Repentinamente, o Brasil resolveu sediar a Copa América, mais antigo torneio continental masculino de futebol da América do Sul, um movimento dos aliados de Jair Bolsonaro na Confederação Brasileira de Futebol (CBF) — ratificado e defendido com unhas e dentes pelo próprio presidente — depois da recusa dos países-sede, Argentina e Colômbia, em virtude da pandemia de Covid-19. A decisão impulsionou um levante da Seleção Brasileira masculina, com risco inclusive da demissão do treinador Tite como retaliação, mas rapidamente houve uma acomodação, depois da suspensão do presidente da CBF e com os jogadores e a comissão técnica aceitando disputar o torneio, mesmo com críticas públicas.
É a maior tensão política envolvendo a Seleção em mais de cinquenta anos, desde a demissão do genial — e rebelde — treinador comunista João Saldanha pela ditadura militar. Saldanha foi até o fim com a denúncia internacional contra a ditadura e seus crimes, sendo sacado às vésperas da Copa de 1970, vencida em grande medida pelo seu trabalho. Poderíamos dizer que a história se repetiu, mas lembrando o velho Marx no 18 de Brumário: ali como tragédia e aqui como farsa.
Isso é sobre política, não sobre futebol. É a jogada mais evidente de Bolsonaro na direção da cooptação do futebol nacional. A interlocução constante com o mundo do futebol sempre fez parte da guerra cultural do presidente, apelando a jogadores e ex-jogadores para lhe defenderem, além de se articular a todo momento com dirigentes do Brasil e América do Sul e órgãos de mídia — que, inclusive, inclui mais um episódio de sua aliança com o SBT, rede de televisão do seu entusiasmado apoiador Silvio Santos, em detrimento da sua rival, a Rede Globo, que detém a hegemonia histórica de transmissão, sobretudo em relação aos Seleção.
Os militares e a tragédia de Saldanha
O bolsonarismo, assim como a ditadura militar, busca se afirmar culturalmente controlando o futebol. Quando os militares demitiram o icônico João Saldanha, não foi pelo fato dele denunciar internacionalmente a ditadura, se negar a escalar o time conforme os desígnios do ditador de plantão, general Emílio Garrastazu Médici, ou ser um comunista: os militares desejavam implementar a sua política para o futebol, o que implicava o uso político do esporte que é a paixão nacional dos brasileiros, mas também uma política para o próprio futebol.
Saldanha resistiu, e seu gesto tornou tudo mais escandaloso. A história, todos conhecemos: o ex-jogador Mário Jorge Lobo Zagallo assumiu a Seleção, não teve coragem de mudar o trabalho de Saldanha e foi campeão da Copa de 1970. Depois, ele quis instituir seu estilo e o resultado foi o fracasso na Copa de 1974, pelo qual Zagallo foi, com razão, crucificado — aumentando a insatisfação popular com o próprio regime militar.
Mas o estilo de Zagallo ia além de suas preferências, era a instituição das técnicas e do ideário da famigerada Escola de Educação Física do Exército. Os militares não queriam apenas controlar o futebol, mas de certa forma acreditavam ter a fórmula para mudar e “evoluir” o esporte. Depois, sob o comando de Cláudio Coutinho, um homem de confiança da ditadura que sequer foi jogador, igualmente perdeu a Copa de 1978. Saía o futebol-arte e entrava o futebol-força.
Enquanto isso, estádios eram construídos por todo país com dinheiro público e o Campeonato Brasileiro chegou a ser disputado por mais de noventa clubes, tudo para favorecer políticos locais com ligações, muitas vezes diretas, com o futebol. Era o pão e o circo da ditadura.
A não democratização do futebol
A queda da ditadura militar foi marcada pela articulação de muitos jogadores, o locutor oficial da campanha pelas Diretas Já, que reivindicava a eleição direta do Presidente da República, era Osmar Santos, principal narrador esportivo do país. A experiência da democracia corintiana com o Dr. Sócrates, Casagrande, Wladimir e tantos outros craques marcava um questionamento das relações hierárquicas no futebol, com muitos dos seus ídolos participando ativamente das manifestações contra o regime. Uma nova geração de dirigentes se levantava contra a estrutura podre da CBF, formando uma liga nacional, ainda que de forma acidentada, chamada o Clube dos 13.
