Apesar da gritaria e dos resmungos do bolsonarismo e da direita liberal que tenta se vender como centro, o “populismo malandro” do “demiurgo de Garanhuns” (para parafrasear a capa da edição de março da revista Istoé), está vivo e fortalecido como há muito não se via.
De fato, a política brasileira vem sofrendo uma série de reviravoltas após as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) de declarar a nulidade das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da 13ª Vara de Curitiba, e o posterior reconhecimento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no julgamento. Com o turbilhão no meio político e na opinião pública provocado por um Lula elegível e de imagem revigorada para as eleições presidenciais de 2022, muda-se o tabuleiro da política – dentro e fora da institucionalidade – assim como muda também o comportamento e a movimentação de diversos atores e instituições frente ao cenário de pandemia e crise econômica.
A decisão, somada às movimentações posteriores de Lula e do PT em apresentar um discurso contundente contra o governo Bolsonaro, ao mesmo tempo que conciliatório e aberto a outros setores políticos (variando da esquerda radical à direita tradicional), serviu para reforçar a percepção de que Lula é candidatíssimo para 2022, assim como demonstrou a resiliência do petista, tanto na memória do eleitorado como na influência exercida no meio político – inclusive para além de seu partido e seu campo de influência mais imediato.
Aglutinando os polos
Após a definição da elegibilidade de Lula, já apareceram diversas pesquisas mostrando a competitividade eleitoral crescente do nome de Lula frente ao de Jair Bolsonaro – chegando ao ponto da última pesquisa Datafolha indicar uma larga vantagem do petista, e a possibilidade de vitória logo no 1º turno. Diversos nomes e setores politicamente relevantes mostraram abertura ao diálogo (ou pelo menos sinalizaram uma trégua nas hostilidades) com Lula e o PT – Arthur Lira, Rodrigo Maia, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e partidos do centrão como PSD e PL.
Ficou evidente a força de Lula como possível pólo aglutinador de setores de esquerda e centro-esquerda para o próximo ciclo eleitoral: o PSB, o PCdoB e o cotado Flávio Dino mostraram sinais de aproximação a Lula, e se observa uma abertura inédita de possibilidades para uma eventual aliança PT-PSOL. Ao mesmo tempo, isto contribui para um maior isolamento de Ciro Gomes e do PDT no interior do campo progressista, fazendo com que estes ensaiem uma nova guinada à direita, com um discurso antipetista e a aproximação de partidos explicitamente conservadores como o DEM – estratégia que não parece estar surtindo qualquer efeito, apesar do reforço do marqueteiro João Santana.
Com o novo cenário, abre-se uma janela de oportunidade para a esquerda e os setores progressistas imporem uma decisiva derrota, nas ruas e nas urnas, à onda reacionária que avançou desde 2014. Entretanto, uma pergunta que os setores sociais à esquerda do lulismo nunca deixaram de fazer se torna ainda mais importante neste momento: qual é o papel e a influência possível da esquerda radical/anticapitalista no processo político que (à exceção de um novo golpe) culminará nas eleições de 2022?
A esquerda radical e o próximo ciclo de lutas
Podemos partir de dois pressupostos. Primeiro, o processo eleitoral não é o fim único da mobilização política, e é essencial não deixar o jogo eleitoral – que já se intensifica – secundarizar as urgências do agora, bem como adiar a correção de erros cometidos pela esquerda nos últimos meses. Segundo, ainda que a construção de uma candidatura competitiva à esquerda do lulismo não possa ser descartada do horizonte possível, é forçoso reconhecer que as chances de uma vitória eleitoral liderada por este campo são escassas no futuro próximo. Atores políticos à esquerda do lulismo já se movimentaram no sentido de deixar o campo livre para Lula: é o caso, por exemplo, de como tem se posicionado o líder do MTST, Guilherme Boulos, se colocando como pré-candidato ao governo de São Paulo, e não à presidência da república. Até agora, a única pré-candidatura à esquerda do petismo apresentada é a do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ).
Por outro lado, os últimos acontecimentos mostram, para além de qualquer dúvida, a capacidade de Lula em injetar novo vigor na oposição ao bolsonarismo. Justamente por isso, pode atuar como pólo aglutinador de diversos setores, dispersos ou em conflito. Sua candidatura fortalece a posição dos setores à esquerda do centro na disputa. Mas para que isto se concretize, tal movimentação também deve estar associada a uma aproximação do campo progressista dos movimentos sociais – numa relação de diálogo e não de domínio – e se dedique à sério na construção de um programa comum e o mais avançado possível para o próximo ciclo eleitoral.
