Desde o início dos anos 1990, vem emergindo um arquipélago transnacional de gulags onde migrantes têm sido escanteados forçadamente em campos e centros no mundo pós-colonial. Estes centros são parcialmente financiados por Estados ocidentais com o objetivo de restringir o movimento em direção ao Ocidente de pessoas que tiveram suas vidas destruídas. Fundamentalmente baseado em uma lógica de segurança, o efeito deste financiamento é a militarização das políticas migratórias e a desvalorização dos direitos humanos. E o mais surpreendente, criou-se um mundo onde milhões de pessoas existem em um Estado apátrida, com dependência e incerteza radicais. É difícil de imaginar um Estado de existência mais desesperador.
É um processo que se estende por todo o Ocidente. O órgão da União Europeia responsável por propor políticas migratórias, o EU Partnership Framework on Migration, conecta a ajuda europeia a medidas legais e logísticas em países parceiros. O objetivo é manter migrantes dentro das fronteiras do Sahel em vez de permitir que se movam através dos arriscados e complexos caminhos trans saarianos que conduzem à costa do Mediterrâneo e, possivelmente, à União Europeia. Em 2017, Níger foi o país que mais recebeu essa ajuda per capita no mundo. Esses recursos foram utilizados para a introdução de restrições legais de movimento, aumento de fiscalização nas fronteiras, programas de retorno de migrantes e material para serviços de segurança. Antes de seu fechamento, o complexo de campos de refugiados de Dadaab recebeu mais de 450 mil pessoas, principalmente somalis em condição de expatriação suspensa.
Desde 2001 (com um pequeno intervalo enquanto estes centros estiveram fechados) a Austrália direcionou refugiados vindos por mar para os “centros de processamento regionais” na ilha de Nauru, onde pessoas permaneciam por até cinco anos. O país mantinha apoio financeiro ao governo de Nauru que legislou efetivamente na direção da suspensão de movimento de refugiados e requerentes de asilo a caminho da Austrália. Em 2018, o governo dos Estados Unidos se ofereceu para receber alguns desses refugiados e, para isso, se utilizou de estruturas remotas de sua Polícia de Fronteira (US Border Patrol) estabelecidas no Iraque, Jordânia, Afeganistão, Colômbia, Haiti, Peru, Panamá, Belize, México, Quênia, Costa Rica, Ucrânia, Kosovo, Argentina, Honduras, Equador, Armênia, Tadjiquistão e Guatemala.
Descobrimos na semana passada que o Reino Unido assinou um acordo com Ruanda para redirecionamento de refugiados. Boris Johnson disse que os termos envolveriam potencialmente dezenas de milhares de pessoas incluindo o deslocamento de requerentes de asilo. O anúncio – feito pelo Primeiro Ministro e pelo Secretário de Estado de maneira profundamente ambígua – é parte da estratégia global de escanteamento descrita acima. Assim como na Australia, nos Estados Unidos e na União Europeia, auxílios e outros financiamentos são alocados em um país remoto em troca do estabelecimento de estruturas nesses países para receber centenas de milhares de pessoas deslocadas e submetê-las a um Estado permanente de insegurança securitizada. E, mais importante, mantê-las longe das fronteiras do Ocidente.
Ruanda: Estado de escanteamento
Este arquipélago de gulags é parte de uma ordem mundial. Consiste em uma estratégica política que submete milhões a enormes sofrimentos enquanto são empurrados a uma condição de apatridia. As distinções entre os estados de legalidade e ilegalidade, do refugiado econômico ou político, falso ou genuíno, em nada contribuem para o problema que deveriam resolver: que guerras civis, colapsos de Estados, erosão de estilos de vida e múltiplos processos de espoliação criaram uma multidão cujo vínculo a uma relação estado-cidadania (seja ela tênue ou difícil) desapareceu completamente.
