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Tesla Roadster de Elon Musk, com a Terra em segundo plano, em 6 de fevereiro de 2018. SpaceX / Flickr.

Elon Musk não é o futuro

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Tradução
Everton Lourenço

Os bilionários CEOs de tecnologia querem construir um mundo utópico para si mesmos, enquanto o resto da população vive uma distopia cada vez maior.

No Vale do Silício não faltam grandes ideias para o transporte. No futuro, na visão deles, nós teremos cabines sem motorista para percorrermos distâncias curtas – poderemos até nos translocar por uma rede de túneis subterrâneos que supostamente nos levarão aos nossos destinos mais rapidamente – e para viagens interurbanas, mudaremos para cabines em tubos de vácuo que nos dispararão para o nosso destino a 1.220 kms por hora.

No entanto, essas fantasias dos bilionários CEOs de tecnologia são apenas isso: fantasias. Nenhuma dessas tecnologias se concretizará da maneira que eles prometem – isso se alguma vez chegarem a se tornar realidade. A verdade é que as tecnologias de que precisamos para transformar nossas redes de transporte já existem, mas as populações ocidentais ficaram presas em um sistema datado e dependente do carro por tanto tempo, ao mesmo tempo em que lhes era negada o acesso a essa tecnologia do presente – quem dirá a do futuro – por políticos que estão nos bolsos do lobistas dos combustíveis fósseis e viciados em uma ideologia prejudicial – de “livre mercado” -, que eles vão acreditar em qualquer vendedor de óleo de cobra – ou empreendedor rico – que apareça com uma solução.

E, de todos eles, Elon Musk é o pior.

O bizarro culto a Musk

Para grande parte da imprensa de tecnologia, cada palavra de Musk é um evangelho. Junto das frequentes comparações com Steve Jobs vem a idéia simplista de que Musk, por ter construído algumas empresas de sucesso, ele deve ser infalível; se ele afirma conhecer a solução para a crise do transporte que os EUA enfrentam, ele deve estar certo. Afinal, ele é um empresário rico e, se as últimas décadas de discurso político nos ensinaram alguma coisa, é que você sempre deve confiar no empresário.

Mas a realidade é que as idéias de Musk em torno do transporte são, na melhor das hipóteses, mal elaboradas ou, na pior, projetadas para atrasar a construção da infraestrutura de transporte que poderia puxar os EUA para o século XXI.

Isso significa que tudo que Musk toca é problemático? Não necessariamente. Ele definitivamente merece algum crédito por elevar o perfil dos veículos elétricos e por ajudar a impulsionar a indústria nessa direção, mas, no que diz respeito ao transporte, é só isso. Sua visão do futuro não é emancipadora ou mesmo particularmente inovadora; na verdade, é bastante conservadora.

A imaginação de Musk tem dificuldade para se afastar dos limites do automóvel; cada uma das suas supostas soluções possui veículos – Teslas – no seu núcleo. A publicidade da SolarCity enfatiza a vida suburbana, dependente do carro; a empresa Boring é uma tentativa ineficiente e impraticável para resolver o congestionamento do tráfego sem reduzir o número de carros; e até mesmo a sua proposta de Hyperloop deixou a porta aberta para enfiar veículos em tubos a vácuo.

O futuro suburbano (e insustentável) previsto por Elon Musk. Tesla / YouTube

Isso não deve ser surpresa, visto os comentários recentes de Musk sobre como o transporte público é “um pé no saco”, onde “há um monte de estranhos aleatórios, um dos quais pode ser um assassino em série”. Ele valoriza o transporte individual porque não quer estar em torno de outras pessoas – até mesmo parece ter medo delas, com base em seus comentários – mas enfiar todo mundo em seus próprios veículos simplesmente não funciona no mundo cada vez mais denso e urbanizado em que vivemos.

A verdade é que, em vez de bajular Musk e seus colegas “gênios da tecnologia”, precisamos adotar uma visão crítica sobre suas propostas para ver quem realmente se beneficiaria e se suas visões deixam de levar em conta considerações fundamentais que seriam essenciais para torná-las viáveis no mundo real. Não podemos ser enganados por CEOs de tecnologia que colocam seus próprios desejos de transporte e sua sede de lucro antes das necessidades de muitos.

As soluções das gigantes de tecnologia para o transporte não funcionam

Os veículos sem motoristas são a característica central da visão de transporte do Vale do Silício e a mídia comprou as afirmações das grandes empresas de que eles já estavam quase ali na esquina, mesmo quando pessoas como Musk prometiam que eles estavam a dois anos de distância e então, dois anos depois, prometiam que eram dois anos de distância novamente.