O “fator Lula”, portanto, não deve nos conduzir ao quietismo, ou a uma paciência resignada de que tudo acabará bem, pelos acordos por cima de costume. Esperar passivamente pela solução eleitoral é a pior estratégia possível. Ao contrário, cabe ver o novo cenário como uma oportunidade, na qual se torna não apenas mais possível, como crucialmente necessário, tensionar o debate público no sentido de promover mudanças qualitativas na “janela de Overton” – arrastar para a esquerda o centro de gravidade do centro comum e ampliar os limites do que é aceitável em termos de políticas transformadoras progressistas. Nada disso tem como acontecer, contudo, sem mobilização popular e luta de massas. Estamos obrigados, portanto, a encontrar um equilíbrio entre os cuidados sanitários e a necessidade de se fazer presença nas ruas como forma de fragilizar o governo de extrema direita e demonstrar força e capacidade de organização dos setores de oposição. As manifestações antirracista que aconteceram após a chacina do Jacarezinho e as carreatas anti-Bolsonaro organizadas em diversos estados do Brasil no mês de janeiro oferecem um bom exemplo de como isso pode ser feito, e uma nova jornada de lutas pode se apresentar no horizonte, com a convocação de diversas lideranças e movimentos sociais por manifestações contra Bolsonaro dia 29 de maio.
A maré vermelha está voltando na América Latina
Os acontecimentos recentes da política latino-americana mostram um cenário em boa medida positivo, apontando para o início de um refluxo da reação conservadora que prevaleceu a partir da metade da década de 2010. Apesar de não ser unívoco (considerando as vitórias de Lacalle Pou e Guillermo Lasso no Uruguai e Equador, respectivamente), esta tendência se inicia com o êxito eleitoral de López Obrador no México ainda em 2018, seguida pela vitória de Alberto Fernández na Argentina em 2019, a mobilização popular que levou à reversão do golpe na Bolívia em 2020, além da eleição da Assembleia Constituinte chilena que pode consolidar um novo pacto social no Chile após os protestos anti-neoliberais de 2019-20 e o bom resultado das forças de esquerda nas eleições para a Constituinte, prefeituras e governos regionais no país nos dias que ocorreram 15 e 16 de maio.
Soma-se a essas vitórias eleitorais, a força das manifestações populares de massa, antineoliberais e antiuribistas, na Colômbia, que coincidem com um momento de inédita força do setor esquerdista representado por Gustavo Petro, que lidera as pesquisas para as eleições presidenciais no país em 2022. No Peru, também marcado por poderosas mobilizações constituintes nos últimos anos, aponta para uma surpreendente chance de vitória da idiossincrática esquerda de Pedro Castillo, um professor sindicalista de um partido que se reivindica “mariateguista”.
A esquerda brasileira pode se fortalecer com a intensificação da solidariedade internacional e retomada ou desenvolvimento de novas e melhores oportunidades de integração regional. Frente ao isolamento internacional amargado por Bolsonaro na sua política externa de associação aos governos de extrema direita, aposta drasticamente fragilizada com a derrota de Trump, a boa construção de laços diplomáticos pela política dos anos petistas permite uma outra abertura para o fortalecimento do lulismo. A movimentação do ex-presidente no diálogo com governos, embaixadas e farmacêuticas de diversos países para a obtenção de vacinas é um sinal claro neste sentido.
Que aceno fazer ao centro?
E como fica a possível “guinada ao centro” de Lula, tão apregoada por jornalistas e analistas políticos liberais como condição de possibilidade para que o PT vença a eleição? Embora seja evidente que é preciso encontrar formas de mobilizar um eleitorado para além daquele que usualmente compõe a base histórica (relativamente estreita) dos partidos de esquerda, também é importante fugir do senso comum das teorias do “eleitor médio” e similares, que pressupõem que o único caminho para a vitória eleitoral é a moderação e o recuo programático.