Narrativas de exceção ou emergência não representam o que de fato são claramente características estruturais da política global. E foi por isso que um arquipélago transnacional de gulags foi construído durante os últimos 30 anos. Pode-se entender que se trata de uma rede de nações cujos governos observam alguns pré-requisito para agirem como receptores de refugiados. Estes pré-requisitos são: a disposição de alterar práticas de lei e ordem que restrinjam o movimento de expatriados de acordo com objetivos estratégicos traçados por países Ocidentais; a habilidade de agir como fornecedor de assistência e suporte militar para fortalecer os mecanismos de segurança que afetem a propensão ao risco, à inovação e ao direcionamento de refugiados que pretendam escapar do sistema de escanteamento; a habilidade de gerar discursos políticos de fornecimento de abrigo civilizado baseado em princípios humanitários globais.
“Todo o projeto parece o mais abissal fenômeno político: se der errado, será um desastre; se der certo, será pior.”
Este sistema global de currais se baseia em duas formas mutuamente constituídas de soberania: as nações ou regiões Ocidentais que procuram formas de reduzir radicalmente a imigração e nações pós-coloniais que se associam ao Ocidente como soluções de desenvolvimento e segurança. Neste contexto, Ruanda se encaixa extremamente bem.
Em 1994, quando o atual governo de Ruanda chegou ao poder, a crise migratória foi a primeira das muitas crises por ele enfrentada. Na verdade, crises migratórias: o retorno de Tutsis e Hutus do exterior e a migração interna dos próprios ruandeses expulsos de suas regiões de origem. A agência da ONU para refugiados (ACNUR) estimou que existem 1,8 milhão de refugiados apenas no Zaire (1,2 milhão) e na Tanzânia (600 mil).
A volta para casa envolve muitos países e práticas de abandono e retorno. Inicialmente, e sem nenhuma grande ajuda externa, o governo recém empossado trabalhou muito bem na administração do influxo, estabelecendo seu ordenamento espacial e mantendo as fronteiras relativamente estáveis. Depois, o governo criou campos de re-educação (ingando) para onde direcionou dezenas de milhares de pessoas identificadas através de um sistema de tribunais de base como cúmplices do genocídio praticado contra os Tutsis ou que necessitavam de uma mudança estratégica. Ruanda tratou de sua população através de um sistema detencional/educativo penal que completou um tipo de transição étatiste para além do genocídio – ainda que fortemente autoritário.
Em resumo, Ruanda é uma nação de escanteamento por excelência. Com a construção de campos de refugiados e centros de re-educação para a população retornada do exílio, o país tratou como principal característica de sua governança o ordenamento espacial dentro de suas próprias fronteiras. Mais ainda, o planejamento das vilas, a troca dos nomes das ruas, o rezoneamento do espaço agrário, tudo é resultado da mesma lógica política.
Os representantes do Ocidente envolvidos com o desenvolvimento e a diplomacia em Ruanda gostam deste aspecto do governo. Durante uma de minhas visitas de pesquisa, entrevistei um gerente sênior da Bralirwa, parte do grupo produtor de bebidas Heineken. Ele me mostrou fotos que tirara de tratores estacionados em uma das fazendas que fornecem milho para a Bralirwa no final de um dia de trabalho. Estavam perfeitamente alinhados. Ele me chamou a atenção – não sem transparecer o entusiasmo e com uma disposição que eu havia encontrado em muitos círculos de expatriados no Leste Africano – para a forma como os tratores estavam impecavelmente alinhados e como isso era impressionante em comparação com outras fazendas comerciais do Quênia onde os tratores eram estacionados caoticamente.
Muitos ocidentais que já pesquisaram em Ruanda e entrevistaram outros ocidentais lá expatriados irão, acredito, achar isso familiar: a sensação de que Ruanda é particularmente e excepcionalmente ordeira. Esta estética de modernidade, a disciplina interna dentro do aparato estatal, a cultura burocrática de definição de objetivos. Todos estes fenômenos se apresentam ao expatriado como uma forma de cortesia: a percepção de um propósito compartilhado, a resolução de uma relação muitas vezes conturbada entre ex-colônias vulneráveis e doadores intervenientes e lobistas. Todos levando o projeto ou plano a sério.
