuição de alimentos.
O resultado, segundo Gordon, é que “dentro dos oito campos de refugiados de Gaza, os sistemas organizados para salvar vidas – assistência médica e suprimento de comida – se tornarão, sem dúvida, gargalos letais para o mortal” coronavírus.
Certamente, os pedidos pelo fim do cerco israelense a Gaza – a única coisa justa e sensata a se fazer, especialmente neste período de pandemia global – ressoarão em ouvidos surdos. Pode-se contar com a maioria do público israelense para endossar qualquer tipo de mortalidade que possa acontecer aos palestinos, e os Estados Unidos podem confiar nas políticas assassinas de Israel em Gaza através de bilhões de dólares em ajuda e insistência perene de que Israel tem o direito em “defender-se” contra os palestinos que estão sendo massacrados. Portanto, o governo de Israel se sente confortável para bombardear Gaza sem parar, com coronavírus ou não.
Enquanto isso, um editorial recente do Jerusalem Post intitulado “Bom trabalho, Israel” afirma que “todos” em Israel deveriam “dar um tapinha nas costas” por sua resposta exemplar ao coronavírus no país, apesar do fato de que os ultra-ortodoxos “e setores árabes… estão demorando mais para internalizar a urgência e seriedade que o vírus apresenta e os que não seguirem as diretrizes terão que lidar com a morte”.
Afinal, não há melhor momento como o atual para uma boa dose de racismo contra palestinos que há muito tempo são tratados por Israel como uma doença.
O Post enfatiza ainda que “estamos em guerra” contra o coronavírus e que “somente com unidade e perseverança poderemos derrotar esse inimigo invisível”. Mas, visto que os habitantes da já inabitável prisão ao ar livre, repentinamente enfrentam as consequências catastróficas de uma guerra biológica infligida por um inimigo israelense muito visível, é claro que nenhum tapinha nas costas trará ordem – apenas condenação global e mais uma denuncia para colocar o fim no escandaloso bloqueio.
Sobre os autores
é a autora de The Imperial Messenger: Thomas Friedman at Work (O Mensageiro Imperial: Thomas Friedman no Trabalho), Marytrs Never Die: Travels through South Lebanon (Mártires Nunca Morrem: Viagens pelo Sul do Líbano) e, mais recentemente, Exile: Rejecting America and Finding the World (Exílio: Rejeitando a América e Descobrindo o Mundo). Ela é editora colaboradora da Jacobin.