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Karl Marx insistia que devíamos compreender o quanto o capitalismo liberal representava uma ruptura radical com o passado.

Por que os conservadores não conseguem rebater os argumentos de Marx

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Tradução
Caroline Freire

Comentaristas conservadores tendem a fazer mais caricaturas das obras e pensamentos de Karl Marx do que responde-las de maneira séria. Por quê? Porque as sacadas incisivas de Marx expõem as profundas inconsistências nas suas queridas doutrinas de direita.

Se você quer enfurecer um intelectual conservador, experimente afirmar que as teorias de Karl Marx têm algum valor. Ou pior, argumente que as ideias de um homem que escreveu vários livros sobre os mais diversos assuntos, de filosofia alemã às premissas da economia política clássica, teriam mais nuances que “os ricos são maus, os pobres são bons”. 

Mesmo décadas após o fim da Guerra Fria, muitos comentaristas de direita continuam não se dando ao trabalho de oferecer refutações aos argumentos de Marx que tenham alguma consistência. Jordan Peterson já descreveu o marxismo como uma “teoria do mal” e fez seu nome criticando um certo “marxismo pós-moderno”, mesmo admitindo durante um debate que não havia lido muito mais que o Manifesto Comunista.

Em sua última obra, Don’t Burn This Book (“Não queime este livro”), Dave Rubin compara o socialismo ao nazismo e ao fascismo, alegando que Benito Mussolini fora “criado com O Capital, de Marx” –  ignorando todos os esforços do líder fascista para aprisionar e silenciar marxistas e outros “inimigos da nação”. Mais recentemente, o livro How To Destroy America in Three Easy Steps (“Como destruir os EUA em três passos simples”), de Ben Shapiro, recicla antigos clichês sobre o “absurdo” da teoria do valor-trabalho de Marx, sem perceber a ironia de elogiar John Locke por ele “apontar corretamente como a propriedade é uma mera extensão do trabalho; quando o homem altera o estado natural de um objeto, misturando com o seu trabalho, ele agrega um pouco de si a este objeto e, consequentemente, faz dele sua propriedade”.

Essa tendência de criticar Marx sem, de fato, abordar suas ideias é bastante notável, principalmente se pensarmos que Peterson, Rubin e Shapiro estão sempre repetindo feito papagaios clichês sobre a importância do trabalho árduo e do debate acalorado. Uma maneira fácil de impugná-los seria simplesmente insistir em que eles não façam jus ao próprio discurso, entre uma apresentação e outra em canais conservadores.

Mas pretendo adotar uma abordagem um pouco diferente e sugerir que os conservadores evitam lidar com a obra de Marx de forma séria não só porque ele criticava o capitalismo, lançava polêmicas sobre religião ou por que ele suspeitava da hierarquia das classes, mas porque sua obra expôs profundas contradições das amadas doutrinas conservadoras. 

Dois exemplos dos mais evidentes: a inclinação conservadora para elogiar o capitalismo e, ao mesmo tempo, lamentar o declínio das tradições; e a tendência de invocar uma “natureza humana” imutável para açoitar críticos do capitalismo e, ao mesmo tempo, afirmar que os indivíduos devem ser compreendidos de acordo com as tradições e comunidades em seu entorno.

A transformação do mundo segundo Marx 

A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que ele mesmo invocou…
– Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (tradução de Álvaro Pina – Ed. Boitempo)

Os primeiros defensores do capitalismo liberal, como John Locke, muitas vezes usavam argumentos a-históricos. Eles afirmavam que os tipos de indivíduos e relações de mercado que estavam emergindo com o advento da modernidade, estiveram sempre presentes e refletiam verdades atemporais sobre o mundo e a natureza humana. Foi somente com Immanuel Kant e, mais tarde, com Friedrich Hegel, que os teóricos começaram a pensar criticamente sobre as novidades radicais que representavam as sociedades capitalistas liberais.

