Em 27 de agosto de 1978, o centro de São Paulo foi ocupado por mais de 20 mil pessoas em um protesto contra a carestia. A manifestação, concentrada na Praça da Sé, foi uma assembleia pública convocada pelo Movimento do Custo de Vida (MCV) para apresentar as demandas do movimento, resultado massivo de sua campanha de coleta de assinaturas. Em um ano, o movimento havia levantado um abaixo-assinado com mais de 1,3 milhão de signatários. A carta apresentava três demandas: o congelamento dos preços de produtos de necessidade básica, o aumento do salário mínimo e abono salarial imediato, e sem desconto, para todas as categorias profissionais.
O ponto de partida era um problema tão simples quanto imediato: o problema da “panela vazia”. Com o prolongamento da crise econômica, a população enfrentava o descontrole sobre os preços dos alimentos e de outros produtos de necessidade básica. Como diziam os panfletos do movimento, fazendo graça com as imagens de “progresso” vendidas pelo governo militar, parecia que os preços dos alimentos subiam de elevador, enquanto o salário dos trabalhadores subia pelas escadas.
Duas semanas depois da manifestação na Praça da Sé, em 12 de setembro, há exatos 43 anos, o MCV enviou sua comissão até Brasília para entregar o abaixo-assinado pessoalmente ao “presidente” Ernesto Geisel. Foram 21 pessoas com 21 pacotes de folhas, cada um deles pesando 7 quilos. Geisel, é claro, não recebeu o movimento, mas preparou “uma das maiores operações de segurança já vistas na entrada do Palácio do Planalto”, segundo notícia da Folha de São Paulo. A comissão recusou uma promessa de reunião com um assessor da presidência no dia seguinte, entregou as assinaturas ao Serviço de Protocolo do Palácio e não permitiu que os soldados tocassem nos pacotes antes de serem protocolados. Ainda, de despedida, num gesto de desobediência, estenderam a faixa do movimento na rampa do Palácio para uma foto de registro.
O MCV nasceu em 1973 nos Clubes de Mães do Jardim Ângela, uma das regiões mais pobres da cidade. Até 1979 seria um movimento protagonizado, sobretudo, por mulheres trabalhadoras das periferias urbanas. Então se espalhou rapidamente, primeiro pelo cinturão periférico de São Paulo e, depois, em outras cidades por todo o país, o que só foi possível graças a um extenso trabalho de base e de articulação.
O ato de 78 foi, à época, a maior mobilização popular no país desde o final da década de 60. As grandes greves do ABC, dos operários metalúrgicos em São Paulo, começariam poucos meses depois, em boa medida sob influência e inspiração da iniciativa dessas mulheres. A manifestação de 27 de agosto significou um marco para a abertura política do país, e contribuiu de forma decisiva para o desgaste do regime militar. Como comenta Amelinha Teles, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que atuava no MCV e nos Clubes de Mães, esse foi “o movimento que abriu as portas para a mobilização democrático-popular no país”.
Hoje, 43 anos depois, enfrentamos mais uma vez o problema da carestia. O país tem 14,8 milhões de pessoas desempregadas, 19,3 milhões de pessoas passando fome, e o preço de uma cesta básica é quase o mesmo de um salário mínimo. A história desse movimento, contada em detalhes na pesquisa do historiador Thiago Monteiro, oferece lições importantes sobre como a classe trabalhadora pode se organizar para enfrentar o problema, além de jogar luz sobre o importante papel dos setores populares, em particular das mulheres periféricas, para derrubar a ditadura militar.
As raízes de um movimento
Os Clubes de Mães, de onde nasceu o movimento, eram espaços organizados em torno das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Neles, as mulheres das comunidades se reuniam para realizar oficinas de trabalho para geração de renda (de costura, crochê etc.), para participar de formações em temas como saúde e sexualidade, e para discutir os problemas de seus bairros.