Logo, não surpreende que o governo britânico veja Ruanda como um parceiro quase perfeito para sua contribuição ao arquipélago transnacional de gulags. Se encaixa como uma luva. Um estado formado sob um efetivo ordenamento espacial; um governo que apoia seus contribuidores; e um país que tem tudo para gerar um sistema estruturado, bem auditado, transparente e bem apresentado de recepção, processamento, escanteamento e possivelmente de reencaminhamento de pessoas de todo o mundo no que é, historicamente, um estado definido por sucessões de assentamentos e reassentamentos.
Visite Ruanda, obedeça às regras, receba apoio e permaneça até segunda ordem. Esta é a expectativa do governo britânico.
Desastre antecipado
No entanto, esta expectativa é ingênua. Na verdade, como muitas outras iniciativas que emanaram do atual governo, esta apresenta um risco real de parecer ridícula e desmoronar rapidamente. Mais importante, há a óbvia imposição de sofrimento que este acordo implica. O governo argumenta que esta medida é propositalmente desagradável, um impedimento. Porém, é improvável que funcione como um impedimento pois, como já notamos, a imigração cuja motivação é o estresse não é uma decisão tomada por indivíduos ou famílias baseada em incentivos e desencentivos. Ela é estruturada por dinâmicas de soberania e capitalismo, manifestada em inseguranças e penúrias sofridas por milhões. O tráfico é sintoma de um processo mais profundo e dificultar as coisas, bem, apenas dificulta as coisas, sem interromper os fluxos.
Se há intenção de descontar a sofrível experiência da busca por refúgio, pode-se argumentar que essa é uma medida necessária, uma solução “menos pior” para um problema premente. Mas não é. E isso porque a parceria em si é de alto risco, ambígua e insustentável.
Uma parte da razão pela qual o governo de Ruanda é obcecado pela ordem-pelo-espaço que ainda não havia mencionado é o autoritarismo que a autoriza e dinamiza. Tem havido uma infinidade de debates e controvérsias a respeito de supostos casos de atrocidades em massa perpetrados pelo governo de Ruanda, sendo o mais infame o do campo de refugiados de Kibeho onde evidências sugerem que milhares de migrantes internos teriam sido assassinados pelo Exército. Há diversas camadas de vigilância sobre cidadãos e membros do governo que se estende a vários grupos. Há o fechamento da mídia e da sociedade civil, supostos assassinatos (no país e no exterior).
Pode-se supor que tudo isso não se aplica a refugiados redirecionados, que eles poderiam escapar da política étnica pós-genocida do estado de Ruanda. Mas há boas razões parar ver o contrário. O governo de Ruanda entende muito bem as vantagens políticas de se apresentar como uma atrativa vitrine aos olhos de outros estados ricos e influentes. Ele quer que o projeto funcione e, idealmente, que supere as expectativas.
Este era um discurso repetido constantemente tanto por funcionários do governo de Ruanda quanto por doadores ocidentais durante minhas entrevistas: o projeto foi bem sucedido e finalizado antes do tempo. Pode-se esperar que refugiados redirecionados possam ser tratados como recurso político se socialmente contidos, mantidos sob ordem e vigilância. E, pessoas sendo como são, quando tentam fazer algo sem permissão, escapar do olhar atento do estado, reclamar, se rebelar, existe a expectativa de que sofrerão sob a mesma força estatal que outros sofreram em momentos de convulsão social.
Neste momento — testemunhado ou não pela mídia Ocidental — a estupidez desta política será exposta enquanto aqueles extraditados da Síria, por exemplo, se acharem despatriados e brutalizados como nunca e já não terão nenhuma expectativa senão escapar, se juntar à multidão de apátridas e tentar novamente.