Para muitos desses pensadores, a novidade era motivo de comemoração. Em seu ensaio “O que é o Iluminismo?“, publicado em 1784, Kant escreveu que a humanidade estava despertando de sua “imaturidade auto-imposta” e que finalmente enfrentava o mundo como seres livres e racionais. Hegel era mais crítico, argumentando que o individualismo revolucionário, emergente no século XVIII, precisava ser mediado por fortes instituições e relações sociais significativas (mais tarde, hegelianos de direita, como Roger Scruton, dariam um brilho conservador a essa proposição).

Marx compartilhava tanto da euforia quanto da ansiedade trazidas pela modernidade capitalista liberal. Desde seus dias como jovem hegeliano, ele elogiava a emergente ordem capitalista liberal como uma enorme melhoria em relação aos antigos sistemas autoritários que a precederam, mesmo acreditando que ela estivesse destinada a ser substituída por outra ainda mais elevada. Mas Marx também insistia que devíamos compreender o quanto o capitalismo liberal representava uma ruptura radical com o passado.

Escrevendo em plena era de imperialismo europeu e Revolução Industrial, Marx observou o quanto as antigas comunidades rurais estavam sendo destruídas à medida que as pessoas migravam para as cidades, e descreveu o capitalismo como um “mercado em constante expansão”, que espalhava a burguesia “por toda a superfície do globo”. Criticou a nova cultura de “fetichização da mercadoria” que começava a substituir a fidelidade religiosa de outrora, subvertendo a linguagem da fé com o objetivo de sublinhar a nova reverência da sociedade ao dinheiro.

Embora Marx tenha sempre considerado esses acontecimentos emancipatórios em muitos aspectos, insistia que essas mudanças também eram extremamente danosas, dissolvendo “relações fixas e cristalizadas” – violentamente, se necessário – para reconstruir o mundo à imagem do capital. O capitalismo era um modo de produção revolucionário, que transformava constantemente todos os aspectos da sociedade de maneiras inesperadas e, às vezes, assustadoras. Era o inimigo da tradição.

Os primeiros pensadores conservadores eram muito mais sensíveis às convulsões do capitalismo do que os muitos outros que vieram depois – eles reclamavam sobre como o sistema estava colocando o mundo de ponta-cabeça e impondo uma cultura burguesa vulgar, focada no consumo e na opulência, ao invés de procurar enaltecer virtudes transcendentais ou heroicas. Mas os autores recentes, como Shapiro, tendem a ignorar os problemas: mesmo olhando horrorizados para um mundo em que a urbanização, a secularização e o consumo desenfreado estão na ordem do dia, eles alegam que todas as críticas ao capitalismo seriam utópicas ou “marxistas”.

Se tivessem se dado ao trabalho de ler e realmente entender Marx, não ficariam tão surpresos. Um ponto essencial para Marx era que não dá para lamentar o declínio da tradição e, ao mesmo tempo, defender um sistema econômico que faz com que “tudo que é sólido se desmanchar no ar”. Culpar as elites culturais e acadêmicas pelas mudanças sociais é o mesmo que culpar a fumaça pelo incêndio. 

História e natureza humana 

Outro argumento padrão dos conservadores, ao criticar Marx, é simplesmente descartar a sua “teoria da natureza humana”: ou Marx seria perigosamente ingênuo por não enxergar o lado maldoso e egoísta do ser humano – o que demonstraria por que sua sociedade ideal e sem classes teria fracassado na prática – ou então ele acreditava que não havia uma natureza humana, mas que seríamos seres infinitamente plásticos, passíveis de sermos moldados e remoldados por um Estado suficientemente forte, racional e que estivesse comprometido com um planejamento utópico.

Ambas as afirmações são absurdas. Desde suas primeiras análises sobre como a natureza determina nosso “ser-espécie” até seus estudos psicológicos tardios sobre como o desejo por reconhecimento e status potencializa o “fetichismo da mercadoria”, Marx nunca foi utópico ou ingênuo sobre a propensão humana para a hipocrisia, a crueldade e o hedonismo. Onde Marx era mais inovador foi na demonstração de como as condições históricas e econômicas ao nosso redor desempenham um papel fundamental na formação de nossos padrões de comportamento e de nossas identidades. 