Com o apoio de setores progressistas da Igreja católica, as CEBs se converteram em um espaço crucial para a atuação política do povo pobre durante a ditadura. Incontáveis movimentos nasceram dessas comunidades, reivindicando creches, escolas, moradia, água potável, transporte público, postos de saúde, pavimentação e outras demandas populares. O papel das mulheres aí foi central.
Ao longo da década de 70, as CEBs e os Clubes de Mães expandiram suas ações para além de demandas locais. A região do Jardim Ângela, onde nasceu o MCV, contava com pelo menos 17 CEBs, que se encontravam em assembleias mensais. Nesses espaços de articulação, recebiam formação política, com apoio de outros setores da esquerda, e discutiam tanto os desafios de cada localidade como a convergência mais ampla desses desafios. Desse processo de elevação da consciência, sentiu-se a necessidade também de planejar ações coordenadas em escalas maiores, de forma que o trabalho local acumulasse forças para um projeto amplo e estrutural de transformação, cujo caráter socialista ia ficando cada vez mais evidente. Nesse sentido, o enfrentamento ao regime ditatorial comandado pelos militares tornava-se incontornável.
A percepção da natureza estrutural dos problemas locais colocava também na pauta a necessidade de conexões com comunidades de outras periferias, assim como com as lutas sindicais e estudantis. A articulação entre essas lutas se revelou crucial para o crescimento do MCV. Foi o conjunto dessas experiências que forneceu um acúmulo de conhecimento, coletivamente absorvido e mobilizado, sobre formas de organização popular, em particular a organização de movimentos sociais, e sobre táticas e estratégias de luta em um contexto de repressão e perseguição política.
As lutas ligadas às CEBs puderam crescer nesse contexto, em grande parte, pela proteção da Igreja, mas também como fruto da mobilização constante nos bairros, com realização de atividades dos mais diversos tipos na vida comunitária. Além das suas reuniões e formações, organizavam mutirões, festas, celebrações religiosas com conteúdo político, cineclubes, peças teatrais, ofereciam serviços como o de enfermagem, cursos de alfabetização, assim como ações de agitação e propaganda. Vanda Gama, uma militante das CEBs do Jardim Ângela (na época do MCV, ainda uma adolescente), chegou a relatar: “Eu não lembro de um dia que eu tivesse o dia sem ter o que fazer. Naquela época, a gente tinha sempre o que fazer”.
Essa mobilização constante, enraizada no território, formou a base do que viria a ser o MCV. Se em 1978 o movimento conseguiu coletar 1,3 milhão de assinaturas, isso só foi possível graças à formação dessa teia de alianças e acúmulo de aprendizado coletivo dos anos anteriores, combinando trabalho de base local e a articulação coordenada entre diversas comunidades.
O movimento em ação
A ação que inaugurou o movimento em 1973 foi uma pesquisa sobre o aumento de preços. A ideia partiu do Clube de Mães do Jardim Nakamura, no Jardim Ângela, e foi adotada por outros Clubes da região. Identificaram uma média de aumento de 120% nos preços no período de um ano, enquanto o salário mínimo só tinha aumentado 16%. Perceberam também que o aumento nos preços era maior na periferia do que no centro da cidade: enquanto o preço do feijão aumentou 191% na periferia, por exemplo, ele subiu 55% nas regiões centrais.
As informações recolhidas foram redigidas em uma carta destinada às autoridades políticas, de vereadores à presidência, assinada como “Mães da periferia de São Paulo”, na qual pediam uma resolução para a carestia da vida e reivindicavam o aumento do salário mínimo. Foi a primeira de uma série de cartas e abaixo-assinados enviados para as autoridades – mas as ações do movimento foram muito além da redação de cartas.