Não faltam exemplos de que meios diversos de ampliar o arco de alianças e atrair eleitores moderados, ou sem forte identificação ideológica, podem ser explorados. Um deles é o aspecto comunicativo: a campanha de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo em 2020, embora tenha terminado na segunda colocação, foi bem sucedida em apresentá-lo como uma figura mais aberta, “pronta para governar”, sem que a campanha fizesse recuos sensíveis e sistemáticos no programa de governo.
Lula já realiza gestos comunicativos que estão provocando um efeito de suavização de sua imagem frente ao eleitorado e à classe política, como os encontros com grandes caciques da centro-direita como Gilberto Kassab, José Sarney e mais recentemente FHC. Ainda está em aberto, no entanto, quais serão as consequências destes gestos para o programa de governo da candidatura petista, bem como a política de alianças a ser implementada.
Avaliando o desenvolvimento dos debates nos diversos temas de políticas públicas é possível discernir quais campos permitem uma maior composição e diálogo com setores de centro, e onde, ao contrário, se faz estrategicamente necessário o enfrentamento e a polarização explícita. Esta questão é central no debate de política macroeconômica, fiscal e monetária. No momento em que a pressão política para colocar liberais ortodoxos nos cargos máximos do planejamento econômico do país se tornou bem menos persuasiva em meio a mudanças globais no mainstream econômico e quando países do norte e governos de diversos matizes ideológicos estão abertamente abandonando o receituário da austeridade, por que o Brasil deveria aceitá-lo? Em termos puramente pragmáticos, considerando o fracasso retumbante da política de ajustes e das contra-reformas neoliberais dos últimos anos, com consequências nefastas para a vasta maioria da população trabalhadora (e até para as contas públicas) insistir nesse caminho sabidamente ruinoso, e crescentemente desmoralizado, é a receita para o fracasso. A recuperação do emprego, dos investimentos públicos e o fortalecimento de políticas sociais são centrais para o êxito de qualquer governo progressista no futuro, e a concessão ao “centro” seria o caminho certo para a derrota.
No que diz respeito ao debate puramente eleitoral, como analisou recentemente o cientista político Bruno Reis, modelos espaciais que idealizam o eleitorado como composto por indivíduos racionais com preferências bem comportadas, coerentemente associadas em um eixo ideológico esquerda-direita linear, fazem uma simplificação grosseira da realidade. Tais avaliações superficiais são colocadas em xeque pelo que a figura de Lula desperta afetivamente em parcela significativa do eleitorado: uma boa parte dos que se inclinaram ao Bolsonaro em 2018 está mais ao alcance do lulismo do que qualquer outra figura política – mesmo as identificadas ideologicamente com a direita. Não é por acaso que Bolsonaro tenha sido dominado pelo medo do “efeito Lula”. Como nota Reis, “a vasta maioria das pessoas não se ocupa dessa racionalização da própria apreensão da política” – e Lula tem tamanho capital político que força outros atores e setores políticos a “gravitar” ao seu redor, ou ser influenciado por seus movimentos. Cabe à esquerda socialista saber utilizar sabiamente essa oportunidade a favor de suas próprias pautas.
Tensionando o debate à esquerda mesmo “perdendo”: o caso Biden
Um exemplo atual da importância de obter vitórias no debate público, e de manter a pressão de movimentos sociais sobre setores políticos mais ao centro, vem do recém-iniciado governo Biden. Movimentos sociais e mobilizações de rua – seja o Black Lives Matter, sindicatos na luta pelo aumento do salário mínimo federal no país para U$S 15/hora, grupos ambientalistas pró-Green New Deal e defensores da renda mínima universal, como lideranças políticas (especialmente os quadros em torno das candidaturas de Elizabeth Warren e principalmente Bernie Sanders e o chamado “Squad”) à esquerda tiveram papel fundamental para uma grande movimentação do debate público, forçando o centrista Biden, atento ao ponto “médio” do eleitorado de seu partido, a adotar não apenas um dos programas de governo mais progressistas desde Franklin Roosevelt, como também a de fato buscar a implementação de parte destas medidas nos primeiros meses de gestão.
O pacote econômico de quase 2 trilhões de dólares já aprovado, associado às medidas anunciadas dos pacotes de infraestrutura e ampliação de políticas sociais de educação e para crianças e adolescentes indicam um potencial da realização de uma gestão mais à esquerda do que o governo Obama, representando um afastamento, ainda que parcial e tateante, com a lógica neoliberal que reinou nos últimos 40 anos nos EUA – o que não seria um cenário previsível até pouco tempo atrás, considerando o perfil político de ambos os presidentes.