E piora. O relacionamento de Ruanda com o Ocidente e com o Reino Unido não é exatamente confortável. “Parceria” é o código para um tipo de relacionamento contraditório onde o governo de Ruanda apresenta momentos significativos de rejeição e revolta contra o Ocidente. Esse mês, o Presidente de Ruanda, Paul Kagame, se pronunciou afirmando haver “três tipos de sistemas de governo no mundo, um é chamado democracia, o outro autocracia, e um terceiro entre os dois — mais poderoso, muito silencioso e efetivo — que é a hipocrisia”, o último sendo os governos ocidentais.
O governo de Ruanda não é bobo, dócil ou fraco. Ele recebe recursos de doadores para projetos mas guarda uma soberania estranha. O projeto, uma vez estabelecido, é alavancado. Se alguma crítica relacionada a direitos humanos emerge, o projeto passa a ser uma questão de segurança para o governo de Ruanda que tem trabalhado em estreita colaboração com seu parceiro, o governo britânico, para solucionar a crise global de refugiados. Posso facilmente imaginar o discurso:
“nós ruandeses sabemos o que é sermos expulsos, sujeitos a tiranias. É por isso que temos trabalhado com o Reino Unido para sermos um porto seguro às milhares de pessoas desterradas… e agora vocês, vocês ocidentais, que não ajudaram durante o genocídio têm a temeridade de nos acusar de violações de direitos humanos?”
Qualquer pessoa que, como eu, teve a oportunidade de ler os muitos pronunciamentos públicos feitos pelo Presidente Kagame e pela elite que o circunda certamente já conhece essa retórica.
E tem mais. A frivolidade da elite que se contorce pelos refugiados mas os tratam como sacos de batata. Números. Fardos. Genericamente como uma ameaça. Mas, na realidade, não são. São pessoas com história. Todos os estudos detalhados sobre refugiados apresentam o mesmo padrão: deslocamentos multisetoriais de cidade em cidade, de cidades a fronteiras, em transito para outra cidade, com possíveis conexões com parentes ou contatos, um novo deslocamento, apelos a autoridades de fronteira ou mergulhos em túneis secretos com destino a outros Estados.
Milhares de pessoas na República Democrática do Congo (RDC) embarcaram nessa jornada, frequentemente indo para países vizinhos da região e outros mais distantes. De acordo com o Censo Britânico de 2001, 8,5 mil cidadãos da RDC eram residentes no Reino Unido. Mas há ainda mais pois o Censo não consegue alcançar a todos. Imagine que todas essas pessoas chegaram no Reino Unidos através dessa longa e apavorante jornada em busca de refúgio. Lembremos que a maior causa de imigração na RDC nos anos 2000 foram ataques do exército de Ruanda. Agora imagine-se como congolês, se você chegar no Reino Unido hoje ou for descoberto como um residente “ilegal”, você será redirecionado para Ruanda, casa do exército que motivou o seu desterro.
Isso ainda não aconteceu, claro. Mas, quanto mais efetivos os esforços do governo britânico, mais possível será uma situação como essa. Sabemos que o governo tem mandado pessoas de volta aos países de onde fugiram, algemados e empurrados para dentro de aviões. Então, isso ainda não aconteceu, mas se tudo correr como o planejado, acontecerá. Este é um nível de insensibilidade difícil de traduzir em palavras.
O arquipélago global de gulags é uma resposta bem estabelecida ao colapso da ordem em muitos estados do mundo e aos efeitos empobrecedores e desestabilizadores de um capitalismo implacável que cambaleia de crise em crise. É um fenômeno global sistêmico que gerou uma forma de intergovernismo baseado na criação de currais humanos transnacionais para a detenção daqueles que já não gozam do mínimo da segurança política da cidadania.
O projeto do governo britânico em Ruanda é parte disso, articulado como uma parceria para tratar de uma crise dita excepcional, não um fenômeno estrutural. E, pelo cálculo político simplório do atual governo, a musculatura da engenharia social de Ruanda e a ingenuidade deste mesmo governo em relação ao pensamento político do governo de Ruanda, todo o projeto parece o mais abissal fenômeno político: se der errado, será um desastre; se der certo, será pior.
Sobre os autores
é professor associado de economia política na Universidade de Durham, especializado em estudos africanos.