Uma marca da prática social nas CEBs foi a solidariedade e ajuda mútua entre as suas participantes, sendo frequentes os mutirões para a construção de casas e espaços comunitários. Tratava-se, em primeiro lugar, de uma questão de necessidade. As condições de habitação eram precárias, os bairros isolados da cidade, com pouca ou nenhuma infraestrutura. Poucas das suas vias principais eram asfaltadas e só nelas era possível encontrar alguma linha de transporte público. A falta de serviços públicos e a distância dos centros comerciais não só tornava a vida na periferia mais dura, como também tornava o custo de vida ainda mais caro do que no centro, como o próprio movimento demonstrou na sua primeira pesquisa de preços.
Da mesma forma que as comunidades se mobilizavam em mutirões para sanar ou minimizar seus problemas com habitação, essa realidade fez emergir outra prática do movimento: os mutirões de compras comunitárias, com viagens ao centro da cidade para fazer compras no atacado para um grande número de famílias. Mais que uma economia nos gastos, o movimento organizava a comunidade, fomentava a solidariedade entre as famílias e abria espaços de conscientização sobre o problema da carestia.
O mesmo espírito de solidariedade era fomentado através de atividades nos bairros, de festas a momentos de formação política. O movimento também investiu fortemente na construção de um imaginário popular sobre o custo de vida, produzindo cartilhas, charges, paródias de músicas, e até peças de teatro que circularam por várias cidades. Com todas essas ações, se colocou de forma ativa na disputa pública, contra os agentes do Estado, a respeito do problema da carestia.
A própria coleta de assinaturas não visava uma simples reivindicação unilateral para o Estado, mas servia, sobretudo, como meio de promoção do debate público. As assinaturas eram coletadas em mutirões no centro de São Paulo, mas também nos sindicatos, nas igrejas e nas casas das pessoas. O movimento formava equipes para passar de casa em casa, nos bairros, recolhendo assinaturas. Devido a essa capilaridade, mais de 95% das 1,3 milhão de assinaturas coletadas em 1978 vieram dos bairros periféricos de São Paulo. Era uma oportunidade não só para discutir o problema da carestia com a população, como também para convidar essas pessoas para novas atividades, fazendo crescer a base do movimento.
Simultâneo ao trabalho local, o MCV se fortaleceu por um esforço constante de articulação. Nos primeiros anos, os núcleos do movimento se expandiram para outras periferias de São Paulo e, em 1976, realizaram uma assembleia com mais de 4.000 pessoas no Colégio Santa Maria, na zona sul. Já em 1979, um Encontro Nacional do movimento reuniu representantes de Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Salvador, entre outras cidades.
O movimento ainda sustentou, ao longo da maior parte de sua trajetória, uma série de princípios de organização interna para firmar o seu foco no trabalho de base. As reuniões de coordenação do movimento eram formadas por representantes dos núcleos locais, dando preferência a moradores dos bairros onde o movimento atuava. Cada representante tinha a obrigação de prestar contas com sua base sobre as decisões tomadas na coordenação. Dos agentes externos, como militantes de partido ou do movimento estudantil, era exigido o uso de uma linguagem simples nas reuniões e na produção dos materiais. O objetivo era garantir a participação efetiva das bases nas decisões do movimento.
Isso começou a mudar a partir de 1979, quando o movimento conquistou maior visibilidade e as lideranças com mais instrução política investiram fortemente na sua participação nas reuniões de coordenação do movimento. Depois da manifestação na Praça da Sé, o país viveu uma aceleração das lutas sociais, primeiro com a emergência das grandes greves e, logo depois, com a mobilização pelas Diretas e pela Constituinte. O trabalho de base local, característico das CEBs, foi gradualmente substituído pela emergência da luta política e institucional. Como consequência de uma confluência de fatores, o MCV foi perdendo sua força, até se dissolver em 1982.
A politização de um problema “doméstico”
Longe de assumir uma postura dócil nas suas mobilizações, o movimento não nutria falsas esperanças em uma colaboração por parte do regime militar. As autoridades foram chamadas para a manifestação de 1978 na Praça da Sé. Era evidente que não iam comparecer. Ao contrário, a manifestação foi reprimida pela polícia militar. Sem se abalar ou deixar-se surpreender, o movimento logo preparou uma comissão para levar pessoalmente, até Brasília, a carta com as folhas de assinatura.
