“Presente de grego, né? Cavalo de Troia, nem tudo que brilha? Não é relíquia nem joia!”
(Racionais MC´s)
A fantasia mais cara ao capitalismo é a sensação de poder pelo acúmulo de dinheiro. É claro que se trata de uma fantasia: o dinheiro ao ser acumulado serve ao capital, e tem nele a sua finalidade. O indivíduo serve a essa acumulação, a personifica. Abandonemos, entretanto, a noção vulgar de que fantasias não produzem realidades. A fantasia gerada pela posse de dinheiro está ligada à crença de que a realização do consumo dá ao indivíduo a plena satisfação do desejo – e a felicidade possível, neste mundo real, no qual o dinheiro é quem manda. É, portanto, uma fantasia de poder que produz realidades. E ao fazê-lo impulsiona o necessário automatismo do movimento de acumulação capitalista que repousa sobre mercadoria, com suas manhas teológicas e metafísicas.
Dinheiro é poder. Como observa Marx, o indivíduo carrega no bolso seu poder social e seu nexo com a sociedade. É o mesmo Marx que salienta, no entanto, que o único sujeito genuíno do processo é o próprio capital, que converte seu portador em mero suporte de uma reprodução expansiva. O paradoxo é que até o indivíduo capitalista é ele também subordinado ao movimento obsessivo, enlouquecido, do capital – com a vantagem, nada desprezível, de que ao contrário do trabalhador ao menos usufrui da riqueza produzida no processo.
O acesso a essa riqueza tem sem dúvida seus prazeres, mas não significa, porém, que o capitalista também não seja mutilado em suas possibilidades de auto-desenvolvimento, uma vez que está obrigado, sob a ameaça de perder o estatuto privilegiado de capitalista, de se submeter às tarefas requisitadas para a vitalidade de seu próprio capital: lidar com a concorrência, observar os movimentos globais das bolsas, tornar-se um perspicaz rentista, etc. O capitalista, portanto, é também dominado pelo impulso do capital. Para dizer como Herbert Marcuse: a sociedade da mercadoria é uma sociedade inteiramente administrada pelas formas da realização da mercadoria.
No interior dessa sociedade, é natural que aqueles que habitam as áreas de exclusão, condenados ao sub-consumo no mundo do consumo, passam a entender essa pulsão por dinheiro como algo “melhor” do que a vida miserável que levam. Não ter dinheiro é não ter poder. É preciso observar também, no entanto, como a forma do discurso que reforça tal pulsão opera no interior da estrutura de uma sociedade racializada (e colonialista), atravessada por uma política de controle sócio-racial. Bastaria assistir qualquer jornal matinal brasileiro para ver – para além do assassinato cotidiano de jovens negros pela polícia – como a vida de milhares de brasileiros abaixo da linha da pobreza deixa explícita que a diferença entre as classes se acentua com a marcação racial.
Armadilhas da identidade
A identidade é um processo de organização simbólica que estrutura o Ego e participa da tomada de consciência que o indivíduo tem de Si, é o que Freud e toda a psicanálise acabou descobrindo. A identificação do Eu – o processo primário de construção simbólica da identidade – marca-se por um discurso: uma linguagem que, com relação às sentenças que produz, precisa se justificar meta-linguisticamente, isto é, prestando contas com o entorno social e suas formas de delimitação dos significados discursivos organizados historicamente.
O que é ser negro? O que é ser branco? O que é ser latino nos EUA? Palestino em Jerusalém? As respostas são dadas por um discurso que ajuda o indivíduo marcado por essas identificações a simbolizar sua identidade. Uma lição útil da psicanálise é que o que caracteriza a fundamentação de um discurso é o significante que ele representa, não o sujeito concreto que o carrega. Por isso, não se trata de se livrar do capitalista enquanto indivíduo, mas da forma que sustenta o capital, isso é, do modo reprodução social como um todo. Por outro lado, não se trata de ignorar a identidade forjada por esse discurso, mas de atravessá-la.
Se a fundamentação social também se baseia no discurso formatado pela prática material da organização da vida, isso nos ajuda a entender outra frase famosa do velho Marx: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.”
O problema de acatar o discurso da ordem legitimador da exploração capitalista é que tal ordem se mantém por meio de imensas desigualdades, e precisa reproduzi-las continuamente – violentamente – para continuar existindo em relativa normalidade. Esse é o limite do antirracismo de moda propagado pela mídia. Até onde esse antirracismo consegue ir? E até onde deveria ir o nosso?
O que vemos agora é que o sonho liberal, vendido como um discurso de liberdade, de uma sociedade equilibrada e inclusiva, capaz de atenuar a luta de classes e administrar com tranquilidade os conflitos sociais, fracassou espetacularmente por toda a parte. A desigualdade, necessária para a reprodução do capital, exige a construção violenta de diferenças excludentes. Para proteger essa desigualdade se levantam fronteiras e se mobiliza o medo. Na raiz dessa desigualdade constitutiva de uma sociedade de classes encontra-se o processo social de identificação para a demarcação dos corpos e a prática necessária, como lembra Achille Mbembe, de gestão e administração da necropolítica, da identificação dos que podem ser mortos ou deixados para trás.