Tudo isso, no entanto, foi dissuadido e desmontado com Ricardo Teixeira, genro do homem forte do futebol mundial, João Havelange, que assumiu o comando do futebol brasileiro no final dos anos 1980. O neoliberalismo, antes de chegar ao Estado brasileiro, chegou ao futebol de maneira, inclusive, mais radical, conseguindo salvar e repaginar as suas estruturas arcaicas, dessa vez transformando o futebol brasileiro em uma máquina exportadora de atletas para a Europa.
A pseudo meritocracia do neoliberalismo
O futebol virou um grande negócio moderno. Pela primeira vez, o sistema passou a produzir subjetividades por meio do próprio esporte. Jovens jogadores, normalmente negros e vindos da classe trabalhadora ou de comunidades muito pobres, eram iludidos com promessa de salários milionários que só são alcançados por algumas estrelas.
Mas essas poucas estrelas ricas são usadas normalmente como vitrines pelo sistema: cercados por gigantescos staffs e encabeçados por “empresários” e inúmeros profissionais em torno de si, jogadores se tornam uma vitrine da ideia de que pobres e negros podem progredir pelo “mérito individual”, estampando propagandas e sendo propagandistas de si mesmos, quando essa sequer é realidade do próprio mundo do futebol.
A desigualdade racial está estampada em um esporte onde, apesar dos elencos ilustrarem a diversidade étnica e de classe do Brasil, as comissões técnicas são incrivelmente brancas — enquanto entre os dirigentes, praticamente não há quem não venha da elite branca do país, fazendo valer, ainda, o apelido de “cartolas” dado a esse setor; eram e ainda são membros da burguesia que se apossaram do futebol brasileiro desde sua massificação e profissionalização nos anos 1930.
O mesmo se pode dizer da desigualdade de gênero, quando a modalidade feminina avança muito lentamente, com recursos financeiros muito menores e um tratamento pela mídia ainda marginal.
O fato é que se a breve experiência democrática do hiato de 1945-1964 nunca chegou realmente ao futebol, o interregno democrático de 1988-2016 tampouco alcançou o esporte bretão, onde a ideia de proibição de intervenção governamental no futebol, como o momento atual prova, só serviu para evitar a responsabilização de dirigentes e reformas necessárias na era democrática.
Bolsonaro de mãos dadas com o futebol
Se a democratização não chegou ao futebol, a chegada da extrema direita ao poder, invocando a ditadura militar se instalou rápido e facilmente por encontrar um terreno amigo. O terreno fertil para extrema direita veio logo após a estrutura da FIFA se desmanchar em escândalos de corrupção, o que abriu espaço para a queda de Ricardo Teixeira em 2012 por uma renúncia às vésperas da Copa do Mundo de 2014, que foi realizada no Brasil.
Depois de Teixeira, há uma sucessão de quedas e desencontros maiores, sem perspectivas de reforma no futebol brasileiro. Primeiro, caiu em 2015 José Maria Marín, ex-homem forte do regime militar no esporte, ligado à morte por tortura do jornalista Vladimir Herzog nos anos 1970 e hoje preso nos Estados Unidos por corrupção; depois Marco Polo Del Nero, banido do futebol pela próprio Comitê de Ética da FIFA em 2017; a gestão interina do “Coronel” Nunes, um ex-colaborador da ditadura militar, até chegarmos a Rogério Caboclo, suspenso por um caso estarrecedor de assédio sexual, eleito em 2018 de forma pouca democrática e transparente que é regra na CBF.
Caboclo desde os seus primeiros dias se mostrou aliado de Bolsonaro, que assumiu a presidência poucos meses depois de sua chegada ao topo do futebol brasileiro. A partir daí, coincide a liderança ultraconservadora do futebol brasileiro com um presidente de extrema direita que, como poucos, intervém no futebol: ainda como presidente eleito, Bolsonaro esteve em campo para receber o troféu de campeão brasileiro com seu alegado clube do coração, o Palmeiras em 2018.