Isso não significa que somos determinados apenas pelo contexto histórico, mas que as condições históricas e econômicas sob as quais nascemos fornecem o ponto de partida com que todos temos que lidar. Como afirmou em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, “os homens fazem a sua própria história, mas não como querem, não sob circunstâncias de sua escolha, mas sob circunstâncias pré-existentes, legadas e transmitidas pelo passado.”

Na verdade, parte desse argumento deveria ter apelo para muitos conservadores. De Edmund Burke a Roger Scruton, uma reclamação comum da direita é que os radicais retratariam os humanos como seres a-históricos, que precisariam ser compreendidos puramente como indivíduos atomizados. Ao invés disso, eles enfatizam como todo ser humano está embutido em camadas de comunidade, que possuem tradições consagradas e morais moldadas pela história e por instituições como igrejas, templos, nações e até mesmo a sempre opaca “civilização ocidental”. Essas “pequenas brigadas” afetam nossas crenças e a percepção que temos de nós mesmos.

Os conservadores costumam dizer que ignorar a importância dessas comunidades históricas só pode levar ao desastre. Marx certamente iria concordar. Mas acrescentaria que também estamos inseridos em um sistema econômico específico e historicamente determinado, que tem um papel profundo na formação de quem somos e no que acreditamos.

É nesse ponto que muitos dos mesmos conservadores que insistem em analisar as comunidades e o comportamento humano através de uma ótica histórica e institucional, acabam se tornando a-históricos. Eles insistem que o capitalismo simplesmente flui da natureza humana, que ele sempre esteve por aí e que, portanto, sempre vai existir – e que qualquer esforço para mudar isso só poderia levar ao desastre, tão certo quanto se exigíssemos que peixes pedalassem em bicicletas. Essa trecho de Ben Shapiro é representativo:

Não, Marx não estava certo. Mas a esquerda jamais vai abandoná-lo porque ele ofereceu a única verdadeira alternativa à visão religiosa de natureza humana – de que o homem não é uma página em branco, nem um anjo esperando redenção, mas uma criatura imperfeita capaz de grandes feitos. Mas alcançar estes grande feitos exige trabalho árduo; mudar a nós mesmos em um nível individual dá muito trabalho. Falar sobre os males da sociedade em geral – isso certamente é bem mais fácil.

Mas o capitalismo não é mais ou menos natural do que qualquer outro sistema historicamente contingente, incluindo os sistemas religiosos. O que nasce na História pode também ser alterado ao longo da História. E agora que estamos afundando em outra recessão global, parece uma boa hora para promover grandes mudanças.

Marx merece críticos melhores

Marx dizia que os filósofos sempre interpretaram o mundo, mas que o objetivo é mudá-lo. Ironicamente, as interpretações de Marx – boas e ruins – ajudaram, de fato, a mudar o mundo, influenciando tanto movimentos revolucionários quanto tiranos. Isso prova o poder de sua personalidade intelectual e o alcance analítico da teoria marxista. Compreender corretamente os fundamentos do marxismo é fundamental para qualquer debate sério sobre o futuro do capitalismo e os antagonismos políticos que dão forma à nossa época.

Aos seus oponentes, isso também é um pré-requisito se pretendem fazer alguma crítica efetiva. Muitos comentaristas da direita parecem decididos a varrer Marx do caminho o mais rápido possível, ignorando ou minimizando suas nuances e especificidades. Também deixam intencionalmente de lado as lições do marxismo que abalam as seus próprios e sagrados clichês. 

Marx merece críticas melhores. E nós na esquerda que nos importamos com o seu complexo legado deveríamos fazer de tudo para que ele as receba.  

Sobre os autores

é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson".

Cierre

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Published in Análise, Antifascismo, Capital, Cultura, Economia, Livros, Política and Sociologia

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