Na vida administrada pelas formas do capitalismo, que são promovidas pelo discurso liberal, é muito comum chamar de “progressista” a inclusão de pessoas marcadas pela racialidade por meio do consumo. É preciso pensar que esse antirracismo estruturado pelos limites da vida capitalista pode funcionar para alguns, mas é extremamente limitado.
O fato cada vez mais evidente é que a dinâmica capitalista já não é capaz de absorver a massa de despossuídos que não têm nada para vender além da própria força de trabalho. Cresce uma população excedente global, jogada de um lado para o outro como desempregados, refugiados, ou imigrantes ilegais. Trata-se exatamente do que Mbembe chamou de “devir negro do mundo”: um exército de reserva gigantesco – definido por sua aparência física, em sua escolha religiosa ou em sua nacionalidade, para controle estatal – que se torna um “problema de polícia”.
O perigo é que por trás da fachada “progressista” e “liberalizante” das fórmulas inclusivas de consumo avança um processo de definição e divisão que reforça a gramática neoliberal: o processo de identificação dos corpos, de crescente limitação à identidade. A rápida ascensão de um tipo de indivíduo essencialmente limitado, e preso, ao modo de sociabilidade da mercadoria é a marca distintiva dessa oferta de inclusão no mercado e seu discurso que impregna a vida comum.
Esse processo de neoliberalização da vida espiritual de uma época, que favorece o narcisismo, tomou conta também da esquerda liberal, com resultados que seus apologistas, ingênuos ou mal-intencionados, não puderam antecipar. Tais condições neoliberalizantes produziram uma pulverização de demandas e lugares demarcados por pautas performativas. Uma pós-política espetacular, individualizante, fragmentária, que cria um solo fértil para a emergência de políticas de exceção da mais perigosa qualidade. Aliás, do Brasil aos EUA, cruzando países bálticos que já homenageiam membros da SS hitlerista, é o que se vê.
A ordem liberal suporta com tranquilidade os espaços racializados para controle e demarcação. A inclusão no mercado não pode fornecer respostas efetivas contra o racismo.
O discurso que fomenta essa estrutura simbólica, e domina o imaginário geral da política reduzida aos limites proposto por essa forma neoliberal, joga os indivíduos na busca por uma identidade imóvel, de um lugar fixo essencializado, renovando assim o decrépito pensamento de identidade nacional, cultural, étnico e religioso. Reativou-se até a própria noção de raça superior – que, a bem da verdade, nunca saiu de moda – e a exclusão que promove.
Nas ruínas do capitalismo tardio, o pressuposto da noção de raça, da “nossa identidade”, se ergue para eliminar, em nome da sua diferença, a própria diferença que lhe é alheia. E assim, se uma identidade mantém uma relação que não é a da partilha com outra, se fecha em si mesma. A velha Europa, ultra-identitária, conhece bem essa regra. Noutros termos, quando a identidade não se vê implicada por essa Outra identidade, que fornece uma negação ao seu Eu, não alcança a posição de sujeito, pois tornar-se sujeito é justamente saber que as diferenças fundamentais entre o Eu e o Outro são aquilo que nos formam, e, que, a identidade é uma travessia, não algo em que se possa permanecer. Somos múltiplas identidades que podem nos determinar, mas que não podem nos definir porque a liberdade de atravessar pelas encruzilhadas dessas identidades é aquilo que nos torna Sujeitos.
Acreditar-se não dilacerado pela diferença no espaço mundo/outro é se marcar totalmente pela diferença, porque não se sai do tensionamento da negação. É nesse sentido que a consciência do racista e do fascista são unitárias: ambas precisam eliminar a diferença, a contradição, a negação à sua fé, para se sentirem completas.
Por um antirracismo que vá às raízes
O processo de produção e reprodução do capital necessita da desigualdade para o seu funcionamento. A desigualdade geral no mundo do trabalho atual está implicada no espaço do mercado, na forma mesma de seu funcionamento. Enxergar nesse espaço uma possibilidade de superação dos processos racialistas é uma ilusão: a desigualdade operada no interior do processo de reprodução do capital impõe a construção de diferenças controláveis e assépticas que reforçam seu movimento.
Se nosso antirracismo for conivente com essa forma, se acreditarmos que só iremos até aí, não seremos antirracistas o bastante porque manteremos intocados o significante raça que dá sustentação a ordem excludente e desigual do capitalismo. É preciso ultrapassar esses limites, estar à altura da encruzilhada histórica em que estamos e atravessarmos o caminho rumo à uma política de verdadeira emancipação universal na qual as diferenças não sejam marcadores de desigualdade sociais e atendam por uma forma de administração dos corpos. Silvío Almeida deu a letra: ser antirracista é incompatível com ser defensor da ordem que impera no mundo nesse momento.
Sobre os autores
é doutor em filosofia política, ensaísta e escritor autor dos livros "Racismo" e "Lugar de negro, lugar de branco?".