Desde então, é comum ver Bolsonaro vestindo camisas de quase todos os clubes brasileiros em suas lives. Assim como era, até antes da pandemia, presença garantida nos camarotes dos estádios, sobretudo para ver jogos do Flamengo, seu outro time prefererido. Bolsonaro, inclusive, liderou uma verdadeira campanha pela volta da disputa dos torneios, ainda em abril de 2020, mesmo com o descontrole da pandemia e inúmeros surtos entre os elencos das principais equipes do Brasil.
A disputa da Copa América, portanto, foi só o gesto mais ousado nisso. Basicamente, era visto como uma manobra em várias direções: Bolsonaro salvaria o torneio da Conmebol, ganhando pontos com a confederação sul-americana, e junto disso articulou a transmissão da disputa pelo seu aliado televisivo, criando um evento de ufanismo nacional enquanto é bombardeado pela CPI da Pandemia no Senado — e registra sua mais baixa popularidade, enquanto vê a opinião da população sobre o impeachment crescer. Para iniciar os trabalhos, Bolsonaro tinha seu aliado na CBF fazendo o trabalho sujo de intimidar atletas e a comissão técnica.
Tite, talvez o treinador mais progressista desde Saldanha, e os jogadores receberam essa notícia com descontentamento, prometendo se manifestar após os jogos das Eliminatórias para a Copa. Mas enquanto isso acontecia, a comissão técnica era bombardeada pela mídia bolsonarista e pelo próprio filho do presidente — enquanto surgiam boatos sobre a reação destemperada do presidente da CBF, que inclusive cogitou demitir Tite e nomear o bolsonarista Renato Gaúcho para o comando da Seleção.
Caboclo foi afastado por acusações de assédio sexual comprovadas por áudios bem no auge da disputa nos bastidores — o que sugere que as informações disso já eram conhecidas, mas apenas seriam usadas no momento oportuno. A Seleção divulgou um manifesto tímido, que embora faça críticas à realização do torneio no Brasil, basicamente diz que isso nada tem a ver com “política” enquanto poupou Bolsonaro de críticas. Os jogadores pariram um rato, como aponta o combativo e histórico jornalista esportivo Juca Kfouri.
O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda julgará a realização do torneio na quinta-feira, mas alguns patrocinadores de peso já abandonam o torneio, em um exemplo, como no caso das vacinas, no qual o bolsonarismo consegue constranger até mesmo as grandes corporações globais. Ao que tudo indica, essa confusão ainda está longe de acabar.
Futebol, a alegria do povo real algum dia?
Há quem aponte o futebol como ópio das massas, embora haja poucas instâncias da vida brasileira que expresse as contradições sociais do país; de ser, junto da música, o primeiro palco da vida nacional no qual o povo brasileiro real, negro e pobre, pode expressar sua genialidade criativa e, ao mesmo tempo, ser um espaço de desigualdades e crueldade abissais.
A principal lição que Marx aponta no 18 de Brumário é que a História não se repete. Evidentemente, ali nos anos 1850, Luís Bonaparte encenava seu tio, Napoleão, enquanto aqui Tite certamente não tenha vocação ou pretensão de ser o novo Saldanha — embora a ocasião por ironia seja uma farsa daquela tragédia.
O que interessava a Marx não era nenhum historicismo, mas compreender e intervir nas tendências históricas. O 18 de Brumário francês foi uma tendência política que mais tarde se revelou nos anos 1920-1930. Aquela análise dizia respeito ao futuro e não ao passado.
Aqui, é o mesmo. É sobre futebol, mas é sobre a política e a luta de classes, de como transformar a enorme potência criativa do povo brasileiro em algo, verdadeiramente, em seu proveito. O que passa por derrotar uma elite torpe em suas múltiplas encarnações e máscaras.Com a Nova República se omitindo de reformar o futebol e, coincidentemente, o Judiciário e as Forças Armadas, os conservadores aproveitaram a crise da década passada para implantar uma agenda de desdemocratização. Entretanto, a história nos ensina uma lição vital: é preciso, mais do que nunca, lutar contra o bolsonarismo, compreendendo a sofisticação de seus movimentos, sobretudo neste momento que ele se torna mais perigoso justamente por estar mais acuado como nunca. Não é sobre futebol ou política, mas sobre o futuro.
Sobre os autores
é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.