As ações do movimento tiveram repercussão internacional e constrangeram os militares, que não puderam mais sustentar sua versão dos fatos. Ao longo da década de 70, os militares atribuíram o problema da carestia à ganância dos comerciantes, se eximindo da responsabilidade sobre a grave crise econômica que o país enfrentava. Mais que isso, o governo federal fazia campanhas publicitárias que jogavam o problema para as famílias, em particular para as mulheres. Uma propaganda oficial da campanha “Diga não à inflação”, de 1973, dizia que “mulher fica mais bonita quando pechincha e faz beicinho”. Cabia às mulheres usar seu “charme” feminino para negociar uma redução dos preços com os comerciantes.
As mães que se mobilizaram através do MCV inverteram a lógica cínica e machista dos militares, politizando um tema que era tratado como privado e familiar. O problema do preço dos alimentos, sentido no interior de cada núcleo familiar, passou a ser tratado como uma questão pública, no campo da economia política e da macroeconomia, que, portanto, deveria ser tratada politicamente, com intervenção pública adequada no âmbito federal.
A trajetória do movimento demonstra a força da mobilização. A iniciativa que partiu de um Clube de Mães de um bairro periférico de São Paulo, em menos de uma década, ganhou escala nacional e conseguiu levar mais de 20.000 pessoas às ruas, em um tempo de silenciamento, dura repressão e despolitização do espaço público. Mais que isso, o movimento formou uma base sólida nos bairros em que atuava.
Com todas as diferenças entre a nossa época e a do MCV, ele ainda nos ajuda a pensar estratégias para a mobilização popular no presente. Em primeiro lugar, suas mobilizações foram sustentadas por um extenso trabalho de base. Isso não se expressou simplesmente em ações de agitação e propaganda, mas em atividades constantes de todo tipo nos bairros. É essa constância e diversidade de ações que permitiu, ao longo dos anos, que a base do movimento formasse os laços de confiança e solidariedade necessários para a mobilização. Em segundo lugar, esse trabalho se fortalecia pela ação coordenada das comunidades. A articulação era feita de baixo para cima, sem um abismo hierárquico entre quem se mobilizava nos bairros e quem tomava as decisões gerais do movimento. A participação democrática no interior do movimento, garantida pelas suas próprias regras, fortalecia suas iniciativas locais, cuja capilaridade tornava possível ações coordenadas em escalas maiores.
Por fim, a história do movimento demonstra a centralidade do problema do aumento do custo de vida, que voltamos a enfrentar, e sua força como demanda popular aglutinadora. Esse não é um problema secundário, entre outros tantos. Por ser um problema de caráter estrutural e praticamente universal, afetando de maneira generalizada a vida material da classe trabalhadora, a carestia pode se tornar uma importante chave de mobilização de massas das camadas da população que vivem, cada vez mais precariamente, do próprio trabalho.
As demandas do MCV não foram atendidas, mas suas ações tiveram enormes repercussões. Foi esse movimento que constrangeu os militares de forma decisiva, marcando o início da abertura democrática no país, e inspirou a formação de novos movimentos e processos de mobilização popular. Foi por meio desse movimento que um número massivo de trabalhadores das periferias das grandes cidades, principalmente mulheres mães de família, puderam impor sua voz e afirmar sua dignidade, mostrando que se cresce em consciência quando se luta e se organiza.
Sobre os autores
é militante, doutorando em Psicologia Social pela USP e membro do Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias.
[…] Pamplona, P. (2021, Sept. 12). Como a mobilização das mulheres contra a carestia desmoralizou os militares. Jacobin Brasil. https://jacobin.com.br/2021/09/como-a-mobilizacao-das-mulheres-contra-a-carestia-desmoralizou-os-mil… […]