A realidade é que eles não estão a dois anos de distância; pelo menos não as cabines sem motoristas nem volantes, capazes de navegar em todas as condições meteorológicas ou rodoviárias que encontrarem. Muitas empresas de tecnologia e automotivas tinham cronogramas semelhantes aos de Musk, e todos foram empurrados para 2021 ou mais tarde. E embora eles estivessem fazendo um grande progresso por um tempo, conforme eles aprendiam a dirigir em estradas suburbanas largas e vazias, em situações de clima claro e ensolarado, dados recentes da Waymo – um dos líderes da indústria – mostram que o progresso travou.

Veremos mais serviços de táxi sem motorista nos próximos um ou dois anos, mas é importante reconhecer que os veículos terão capacidades de nível 4 e não nível 5. Isso significa que eles estarão limitados a operar em certas áreas, como o serviço da Waymo em um subúrbio de Phoenix, no Arizona, e que terão dificuldades em densos centros urbanos com ruas movimentadas e em áreas com muita chuva e neve, que podem obstruir seus sensores. As empresas que os colocarem nessas situações de qualquer maneira, como Uber e Tesla já fizeram, podem se meter em problemas, conforme os relatórios sobre acidentes e transgressões no tráfego continuam a se acumular.

Mas se colocarmos todo mundo em seus próprios veículos, para onde todos irão? Musk quer construir um túnel subterrâneo para carros para aqueles que quiserem escapar do trânsito. Sua retórica sugere que isso seria aberto a todos, mas a realidade do espaço limitado e dos altos custos de construção restringiriam o seu número de usuários ao grupo dos ricos – ou possivelmente um grupo muito menor, já que o primeiro túnel planejado por Musk corre convenientemente do seu local de trabalho para a sua casa.

Musk não vai admitir que seus túneis serão excludentes. Ele promove a Boring Company como um meio de reduzir massivamente o custo do túnel – “poderia até mesmo beneficiar o transporte público!” – mas novamente, sua afirmação mostra sua ignorância. Musk diz que sua abordagem finalmente reduzirá o custo dos túneis, mas projetos de metrôs em Madri, Seul e Estocolmo já alcançaram custos semelhantes àqueles que Musk promete que só ele pode entregar.

Uma investigação do New York Times sobre o alto custo dos projetos de metrô na cidade de Nova York descobriu que, enquanto o metrô da Segunda Avenida custou US$ 2,5 bilhões por milha (1.6 km), uma expansão similar do metrô de Paris está bem encaminhada para custar apenas US$ 450 milhões por milha. Existem muitos fatores que contam para o alto custo dos projetos de transporte nos EUA que Musk não aborda, ou por ignorância, ou por ser intencionalmente enganador. Este pode ser o caso com o Hyperloop.

Musk publicou sua proposta de Hyperloop em 2013, depois que o projeto de trens de alta velocidade da Califórnia havia sido aprovado pelos eleitores, mas antes da construção ter início. Parecia o futuro: um tubo de vácuo que te dispararia entre São Francisco e Los Angeles em meia hora e custaria apenas US$ 6 bilhões – muitas vezes menos do que o trem de alta velocidade. O que haveria nisso pra não se gostar? Na verdade, bastante.

O enorme feito de engenharia necessário para o sonho de Musk de automobilidade urbana sem congestionamento. A Boring Company / YouTube

Não só a velocidade proposta seria incrivelmente desconfortável – mesmo nauseante – para os passageiros devido à força que seria exercida sobre eles, mas o Hyperloop levaria muito menos pessoas do que os trilhos de alta velocidade: 3.360 por direção por hora, em comparação com 12.000. Também se descobriu que os custos de construção eram completamente irreais, e Musk simplesmente mentiu sobre o consumo de energia dos trens de alta velocidade. As empresas que realmente estão tentando construir o Hyperloop descobriram que ele custa muito mais do que a proposta original de Musk: uma linha de 172 km por Bay Area custaria o dobro do que Musk indicou para toda a linha São Francisco-Los Angeles.

Semelhante ao caso dos túneis, a linha ferroviária de alta velocidade da Califórnia é cara em comparação com os padrões internacionais. Na China, tais projetos são de US$ 17-21 milhões por km, em comparação com US$ 29-39 milhões por km na Europa; enquanto na Califórnia está mais em torno de US$ 56 milhões por km. O Hyperloop de Bay Area ficaria na ordem de US$ 52-75 milhões por km. O alto custo dos trens de alta velocidade não é um problema de tecnologia, é um problema com a maneira como os EUA abordam projetos de infraestrutura.

Atrasando o avanço para servir a si mesmo

Defender idéias mirabolantes para retardar o progresso não é nenhuma novidade para o Vale do Silício, mesmo que não seja assim que a mídia os apresenta. Lembre-se de que muitas das suas “inovações” dependeram do financiamento público para pesquisa, enquanto as principais empresas de tecnologia são líderes mundiais em evasão fiscal. Toda vez que há uma iniciativa de votação sobre transporte público, serviços como Uber e veículos auto-dirigidos são usados para convencer os eleitores a se opor ao aumento do financiamento para ônibus e metrôs, os posicionando como as tecnologias do passado – mas nada poderia estar mais longe da verdade.