Esta tática também tem seus limites, visto que em outras áreas as mudanças foram menores ou inexistentes, como na continuidade da lógica imperialista e pró-Israel e na política migratória ainda duríssima e não muito distante da era Trump – isto não significa que Biden seja de esquerda, e muito menos que a cantilena da imprensa hegemônica por um “Biden brasileiro” deva ser um referencial para a esquerda.. O que vale a pena frisar é que na política doméstica o partido Democrata se sentiu obrigado a se reposicionar e a fazer concessões aos movimentos progressistas. E isso não se deve não a qualquer boa vontade liberal, mas à intensidade da mobilização de rua e da pressão organizada da esquerda.
Os caminhos possíveis das alianças eleitorais à esquerda
Como os exemplos acima ajudam a ilustrar, acordos e composições políticas não se dão no vácuo, nem em meio a um cenário estático e pré-determinado. A forma, a intensidade e a qualidade das concessões que serão feitas durante a articulação estão em aberto. A depender desse desenrolar, aparece no cenário não só a possibilidade reverter o ciclo da hegemonia ultraliberal vigente desde 2015, mas fazê-lo em composição com as principais organizações da esquerda anticapitalista.
Frente ao contexto de ampla incerteza, vários arranjos possíveis se apresentam. É real a possibilidade de uma frente eleitoral única de esquerda, já desde o primeiro turno com programa e candidatura comum, em torno de Lula. Muito provavelmente, se realizaria com a costura de uma coalizão ampla anti-bolsonarista, podendo incluir setores do centro e mesmo a centro-direita no primeiro ou segundo turno. Ao mesmo tempo, também existe a chance de que alguns partidos e movimentos da esquerda radical optem por não se alinhar imediatamente ao lulismo, preferindo inicialmente realizar um tensionamento político por fora. Os que preferem evitar uma guinada ao centro apontam para a dificuldade em participar de uma coalizão com setores que até hoje flertam e se beneficiam com o bolsonarismo, e que podem minar o potencial transformador de uma eventual nova vitória do petismo.
Este debate se apresenta notadamente, na atualidade, no interior do PSOL e movimentos próximos, onde há setores abertos – ainda que não decididos – à frente ampla de esquerda junto com o PT, e outros tendentes a uma candidatura própria (hoje aglutinados na mencionada pré-candidatura de Glauber Braga). Tal discussão está apenas no começo, e dificilmente será definida antes do período eleitoral de 2022.
Vale destacar aqui a legitimidade e mesmo o valor da pluralidade de táticas dentro da esquerda. A convivência de setores dispostos a fazer o tensionamento político dentro e fora de partidos, movimentos e candidaturas hegemônicas do campo é salutar e pode permitir uma retroalimentação positiva do debate, no sentido de empurrar não apenas a plataforma da futura candidatura de Lula, como toda a opinião pública à esquerda.
Para os socialistas democráticos, a melhor opção será aquela que, no cenário concreto a se apresentar no futuro próximo, aumentará as chances de reversão da agenda ultraliberal, conservadora e autoritária dos últimos anos no Brasil, criando, portanto, um melhor terreno político para o avanço das lutas da classe trabalhadora. É preciso reconhecer que Lula é peça central para a reconstrução do país após o desastre bolsonarista. Se, e como, a esquerda radical participará deste processo – seja compondo por dentro ou tensionando por fora – permanece ainda em aberto.
Cabe agora ao nosso campo continuar a luta diária contra o genocídio bolsonarista: pressionando dentro e fora das instituições pela oferta de vacinas à população, medidas efetivas de combate à pandemia, políticas para enfrentar os impactos e efeitos econômicos e sociais e intensificar a mobilização nas ruas pelo Fora Bolsonaro. Os atos do dia 29 de maio podem ser um bom primeiro passo na direção de uma mobilização de massas combativa que imponha uma derrota decisiva à agenda reacionária do bolsonarismo e abra caminho para a redemocratização do país. O Brasil e as esquerdas não podem esperar até as eleições de 2022.
Sobre os autores
é mestre em ciência política e bacharel em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
[…] Fonte […]
[…] maio de 2021, escrevi um artigo na revista Jacobin a respeito das diferentes táticas que a esquerda radical (ou, nomeada de outra forma, os setores […]