Em nosso mundo cada vez mais urbanizado, o transporte público é essencial para deslocar um grande número de pessoas de forma rápida e eficiente. O transporte individualizado favorecido por tecnólogos não fornecerá o mesmo nível de eficiência porque não há espaço – sem falar em recursos naturais e produtivos usados na fabricação, alimentação e manutenção dos veículos – para que todos tenham seu próprio veículo ou cabine sem motorista, conforme reduzimos o espaço rodoviário para ampliar as calçadas e adicionar pistas de bicicleta.

Musk e seus colegas CEOs de tecnologia promovem veículos autônomos como o futuro porque é o futuro que eles desejam. Eles não querem estar em um metrô ou trem, perto de pessoas comuns – como Musk já disse, um deles pode ser um assassino em série! É preocupante o quanto eles querem isolar-se das pessoas comuns, mas a realidade da mobilidade urbana é que apenas uma pequena parcela da população pode usar o transporte individual até que ele simplesmente deixe de funcionar. Isso é parte da razão pela qual o congestionamento do tráfego é tão ruim em nossas cidades; todos esses carros simplesmente não cabem, e a solução não é fazer com que a inteligência artificial tome o volante, mas deslocar as pessoas de maneiras mais eficientes.

Acima de seus desejos pessoais, Musk tem interesse financeiro em manter o domínio automotivo no século XXI – pois ele dirige uma empresa de automóveis! O transporte público e os trens de alta velocidade são diretamente opostos aos seus interesses, razão pela qual ele difunde idéias que nunca se concretizarão, mas que podem ser usadas por certos grupos privilegiados para fazer campanha contra o financiamento de um transporte eficiente.

Yonah Freemark / The Transport Politic

Enquanto a infraestrutura dos EUA desmorona e o foco é em reparar o que já existe em vez de construir algo para o futuro, a China e a Europa construíram extensas redes de trens de alta velocidade e de transporte público. Seus cidadãos estão se beneficiando de tecnologias que foram projetadas para mover eficientemente um grande número de pessoas, enquanto os norte-americanos [e os brasileiros] estão, infelizmente, presos em seus veículos com tempos de deslocamento diário cada vez maiores.

As pessoas precisam parar de beber o vinho do Vale do Silício e começar a exigir melhores opções de transporte que os libertem da dependência do automóvel. As marés parecem estar virando, conforme cidades de todo o país aprovam iniciativas de votação para expandir o transporte público e a Califórnia avança com sua linha ferroviária de alta velocidade diante da intensa pressão da visão de curto-prazo dos conservadores.

Não é verdade que o investimento público não gera prosperidade – é só olhar para o sistema de rodovias interestaduais -, mas vai precisar de vontade política, maior escrutínio dos empreendedores de tecnologia e um fim à agenda da austeridade para que o governo volte a investir no futuro uma vez mais. Enormes investimentos em ciência e infraestrutura ajudaram os EUA a se tornarem a principal potência mundial, e a construção de uma rede ferroviária nacional de alta velocidade e a expansão em massa do transporte público – semelhante ao que a China realizou na última década – seria o movimento de pensamento progressista necessário para mostrar aos estadunidenses que seu país ainda pode alcançar grandes conquistas sociais.

Sobre os autores

é um escritor de tecnologia canadense. Ele é o apresentador do podcast Tech Won't Save Us e autor do livro Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation (Verso, 2022).

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Austeridade, Ecologia and Tecnologia

6 Comments

  1. […] forma da autoajuda, como dissecado por Barbara Ehrenreich, ou como o pseudo-utopismo sem-vergonha dos plutocratas do Vale do Silício. A classe dirigente nos diz que o futuro é inevitavelmente […]

  2. […] ya sea en forma de autoayuda como lo dissecciona Barbara Ehrenreich, o como el psedo-utopismo de los plutocratas de Silicon Valley . La clase dominante nos dice que el futuro es inevitablemente brillante, […]

  3. […] Em vez daquele outro mundo, o que obtivemos foi um gerido por meia dúzia de ITTs – todas legitimadas pela noção de que a inovação seria uma questão de ideias e ideais, e não das meras relações de poder e poderio militar. Apesar de todas as suas deficiências, Allende, que venceu as eleições chilenas mesmo diante da oposição tanto da ITT quanto da CIA, sabia que a inovação no mundo real não tem nada a ver com a teoria dominante. E é por isso que, apesar de todas as suas contribuições para o socialismo democrático, o seu maior legado talvez esteja na mobilização da Escola de Santiago, mostrando ao mundo um caminho para a tecnologia democrática. […]

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